Opinião

O risco à inviolabilidade de domicílio em razão do precedente Daniel Silveira

Autor

  • DESATUALIZADA Igor de Oliveira Zwicker

    é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia (Unama) especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes (Ucam) e em Gestão de Serviços Públicos pela Universidade da Amazônia (Unama) analista judiciário e assistente de juiz do Trabalho substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (PA/AP) e professor de Direito.

24 de fevereiro de 2021, 19h36

O direito à inviolabilidade de domicílio tem previsão no artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República, para o qual a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

A importância dessa inviolabilidade é evidente: não é à toa que a Constituição da República a erigiu com status de direito fundamental, natureza pétrea e aplicação imediata (artigos 5º, §1º, e 60, §4º, inciso IV).

O direito fundamental à inviolabilidade de domicílio não pode, portanto, ter seu núcleo essencial atingido [1].

A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que ostenta posição hierárquico-normativa de supralegalidade no ordenamento jusconstitucional brasileiro, prevê, no artigo 11, §2º, que "ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação".

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de mesma posição hierárquico-normativa, de supralegalidade, traz idêntica redação em seu artigo 17, § 1º.

O próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.616, com repercussão geral reconhecida, no mérito [2], ao ponderar pela necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar e sua proteção contra ingerências arbitrárias, e reputar arbitrária a entrada forçada, em domicílio, sem uma justificativa prévia, conforme o direito, fixou a tese de que "a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas 'a posteriori', que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados".

Ingo Sarlet, em artigo publicado nesta revista Consultor Jurídico [3], ao abordar o julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.616, afirmou que tal decisão, tomada pela Suprema Corte, merecia "mais aplausos do que críticas", pois a excepcionalidade da violabilidade do domicílio, em razão de flagrante delito, seria autorizativa de uma "severa restrição de um direito fundamental — a inviolabilidade do domicílio".

Dito isso, passemos à análise do precedente Daniel Silveira.

Segundo o artigo 53, caput e §2º, da Constituição da República, os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos e, desde a expedição do diploma, não podem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.

O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) publicou, em suas redes sociais, vídeo com apologia ao Ato Institucional nº 5 (AI-5), um dos mais duros golpes à democracia forjados no seio da ditatura militar (1964-1985), incitou a violência e ataques à integridade física de ministros do Supremo Tribunal Federal e fomentou a animosidade entre a Suprema Corte e as Forças Armadas, entre outras condutas verbalizadas e que, em tese, configuram crimes.

O ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, datada de 16 de fevereiro de 2021, nos autos do Inquérito nº 4781 [4], determinou a imediata efetivação da prisão, em flagrante delito, por crime inafiançável, do deputado federal Daniel Silveira, com base no artigo 53, §2º, da Constituição da República.

A fundamentação do ministro, para a configuração do "flagrante delito", foi a seguinte:

"As condutas criminosas do parlamentar configuram flagrante delito, pois (omissis) verifica-se, de maneira clara e evidente, a perpetuação dos delitos acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo que até o momento, apenas em um canal que fora disponibilizado, o vídeo já conta com mais de 55 mil acessos".

A decisão monocrática foi referendada, à unanimidade, pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal [5].

Ou seja, entendeu-se que se tratava de "infração permanente" e, consequentemente, em flagrante delito.

Considerando que o artigo 303 do Código de Processo Penal diz que, "nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência", temos, na esteira do raciocínio engendrado pelo Supremo Tribunal Federal, que há flagrância enquanto a gravação permanecer online.

Aqui reside o grave perigo ao direito fundamental de inviolabilidade do domicílio.

Não pretendo adentrar no conteúdo material da fala do deputado. Aqui, sugiro reflexão sobre a delimitação e alcance — a meu ver, demasiadamente alargado — do conteúdo jurídico da expressão "flagrante delito".

Não nos enganemos: vivemos em uma sociedade ultraconectada, ultravirtualizada, na qual até as frivolidades do dia a dia — como o prato do almoço — são "postadas" nas redes sociais. Sabemos que as pessoas expõem na rede mundial de computadores, ostensivamente, as suas rotinas privadas.

A partir do precedente Daniel Silveira, decidido à unanimidade pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal, será possível fixar a tese de que é lícita a entrada forçada em domicílio, sem mandado judicial, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, ainda que se trate de uma publicação online, extraível da rede mundial de computadores, por se tratar de infração permanente e, consequentemente, de flagrante delito.

Ingo Sarlet, em outro artigo publicado na ConJur [6], alertava para a importância de se interpretar a noção de flagrante delito "de modo restritivo, limitando-se a situações determinadas e que encontrem sempre algum suporte nas circunstâncias concretas", restando ao intérprete "ser rigoroso e buscar limitar ao máximo e vincular à demonstração da existência de elementos concretos à existência da situação de flagrância, fulminando por ilícita as situações em que isso não se verifica".

Tal interpretação restritiva — e adequada, considerando-se que se trata de restrição ao direito fundamental de inviolabilidade do domicílio — mostra-se seriamente afetada e admoestada pela decisão agora tomada pelo Supremo Tribunal Federal.

 


[1] MARTINS, Leonardo. Art. 5º, XI — a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. Saraiva/Almedina: São Paulo/Portugal, 2013. p. 285-290. p. 285.

[2] STF, RE 603616, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator: Ministro Gilmar Mendes, Julgamento: 5/11/2015, Publicação: 10/5/2016 — Repercussão Geral — Mérito.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Decisão do STF sobre violação do domicílio indica posição prudencial. Revista Consultor Jurídico, 13 nov. 2015. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-nov-13/direitos-fundamentais-decisao-stf-violacao-domicilio-indica-posicao-prudencial>. Acesso em: 19 fev. 2021.

[4] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/INQ4781FLAGRANTEDELITODECISAO.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2021.

[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Por unanimidade, Plenário mantém prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ): a medida foi decretada na terça-feira (16) pelo ministro Alexandre de Moraes, após o parlamentar publicar vídeo com manifestações contra instituições democráticas e incitação à violência contra ministros do STF. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=460657>. Acesso em: 19 fev. 2021.

[6] SARLET, Ingo Wolfgang. Evitando a era dos extremos interpretativa no caso da violação do domicílio. Revista Consultor Jurídico, 5 fev. 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-fev-05/direitos-fundamentais-evitando-extremos-interpretativa-violacao-domicilio>. Acesso em: 20 fev. 2021.

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