Opinião

O Supremo Tribunal Federal e os efeitos da sentença coletiva

Autores

  • Aluisio Gonçalves de Castro Mendes

    é desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 2ª região. Membro da Comissão de Juristas incumbida do acompanhamento da redação final do CPC no Senado Federal.

  • Antonio Carmelo Zanette

    é mestre em Direito Privado pela UFRGS professor e coordenador da Pós-graduação em Direito Agrário e do Agronegócio da Fundação Escola Superior do Ministério Público membro Consultor da Comissão Nacional de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB Nacional e sócio do escritório Ricardo Alfonsin Advogados.

25 de fevereiro de 2021, 9h11

Nesta quinta-feira (25/2), o plenário do Supremo Tribunal Federal julgará, à luz dos artigos 2º, 5º, XXXVII, LIII e LIV, 22, I, e 97 da Constituição Federal o Recurso Extraordinário (RE) 1.101.937 (Tema 1075), que trata da constitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), o qual impõe limitação geográfica à coisa julgada coletiva.

A Lei 9.494, de 10/9/1997, resultante da conversão da Medida Provisória 1.570, designou inicialmente a seguinte redação para o artigo 16 da lei da ação civil pública: "A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos termos da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova". Em seguida, o texto foi modificado, mediante a adoção de medidas provisórias sucessivas [1], para dispor: "A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator".

Pretendeu-se, assim, instituir novo texto para o artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, com o intuito claro de fracionar o alcance das ações coletivas. Todavia, há de se consignar que a versão originária do artigo dispunha, em síntese, que a sentença faria coisa julgada erga omnes, exceto se o pedido fosse julgado improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderia intentar "outra" ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a matéria pertinente aos efeitos do julgamento e da coisa julgada passou a ser regulada inteiramente pelo artigo 103, na medida em que instituiu sistema consentâneo com a nova divisão tripartite dos interesses coletivos, nada mais podendo ser aproveitado do artigo 16 da Lei 7.347/85, razão pela qual é de ser considerado revogado, com fulcro no artigo 2º, §1º, parte final, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Desse modo, houve manifesto equívoco do legislador ao pretender dar nova redação a dispositivo que não se encontrava mais em vigor. Esse não foi, entretanto, o maior engano.

A inovação parece ser inconstitucional, afrontando o poder de jurisdição dos juízes, a razoabilidade e o devido processo legal. A jurisdição não se confunde com a competência. Todos os juízes são investidos na jurisdição, estando limitada tão somente a sua competência para conhecer, processar e julgar os processos. Por outro lado, a jurisdição é um poder, decorrente diretamente da soberania, razão pela qual guarda aderência sobre o território nacional, ainda quando o órgão seja estadual. As regras de competência fixarão, sim, quem deva ser responsável pelo processo, não se prestando, portanto, para tolher a eficácia da decisão, principalmente sob o prisma territorial.

Da mesma forma, há de ser invocada, mais uma vez, a indivisibilidade do objeto, quando o interesse for difuso ou coletivo, não sendo possível o seu fracionamento para atingir parte dos interessados, quando estes estiverem espalhados também fora do respectivo foro judicial.

Em julgado proferido no final do ano de 2011, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça enfrentou, em sede de recurso repetitivo, nos termos do artigo 543-C do Código de Processo Civil, a questão da limitação territorial pretendida pelo artigo 2º-A da Lei nº 9.494. Na ocasião, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, analisou, com precisão e maestria, no seu voto, ao comentar a pretensão do recorrente no sentido da aplicação da limitação do artigo 16 da Lei nº 7.347/85:

"Tal interpretação, uma vez mais, esvazia a utilidade prática da ação coletiva, mesmo porque, cuidando-se de dano de escala nacional ou regional, a ação somente pode ser proposta na capital dos Estados ou no Distrito Federal (artigo 93, inciso II, CDC). Assim, a prosperar a tese do recorrente, o efeito erga omnes próprio da sentença estaria restrito às capitais, excluindo todos os demais potencialmente beneficiários da decisão.
A bem da verdade, o artigo 16 da LACP baralha conceitos heterogêneos
como coisa julgada e competência territorial e induz a interpretação, para os mais apressados, no sentido de que os 'efeitos' ou a 'eficácia' da sentença podem ser limitados territorialmente, quando se sabe, a mais não poder, que coisa julgada a despeito da atecnia do artigo 467 do Código do Processo Civil (CPC) não é 'efeito' ou 'eficácia' da sentença, mas qualidade que a ela se agrega de modo a torná-la 'imutável e indiscutível'.
É certo também que a competência territorial limita o exercício da jurisdição e não os efeitos ou a eficácia da sentença, os quais, como é de conhecimento comum, correlacionam-se com os 'limites da lide e das questões decididas' (artigo 468, CPC) e com as que o poderiam ter sido (artigo 474, CPC)
tantum judicatum, quantum disputatum vel disputari debebat.
A apontada limitação territorial dos efeitos da sentença não ocorre nem no processo singular, e também, como mais razão, não pode ocorrer no processo coletivo, sob pena de desnaturação desse salutar mecanismo de solução plural das lides.
A prosperar tese contrária, um contrato declarado nulo pela Justiça estadual de São Paulo, por exemplo, poderia ser considerado válido no Paraná; a sentença que determina a reintegração de posse de um imóvel que se estende a território de mais de uma unidade federativa (artigo 107, CPC) não teria eficácia em relação à parte dele; ou uma sentença de divórcio proferida em Brasília poderia não valer para o Judiciário mineiro, de modo que ali as partes pudessem ser consideradas ainda casadas, soluções, todas elas, teratológicas.
A questão principal, portanto, é de alcance objetivo ('o que' se decidiu) e subjetivo (em relação 'a quem' se decidiu), mas não de competência territorial.

Pode-se afirmar, com propriedade, que determinada sentença atinge ou não esses ou aqueles sujeitos (alcance subjetivo), ou que atinge ou não essa ou aquela questão fático-jurídica (alcance objetivo), mas é errôneo cogitar-se de sentença cujos efeitos não são verificados, a depender do território analisado" [2].

Chama-se atenção para a correlação que a decisão a ser proferida pelo STF, no tocante ao Tema 1075, poderá impactar no âmbito do agronegócio, no chamado Plano Collor Rural.

Colocando os óculos da época, o Ministério Público Federal, após as conclusões de uma comissão parlamentar de inquérito (CPMI) instalada no Congresso Nacional em 1993, entendeu que o Plano Collor no crédito rural, em março de 1990 quando houve a aplicação da correção dos financiamentos agrícolas atrelados à caderneta de poupança em 84,32% (IPC) quando o correto seria 41,28% (BTN) foi o principal causador do abrupto endividamento do setor, ingressando assim, em 1994, com uma ação civil pública em face do Banco do Brasil, União Federal e Banco Central (Bacen), para que fosse devolvido esse diferencial a todos os produtores brasileiros, acrescido de correção monetária e juros.

A Federarroz e a Sociedade Rural Brasileira, representadas pelo advogado gaúcho Ricardo Alfonsin, ingressaram na ação como assistentes. O processo tramitou por 20 anos, iniciando na Justiça Federal de Brasília, até o julgamento do especial dos autores e das assistentes pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em dezembro de 2014. O relator do recurso foi o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, cujo brilhante voto foi acompanhado pela unanimidade dos membros do órgão colegiado, dando provimento ao Resp 1.319.232/DF para confirmar a sentença de primeiro grau e julgar procedente o pedido formulado na ação civil pública, conferindo o direito aos produtores à devolução postulada, com abrangência nacional e eficácia erga omnes, apoiado na inteligência dos artigos 16 da Lei de Ação Civil Pública combinado com 93, II, e 103, III do CDC.

Ocorre que, ao iniciarem a liquidação dos valores, buscando reparar o prejuízo sofrido há 30 anos, os produtores se depararam com pedidos de suspensão dos cumprimentos de sentença, amparados em decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, para se aguardar a resolução do Tema 1075.

O fato é que a discussão em torno do artigo 16 da LACP acaba encerrando duas questões: a) a primeira relacionada com a constitucionalidade da restrição estabelecida; e b) a segunda sobre a aplicação do entendimento estabelecido pelo STF no tempo, especialmente aos títulos que assumiram posicionamento contrário ao que for firmado, mas que já tenham transitado em julgado. Portanto, o pronunciamento da Corte Suprema será de suma importância para a resolução da questão de fundo, mas poderá enfrentar ou não aspectos relacionados com a aplicação ou não dos efeitos da tese sobre os julgados já transitados em julgado que tenham esposado entendimento diverso. Sendo assim, grande será a expectativa sobre o julgamento que ocorrerá nos próximos dias.

 


[1] A nova redação foi prevista inicialmente na Medida Provisória 1.781-1, de 11.02.1999, seguida depois pelas Medidas Provisórias 1.906-11, de 25.11.1999, 2.102-32, de 21.06.2001, e 2.180-33, de 28.06.2001.

[2] REsp 1.243.887/PR, rel. ministro Luis Felipe Salomão, DJe 12.12.2011. Este entendimento vem se mantendo, especialmente diante do trânsito em julgado do título: "Processual civil. Embargos declaratórios no recurso especial. Recebimento como agravo regimental. Requisitos de admissibilidade. execução individual de sentença coletiva. Expurgos inflacionários em caderneta de poupança. Limites subjetivos da sentença. abrangência nacional da demanda. Coisa julgada. regularidade do título. prosseguimento da execução. Decisão mantida. 1. Os fundamentos do acórdão recorrido foram devidamente impugnados pelo recurso especial. Não incidência da Súmula 283 do STJ. Não houve conotação constitucional nas considerações contidas no acórdão recorrido. Inaplicabilidade da Súmula 126 do STJ. 3. "A sentença genérica proferida na ação civil coletiva ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, que condenou o Banco do Brasil ao pagamento de diferenças decorrentes de expurgos inflacionários sobre cadernetas de poupança ocorridos em janeiro de 1989, dispôs que seus efeitos teriam abrangência nacional, erga omnes. Não cabe, após o trânsito em julgado, questionar a legalidade da determinação, em face da regra do artigo 16 da Lei 7.347/1985 com a redação dada pela Lei 9.494/1997, questão expressamente repelida pelo acórdão que julgou os embargos de declaração opostos ao acórdão na apelação" (STJ, REsp 1.348.425/DF, 4.ª T., j. 05.03.2013 rel ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 24.05.2013). 4. Conforme a orientação jurisprudencial fixada pelo STJ, a abrangência nacional expressamente declarada na Ação Civil Pública n. 1998.01.1.016798-9 não pode ser alterada na fase de execução, sob pena de ofensa à coisa julgada, sendo, portanto, aplicável a todos os beneficiários, independentemente de sua residência ou domicílio no Distrito Federal. 5. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, ao qual se nega provimento.” (STJ, EDcl no REsp 1.329.647, 4.ª T., j. 05.12.2013, rel. ministro Antonio Carlos Ferreira; Publicado em 12.12.2013).

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  • é desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 2ª região. Membro da Comissão de Juristas incumbida do acompanhamento da redação final do CPC no Senado Federal.

  • é mestre em Direito Privado pela UFRGS, professor e coordenador da Pós-graduação em Direito Agrário e do Agronegócio da Fundação Escola Superior do Ministério Público, membro Consultor da Comissão Nacional de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB Nacional e sócio do escritório Ricardo Alfonsin Advogados.

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