Trabalho Contemporâneo

Presunções inconstitucionais: o caso da Súmula 443 do TST

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23 de fevereiro de 2021, 8h04

Semana passada participei de excelente debate junto à Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP) sobre a constitucionalidade da Súmula 443 do TST, aquela que presume como discriminatória todas as dispensas de trabalhadores portadores de HIV ou de qualquer outra doença grave que cause estigma ou preconceito.

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A questão tomou corpo após o ajuizamento da ADPF 648 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e, principalmente, com o parecer do procurador-Geral da República que, em síntese, entendeu pela procedência em parte da arguição, no tocante à generalidade e abstração do texto da súmula que, na prática, implica a distribuição do ônus da prova de forma prejudicial ao empregador que, sempre, precisará realizar a prova de que não houve a prática de ato ilícito (dispensa discriminatória).

Éramos sete palestrantes e o debate findou no placar de 4 a 3, a maioria entendendo que a súmula é constitucional, ficando eu vencido naquele pequeno colegiado composto por advogados e magistrados, todos professores da área. Independentemente do resultado final, que obviamente não significada nada para o futuro julgamento no Supremo, o debate foi deveras proveitoso, com argumentos que me inspiraram a escrever esta coluna para fixar alguns pontos que considerei interessantes.

Em primeiro lugar, não se analisa, no caso da ADPF, a justiça ou não de se presumir a dispensa discriminatória em casos concretos. Posso afiançar que, regra geral, em cada caso que a Justiça do Trabalho examina sobre tais questões, comumente os juízes aplicam a distribuição dinâmica do ônus da prova e atribuem ao empregador o ônus de provar que sua conduta não foi abusiva, o que geralmente consegue o empregador demonstrar através da apresentação de uma justificativa para a dispensa, já que não se pode conceber que haja interesse na realização de dispensas "vazias", que geram custo para a empresa.

Ademais, para o empregado é praticamente impossível provar a motivação interna do empregador para a dispensa, lembrando que em nosso ordenamento jurídico não há previsão legal para que as dispensas sejam motivadas, nem mesmo a jurisprudência se inclinou neste sentido a partir da interpretação do artigo 7º, I, da CF ou do dever de transparência advindo do princípio da boa fé objetiva inerente a qualquer contrato.

O uso da técnica da redistribuição do ônus da prova, autorizada atualmente pelo artigo 818 da CLT nos parágrafos primeiro a terceiro, todos incluídos pela Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista), permite que o efeito prático buscado na Súmula 443 seja concretizado em cada caso, através de decisão devidamente fundamentada, em que o juiz constata a necessidade da redistribuição do ônus da prova e concede os meios para que a parte dele se desincumba, inclusive com o adiamento da audiência, se assim for requerido.

A generalidade e abstração da Súmula 443, portanto, é que pode gerar a inconstitucionalidade aventada no parecer do procurador-Geral da República, pois sua consequência é afetar o direito fundamental à produção probatória decorrente do devido processo legal.

A doutrina processualista afirma de forma pacífica que o direito à prova é um direito fundamental, seja por estar diretamente ligado ao princípio do devido processo legal, estruturante de todo o sistema processual, seja porque a Constituição prevê expressamente o direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5º, LV).

Concretizando este direito fundamental, as normas infraconstitucionais fixam as regras de distribuição dos ônus das partes quanto à produção probatória, lembrando que ônus são deveres, encargos atribuídos aos litigantes dentro do procedimento criado pelo legislador que, se não cumpridos, gerarão consequências para o destinatário. Em outras palavras, quem possui o ônus da prova, se dele não desincumbir, vai suportar, em regra, o insucesso de sua pretensão.

Ora, se temos um direito fundamental concretizado pelo legislador, em regra válida, que atribui o ônus da prova aos litigantes e a forma do juiz atribuir o ônus diversamente, pode a jurisprudência criar uma nova hipótese de "inversão" do ônus abstratamente? E pior, utilizando conceitos vagos e indeterminados? Entendo que não.

E para o caso em análise fica ainda mais fácil se perceber a inconsistência da jurisprudência até hoje pacificada, pois a Súmula 443 data de 2012, época em que não havia o legislador positivado a distribuição dinâmica do ônus da prova dentro do processo do Trabalho que dependia, então, do entendimento de cada juiz, o que simplesmente não era garantia de nada.

Atualmente, portanto, possuímos um sistema no Direito Processual Trabalhista que atribui às partes seus ônus probatórios e as possibilidades de sua inversão, com um limite muito claro: ela não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte, que agora recebe o ônus, seja impossível ou excessivamente difícil, como estipulado no artigo 818, §3º, da CLT.

A presunção abstrata criada pela jurisprudência pode violar o direito fundamental à prova justamente neste ponto, atribuindo ao empregador, sempre, o ônus de provar que sua conduta não foi discriminatória, o que pode resultar na atribuição de prova impossível ou excessivamente difícil, lembrando que os micros e pequenos negócios representam 99% das empresas do Brasil e realizam a contratação da maioria dos empregos formais, conforme dados do Sebrae.

Vale lembrar ainda outros importantes argumentos que pedem, no mínimo, a revisão da Súmula 443, estes lançados pelo amigo e juiz do Trabalho Márcio Granconato durante o debate acima mencionado, no sentido de que a jurisprudência acabou presumindo, a um só tempo, a prática de um ato ilícito pelo empregador e um comportamento de má-fé, quando o próprio ordenamento jurídico pressupõe o oposto, ou seja, a presunção de inocência e a presunção da boa-fé.

Assim, por qualquer ângulo que se observe a questão, a conclusão leva para o mesmo ponto: a Súmula 443 do TST não pode ser aplicada a partir de sua generalidade e abstração. Adotá-la em sua redação como um preceito normativo é, na prática, atribuir ao empregador, sempre, o ônus de provar que não agiu ilicitamente nem de má-fé, e se essa prova, no caso concreto, se apresentar impossível ou excessivamente difícil, azar do empregador, que será fatalmente condenado à reintegração do empregado ou a indenizá-lo em dobro pelo período de afastamento, como determina a Lei 9.029/95 em seu artigo 4º.

Interessante é frisar que, ainda que se entenda constitucional a citada súmula, por não se vislumbrar agressão direta à Constituição, no plano infraconstitucional ela se encontra superada pela legislação posterior, diante da superação do entendimento constante dos precedentes que deram origem à jurisprudência que, por sua vez, restou cristalizada na Súmula 443, em função da lei posterior que positivou os critérios necessários para a redistribuição do ônus da prova (artigo 818 e parágrafos da CLT).

Por último vale lembrar que o julgamento da ADPF 648 possuirá um alcance muito maior do que o imaginado, pois se for inconstitucional a atribuição genérica de presunções por via de súmulas, a tendência será a aplicação do mesmo entendimento para outros casos em que comumente a Justiça do Trabalho utiliza delas para atribuir ônus da prova ao empregador, como a própria presunção de trabalho com vínculo de emprego sempre que o empregador admitir o fato do trabalho, tema que já abordamos aqui anteriormente.

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