Na verdade, leitora, o título deste artigo seria inicialmente “Judiciário precisa ser coerente quanto à natureza do PIS e da Cofins incidentes na importação”. Mas resisti à tentação de usar a frase que desde a infância ouço de meu pai, que de forma bem humorada a emprega quando alguém utiliza, em debates ou discussões, (pseudo)argumentos prenhes de contradições. Aqui, ela não poderia ser mais pertinente.
É que, tão logo instituídas as contribuições PIS e Cofins incidentes na importação, contribuintes discutiram a aplicação, nas operações de comércio exterior a elas submetidas, do disposto no Tratado de Assunção (Mercosul), cujo anexo I (Decreto 550/92) estabelece:
Artigo 2. – Os países signatários acordam eliminar, o mais tardar em 31 de dezembro de 1994, os gravames e demais restrições aplicadas ao seu comércio recíproco.
No que se refere às Listas de Exceções apresentadas pela República do Paraguai e pela República Oriental do Uruguai, o prazo para sua eliminação se estenderá até 31 de dezembro de 1995, nos termos no Artigo 8 do presente Acordo.
Artigo 3. – Para os efeitos do disposto no Artigo anterior, se entenderá:
a) por "gravames", os direitos aduaneiros e quaisquer outras medidas de efeito equivalente, sejam de caráter fiscal, monetário, cambial ou de qualquer natureza, que incidam sobre o comércio exterior. Não estão compreendidas no mencionado conceito taxas e medidas análogas quando respondam ao custo aproximado dos serviços prestados, e
b) por "restrições", qualquer medida de caráter administrativo, financeiro, cambial ou de qualquer natureza, mediante a qual um país signatário impeça ou dificulte, por decisão unilateral, o comércio recíproco. Não estão compreendidas no mencionado conceito as medidas adotadas em virtude das situações previstas no Artigo 50 do Tratado de Montevidéu 1980.
Os artigos transcritos afastam a incidência de quaisquer ônus aduaneiros nas operações de comércio exterior entre países signatários. Ressalvam apenas a cobrança de taxas, e mesmo assim apenas quando correspondam ao custo aproximado de serviços prestados ao contribuinte (v.g., serviços portuários).
Mesmo assim, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que não seriam aplicáveis ao PIS e à Cofins importação, os quais seriam devidos nas importações oriundas de países signatários do Mercosul. Para tanto, considerou que tais contribuições seriam, apesar do nome, “tributos internos”. Da mesma forma como se pode validamente exigir o ICMS, e o IPI, quando um produto é importado de qualquer país, inclusive signatário do Mercosul, seria possível exigir o PIS e a COFINS incidentes na importação, que seriam as mesmas exações incidentes internamente. Apenas na hipótese de, excepcionalmente, o produto nacional ser submetido a algum tipo de benefício, ou redução, o mesmo tratamento deveria ser aplicado ao produto signatário do Mercosul:
“(…) é válida a cobrança da Cofins e da contribuição ao PIS sobre o desembaraço de mercadoria importada de país integrante do Mercosul, quando não estiver o produto nacional também desonerado dessas contribuições.” (REsp 1.002.069/CE)
Frise-se a parte final do trecho transcrito: “quando não estiver o produto nacional também desonerado dessas contribuições”. Aplicou-se o art. 7.o do Tratado de Assunção (Mercosul), que tem a seguinte redação: “Em matéria de impostos, taxas e outros gravames internos, os produtos originários do território de um Estado Parte gozarão, nos outros Estados Partes, do mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional.”
Não se está aqui criticando o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Ele até faz sentido, apesar do nome dado às contribuições incidentes na importação. Apesar de o fato gerador da obrigação de pagá-las ser a “importação”. Apesar do que literalmente consta do anexo do Mercosul. Corroborando essa ideia, inclusive, recorde-se o que constou da exposição de motivos da Medida Provisória 164/2004, da qual se originou a Lei 10.865/2004, diploma que institui as tais “contribuições importação”:
“(…)
As contribuições ora instituídas dão tratamento isonômico entre a tributação dos bens produzidos e serviços prestados no País, que sofrem a incidência da Contribuição para o PIS-PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), e os bens e serviços importados de residentes ou domiciliados no exterior, que passam a ser tributados às mesmas alíquotas dessas contribuições”.
O próprio emprego de uma medida provisória foi assim justificado:
“… justifica-se a edição de Medida Provisória diante da relevância e urgência em equalizar, mediante tratamento tributário isonômico, principalmente após a instituição da Contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS não-cumulativa e da EC 49, de 2003, a tributação dos bens e serviços produzidos no País com os importados de residentes e domiciliados no exterior, sob pena de prejudicar a produção nacional, favorecendo as importações pela vantagem comparativa proporcionada pela não incidência hoje existente, prejudicando o nível de emprego e a geração de renda no País”.
Mas eis que, algum tempo depois, o Poder Público edita a Lei 12.350/2010, em face da qual algumas atividades, como a criação de frangos e a aquisição de alimentos a eles destinados, passaram a ser submetidas a uma sistemática de “suspensão” das contribuições de PIS e COFINS. Essa suspensão equivale a um diferimento, por meio do qual a lei deixa de tratar como devidas as contribuições em elos intermediários da cadeia, fazendo com que o ônus recaia apenas sobre elos posteriores.
Em virtude da apontada “suspensão”, por exemplo, o milho adquirido por criadores de frango no Brasil, junto a produtores de milho brasileiros, não sofre a incidência do PIS ou da Cofins, e tampouco gera crédito aos criadores de frango, que, quando os vendem a comerciantes atacadistas, igualmente não são onerados pelas contribuições. A sistemática é concluída, apenas, no âmbito daquele contribuinte que efetua vendas a varejo, para consumo final, única hipótese em que expressamente não se aplica, a teor do parágrafo único do art. 54 da Lei 12.350/2010. Este — o último elo da cadeia — tem de recolher normalmente a Cofins e o PIS. A “suspensão”, como dito, funciona como uma espécie de diferimento do tributo, que passa a ser integralmente devido apenas pelo elo final da cadeia econômica.
Diante desse quadro, e do que restara decidido pelo Superior Tribunal de Justiça quando se suscitou a natureza “aduaneira” do PIS e da Cofins, no âmbito do REsp 1.002.069/CE, os criadores de frango que adquiriam milhos de produtores situados em outros países, signatários do Mercosul, passaram a invocar a necessidade de tratamento equivalente.
Chegando a questão ao Superior Tribunal de Justiça, porém, este decidiu que a cláusula de tratamento equivalente não seria aplicável, pois PIS e Cofins importação não seriam tributos internos (?!). Teriam natureza de “tributo aduaneiro”, não reclamando assim a aludida equivalência no que tange ao ônus incidente sobre os produtos nacionais (v.g., REsp 1.437.172/RS, REsp 1.485.026/PR, RESP 1.828.976/CE)
Não houve, claramente, “superação” do precedente firmado no REsp 1.002.069/CE, até porque, por esse novo fundamento, de que PIS e Cofins importação têm natureza de “tributo aduaneiro”, não poderiam tais contribuições ser cobradas em quaisquer importações oriundas do Mercosul. O que o STJ fez, de verdade, foi ignorar o que havia decidido antes, tanto as conclusões como, principalmente, os fundamentos. Ou, como diz o Prof. Hugo de Brito Machado, pai, “é e não é, quanto mais, principalmente, mas se não seria, fosse, mas se fosse, não será. O que interessa é que se pague o tributo.”
Na verdade, não há escapatória argumentativa possível que ampare racionalmente a vontade de decidir a favor da Fazenda, no caso suscitado pelos importadores do milho usado para alimentar frangos. Se se entender que PIS e Cofins importação são tributos aduaneiros, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça viola os artigos 2.º e 3.º do Anexo I do Tratado, que vedam a cobrança de quaisquer ônus aduaneiros no comércio recíproco entre os países. Se se entender que PIS e Cofins importação são tributos internos, criados para “igualar” o ônus com o produto nacional, a jurisprudência que, por um motivo ou por outro, permite a cobrança, viola a cláusula do tratamento equivalente constante do mesmo tratado, em seu art. 7.o, além de impactar-se o próprio art. 54 da Lei 12.350/2010. E isso para não referir a violação à igualdade, à não cumulatividade, e ao entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal, relativamente à extensão de tratamentos diferenciados concedidos a produtos nacionais também a produtos importados, em função de compromissos internacionais.
Esclareça-se, desde logo, que não se trata de “estender” a suspensão a tributos aos quais ela inicialmente não seria aplicável. A ideia, subjacente à suspensão, é a de desonerar o mercado interno relativamente ao setor de frangos como um todo, até o varejista, que suporta sozinho o ônus sem direito a crédito. Ao fazê-lo, o legislador suspendeu todas as incidências anteriores, não importando de onde proviriam os produtos, se do Brasil, ou do exterior. Isso simplesmente não tem impacto na arrecadação, o que afasta o óbice representado pelo art. 195, § 5º, da CF/88. Tampouco teria pertinência invocar o disposto no art. 11 do CTN, pois foi o próprio STJ, ao afastar a natureza aduaneira das contribuições, que as equiparou ao PIS e à Cofins internos, inclusive invocando a necessidade de igualdade de tratamento — com relação aos produtores nacionais — para justificar a tributação sobre operações entre contribuintes situados em diferentes países signatários do Mercosul.
Descabido também seria aduzir que as contribuições teriam natureza diversa dos impostos, espécie à qual os dispositivos do Mercosul seriam aplicáveis. Com efeito, o Tratado, cujos artigos 2 e 3 do Anexo I foram transcritos acima, refere-se de maneira expressa a “direitos aduaneiros e quaisquer outras medidas de efeito equivalente, sejam de caráter fiscal, monetário, cambial ou de qualquer natureza, que incidam sobre o comércio exterior.” É evidente que engloba as contribuições, sendo certo que, em matéria de Direito Internacional Tributário, as convenções se aplicam aos tributos substancialmente se enquadram nas hipóteses que preveem, “independentemente da sua denominação (nomen juris), da pessoa de direito público que é seu titular ou do método adotado para a sua cobrança.” (XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 149)
Por outro lado, trata-se de uma suspensão, a qual, em virtude da sistemática da não cumulatividade, em princípio não conduz a qualquer perda na arrecadação. Essa circunstância, aliás, torna mais eloquente a violação à cláusula de tratamento equivalente do Mercosul, pois, em se tratando de produto importado, PIS e Cofins serão integralmente cobrados na importação, mas, se se tratar de milho para a criação de frangos, por exemplo, tais importadores não poderão apropriar-se de quaisquer créditos. E o frango, quando vendido a atacadistas, e depois a varejistas, será submetido à sistemática de suspensão, não gerando créditos aos varejistas, que arcarão com as contribuições de maneira integral. Em se tratando de frangos criados no Brasil, com alimentos advindos do Brasil, esta última incidência será única, monofásica, em virtude da suspensão nos elos anteriores. A contribuição será cobrada no percentual legalmente previsto, sem acumulação. Mas, se qualquer parte anterior da cadeia disser respeito a operação com produtor situado em país diverso, signatário do Mercosul, haverá a incidência na importação, o posterior cancelamento dos créditos em virtude da sistemática de suspensão, e a subsequente incidência na venda a varejo, de forma nitidamente contrária, também, ao princípio da não cumulatividade. O ônus será bem mais expressivo, com cobrança dobrada, apenas e tão somente porque realizadas operações com signatários do Mercosul. A violação não poderia ser mais evidente.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu pela necessidade de concessão do tratamento equivalente, ao apreciar causa relacionada à extensão de isenção concedida a produto nacional, também a produto oriundo de país signatário de tratado internacional no qual se prevê cláusula impondo essa equivalência de tratamento (RE 229.096). E observe-se que, naquela oportunidade, tratava-se de tributo estadual, havendo como suposto óbice, ainda, o disposto no art. 151, III, da CF/88. Mas o STF, amparado no art. 98 do CTN, e na circunstância de que o Tratado não é celebrado pela “União”, mas pela República Federativa do Brasil, determinou a necessidade de que fosse ele respeitado. Resta fazer o mesmo, no que tange ao PIS e à Cofins.
Além do respeito aos compromissos internacionais firmados pelo Brasil, o que não é pouco importante, é preciso garantir a legitimidade do próprio Poder Judiciário, que tem entre seus pilares de sustentação a fundamentação usada nas decisões correspondentes. Decisões assim incoerentes, além de contrariarem o disposto no art. 926 do CPC, impactam a própria ideia de racionalidade que se espera subjazer à atuação do Judiciário, além de transmitir a impressão de que não é a ordem jurídica positivada que serve de critério para os julgamentos, pois ela não pode logicamente consagrar uma exação que ora tem uma natureza, ora tem outra, a depender de qual delas afasta ou tangencia as normas que impediriam a sua cobrança.