Paradoxo da Corte

Exigência de simetria entre título judicial e liquidação na jurisprudência do STJ

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

23 de fevereiro de 2021, 8h01

Nas ações relativas à obrigação de pagar quantia, segundo os termos do artigo 491 do Código de Processo Civil, a sentença, em regra, deve ser líquida.

Determina-se, ainda, ao juiz ou tribunal o dever de especificar, na sentença ou no acórdão que impuser condenação (parágrafo 2º do artigo 491), tanto quanto possível, a extensão da obrigação, vale dizer, o valor líquido, e, ainda, os critérios da respectiva atualização, ou seja, "o índice de correção monetária, a taxa de juros, o termo inicial de ambos e a periodicidade da capitalização dos juros".

Não é preciso frisar que a mens legislatoris, no sentido de evitar a prolação de sentenças ilíquidas, merece os maiores encômios, simplesmente porque, com essa providencial determinação, evitar-se-á enorme e interminável discussão que, na maioria das vezes, eclode ao ensejo da liquidação acerca dos cálculos apresentados pelo exequente, e que, não raro, chega a se prolongar até a fase de cumprimento de sentença.

Não obstante, o parágrafo 1º do artigo 324 do mesmo diploma legal admite que o pedido, embora deva ser determinado, possa ser excepcionalmente formulado de forma genérica. É o que sucede: a) nas denominadas ações universais, como a de petição de herança, quando o demandante não tiver como a priori individuar os bens demandados; b) quando impossível delimitar prontamente a extensão do ato ou fato, para quantificar o montante do dano, como, v. g., nas ações individuais ou coletivas visando à recomposição do meio ambiente; ou, ainda, c) nas hipóteses em que a determinação do objeto ou do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu, a exemplo da (agora denominada) ação de exigir contas (artigos 550 a 553 do Código de Processo Civil).

Nesses casos, constituindo exceção à regra, a sentença conterá condenação ilíquida, tornando-se necessário efetivar-se a apuração do quantum debeatur ou a especificação do objeto da condenação por meio de liquidação.

A liquidação de sentença tem, assim, a finalidade de encontrar o montante de uma dívida preexistente ou a abrangência exata da obrigação, reconhecida por decisão judicial. A exigência de liquidação decorre, pois, como destaca Luiz Rodrigues Wambier, da excepcionalíssima circunstância de ser proferida sentença genérica ou ilíquida, visto que impossível ao julgador determinar, desde logo, na sentença, o valor da condenação ou individuar o objeto da obrigação. Procura-se, destarte, pela liquidação, eliminar a generalidade da condenação, de forma que a sentença se torne exequível ("Breves comentários ao novo Código de Processo Civil" (obra coletiva), 3ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2017, p. 1.313)

Seja como for, consolidado o título judicial com o advento do trânsito em julgado, não será possível alterar o seu respectivo conteúdo se for necessária a apuração do quantum debeatur, no incidente de liquidação que sucede a fase cognitiva do processo.

Invoque-se, a propósito, o artigo 509, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil, que tem a seguinte redação: "Na liquidação é vedado discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou".

Enfatiza, a propósito, ainda uma vez, Luiz Rodrigues Wambier, à vista dessa regra legal, qualquer que seja a espécie de liquidação: "O respeito àquilo que foi objeto da sentença liquidanda é absolutamente inarredável, sob pena de desrespeito à coisa julgada já ocorrida no processo cuja sentença se vai liquidar, ou até mesmo à própria sentença, se ainda não tiver ocorrido o trânsito em julgado" ("Liquidação de sentença", São Paulo, Ed. RT, 1997, pág. 110).

Acrescentam, nesse sentido, Theotonio Negrão et alii ("Código de Processo Civil e legislação processual em vigor", 51ª ed., São Paulo, Saraiva, 2020, p. 575, nt. 16 ao artigo 509), invocando inclusive precedentes judiciais que sufragam a mesma tese: "Ainda que as partes hajam concordado com a liquidação, é lícito ao juiz deixar de homologá-la, desde que em desacordo com a coisa julgada, 'para impedir que a execução ultrapasse os limites da pretensão a executar'…".

Na verdade, como já teve oportunidade de decidir a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em antigo, mas ainda atual, julgamento do Recurso Especial nº 276.010-SP, relatado pelo saudoso ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, na órbita da fase de liquidação: "a parte pode discordar dos valores apurados, porém não reverter a condenação já imposta na sentença de mérito. A controvérsia que se pode instaurar diz respeito apenas à quantidade da condenação, mas não à sua qualidade…".

Revelando a coerência da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca desse verdadeiro dogma, a 1ª Turma, no julgamento do Recurso Especial nº 1.409.705-DF, com voto condutor do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, decidiu que:

"A fixação de novas balizas para o cálculo do valor devido, já na fase de liquidação por arbitramento, implicaria em evidente vulneração dos soberanos comandos da coisa julgada, tida como inviolável no Juízo da Execução, graças ao celebrado princípio da fidelidade à res judicata, de tão antiga quanto respeitável tradição; os escritores processualistas costumam dizer que a coisa julgada é o produto mais elaborado da jurisdição, que tem a virtude de pôr termo à controvérsia, ainda que qualquer das partes possa, em pedido de rescisão, insurgir-se contra o seu comando; na lição de Gabino Fraga, a coisa julgada faz do preto, branco, e do círculo, um quadrado".

Em senso idêntico, a 3ª Turma do referido sodalício federal, por ocasião do julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 270.971-RS, da relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, averbou que:

"No caso em tela, a pretendida inclusão de juros sobre capital próprio nos cálculos exequendos sem amparo no título executivo, configuraria ofensa ao princípio da fidelidade, não havendo que se cogitar acerca de eventual decorrência lógica da verba, pois essa matéria encontra-se superada por força da eficácia preclusiva da coisa julgada (artigo 474 do CPC atual artigo 508)".

Assim, em toda liquidação de verbas decorrentes de condenação, o que se procura é a apuração apenas e tão somente do montante do valor devido; jamais dos parâmetros estabelecidos no título exequendo!

Com efeito, consoante entendimento unânime da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, assentado no julgamento do Reclamação nº 10.090-MT, na esfera da liquidação, não cabe rediscutir a causa, senão apurar o valor da condenação, porquanto:

"É exigência indispensável da segurança jurídica que as decisões judiciais sejam executadas (ou cumpridas) com absoluta fidelidade aos seus exatos conteúdos, sem ampliações ou encurtamentos de seu alcance, e este é um princípio dos mais caros e elevados da doutrina processual contemporânea, a cujo respeito não é admissível transigir".

E isso porque o eventual debate deve cingir-se ao quanto foi decidido, como bem pontuou outro importante precedente da mesma 3ª Turma do referido pretório federal, no Recurso Especial nº 29.151-RJ, no sentido de que os limites da liquidação devem ater-se aos contornos da coisa julgada, pois "se o tema não foi ventilado na decisão", não pode ser objeto da liquidação.

Não sobeja dúvida que essa sábia e uníssona orientação pretoriana, prestigiando a garantia constitucional da coisa julgada, traduz-se em segurança jurídica aos litigantes!

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