Show de informalidade

PGR não pode delegar funções a procurador de primeiro grau via Telegram

Autor

23 de fevereiro de 2021, 9h21

Quando era procurador-geral da República, Rodrigo Janot autorizou, via mensagem no Telegram, o procurador da força-tarefa da "lava jato" em Curitiba Orlando Martello a conduzir, durante missão na Suíça, interrogatório que mencionava autoridades com foro por prerrogativa de função. Porém, a medida foi ilegal, pois tal permissão só pode ser concedida pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal, e jamais via aplicativo de mensagens.

Fellipe Sampaio/SCO/STF
Rodrigo Janot agiu de forma ilegal ao delegar funções via Telegram
Fellipe Sampaio/SCO/STF

Em 12 de maio de 2016, Orlando Martello, que atuava na primeira instância da Justiça Federal no Paraná, enviou a um grupo de mensagens pedido que tinha feito a Rodrigo Janot para seguir interrogando o ex-executivo da Odebrecht Fernando Migliaccio após ele mencionar autoridades com foro especial em depoimento prestado na Suíça.

Em seguida, Martello repassou ao grupo a resposta de Janot. "Prezado Dr Orlando Martello estou ciente de tudo quanto agora relatado por vossa excelência. Autorizo expressamente delegando-lhe as atribuições necessárias para realização da oitava em meu nome. Convalida desde já todos os atos até agora praticados. De agora em diante vossa excelência passa a agir em nome do Procurador-geral da República. Bom trabalho."

Como chefe do MPF, o procurador-geral da República tem competência para atuar em processos contra autoridades com foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça (artigo 46, parágrafo único, III, e artigo 48, II, da Lei Complementar 75/1993).

Em casos excepcionais, membros do MPF podem ser autorizados a exercer atos processuais perante juízos, tribunais ou ofícios diferentes dos estabelecidos para cada categoria. Contudo, a delegação de funções depende de aval do Conselho Superior do Ministério Público Federal, conforme o artigo 57, XIII, da Lei Complementar 75/1993.

Uma vez que não houve deliberação de tal órgão no caso, o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, que também foi subprocurador-geral da República, classifica a delegação de atribuições feita por Janot a Martello como "flagrante ilegalidade".

O professor Pedro Estevam Serrano, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, avalia que a delegação de competência esvazia o sentido jurídico da prerrogativa de foro para autoridades, que tem status constitucional.

O jurista Lenio Streck também destacou a necessidade de formalizar a delegação. Além disso, o colunista da ConJur ressaltou que Martello deveria ter interrompido o interrogatório de Fernando Migliaccio quando ele mencionou autoridades com foro especial. Já que não o fez, a oitiva é nula.

Como exemplo, Lenio citou o caso do ex-senador Demóstenes Torres (DEM-GO). O parlamentar foi alvo de escutas autorizada pela primeira instância nas operações vegas e monte carlo, iniciadas em 2008, e o STF só foi informado um ano depois. Com a divulgação das conversas com o bicheiro Carlos Cachoeira, Demóstenes teve seu mandato cassado em 2012.

No entanto, a 2ª Turma do Supremo anulou em 2016 essas provas contra o ex-senador. Os ministros entenderam que o juízo de primeiro grau usurpou a competência do STF ao liberar interceptações telefônicas contra Demóstenes Torres quando ele tinha foro privilegiado e demorar um ano para comunicar a corte sobre o fato.

Por unanimidade, os ministros consideram as provas ilícitas e criticaram o argumento de que comunicar o STF poderia “implicar prejuízo à investigação”, como declarou em 2015 o Superior Tribunal de Justiça. Todas essas escutas foram descartadas da ação penal contra Demóstenes no Tribunal de Justiça de Goiás, na qual ele foi acusado de corrupção passiva e advocacia administrativa.

Necessidade de formalização
Ainda que a delegação de funções tivesse sido autorizada pelo Conselho Superior do MPF, não poderia ter sido feita via mensagem de Telegram. Eugênio Aragão explica que, para ter validade, a medida deveria ser formalizada via portaria de designação, publicada no boletim interno do MPF.

A publicidade é requisito do ato administrativo, pontua Pedro Serrano. Portanto, o ato que não é publicado não existe no mundo jurídico. Dessa maneira, juridicamente, não houve delegação de competências de Janot a Martello, declara o professor da PUC-SP.

"Se singelamente o PGR mandou um ‘telegrama’ (desculpe a ironia) para o procurador de primeiro grau, a nulidade é flagrante (palavra da moda). O PGR Janot inventou um Código de Processo Penal e uma Constituição Federal adaptados à ‘lava jato’. O ‘CPP russo’, já também conhecido de todos", afirma Lenio Streck.

O ex-juiz federal Sergio Moro é chamado pelos procuradores da "lava jato" de "Russo" em mensagens. Uma das versões para o apelido, segundo consta, teria a ver com a frase de Mané Garrincha, que, na Copa do Mundo de 1958, após a preleção do técnico Vicente Feola antes de um jogo contra a Rússia, teria afirmado ao treinador: "O senhor já combinou com os russos?". 

No julgamento de 9 de fevereiro em que a 2ª Turma do STF franqueou à defesa do ex-presidente Lula o acesso ao material da "vaza jato", o ministro Gilmar Mendes também citou o "CPP russo". Segundo Gilmar, Moro atuou como um verdadeiro legislador positivo, que faz suas próprias regras processuais.

Referindo-se a outra conversa entre procuradores — na qual até eles estranham algumas condutas de Moro —, Gilmar afirmou que o ex-juiz estaria fazendo um novo código de processo penal. "Que não era de Curitiba. Era da Rússia", disse.

"Isso envergonha os sistemas totalitários, que não tiveram tanta criatividade (…). Esse modelo de estado totalitário que se desenhou teve a complacência da mídia", disse ainda Gilmar. "Nós montamos um modelo totalitário. Ou alguém é capaz de dizer que há algo de democrático nesse CPP russo?"

Rcl 43.007

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!