Academia de Polícia

Ministros investigadores e devido processo legal

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

23 de fevereiro de 2021, 8h03

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça são órgãos jurisdicionais de sobreposição [1], e não agências oficiais de investigação. A importância basilar dessas cortes à preservação da ordem jurídica e do próprio regime democrático é indiscutível; justamente por isso, aliás, devem observância primeira e irrestrita ao desenho institucional do sistema de justiça criminal estabelecido no país pela Constituição.

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O desrespeito aos limites constitucionais, ainda que em face de situações extremas de violência aos tribunais (e aos seus próprios membros), não representa uma opção (legítima) diante da cláusula maior de balizamento às mais diversas formas de intervenção estatal que é o devido processo legal [2], princípio fundamental reconhecido "tanto no Direito internacional dos direitos humanos quanto no constitucionalismo contemporâneo".[3]

A Constituição da República, ao estabelecer, em seu artigo 5º, inciso LIV, que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal", não erigiu o formalismo a primado constitucional, e, sim, "um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm dever de decidir" [4].

Trata-se, portanto, de uma exigência do Estado democrático de Direito, que se efetiva por meio de um "juízo de legalidade constitucional devido a todo e qualquer sujeito de direito, para que se expurgue o arbítrio do agente do poder público, seja ele legislador, administrador ou juiz", nas palavras do mestre baiano Calmon de Passos [5].

O que, por óbvio, incide desde a fase de investigação preliminar no processo penal [6], a começar pela definição constitucional do órgão responsável pela condução (ou presidência) desse importante procedimento apuratório (prévio) em torno da justa causa processual penal [7]. Nesse particular, sempre oportuno recordar a lição de José Afonso da Silva, professor titular aposentado da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no sentido de que "a Constituição se ocupou do tema, conferindo a investigação na esfera penal à polícia judiciária".[8]

Por conseguinte, eventual previsão regimental não é suficiente para conceder aos tribunais poderes investigativos criminais. Isso porque, antes de qualquer coisa, há um lugar constitucionalmente demarcado ao Poder Judiciário em um sistema processual penal de matriz acusatória, qual seja, o de garante, e não de investigador (ou instrutor) do caso criminal [9].

Nesse sentido, as disposições investigativas de natureza penal estabelecidas tanto pelo regimento interno do STF (artigo 43) quanto do STJ (artigo 58) [10], bem como repetidas país afora em outras instâncias judiciais [11], há muito deveriam ter sido afastadas mediante processo de filtragem constitucional. O que se tem visto, contudo, nos últimos tempos, por parte desses tribunais, é justamente um movimento contrário, caracterizado pelo emprego, inclusive alargado [12], desses dispositivos flagrantemente inquisitivos, que remontam ao período de exceção no Brasil [13], a fim de embasar a instauração de inquéritos judiciais [14].

Assim ocorreu no polêmico inquérito das fake news, ainda em tramitação junto ao Supremo Tribunal Federal (Inquérito 4.781), e agora, na última semana, com a decisão do presidente do Superior Tribunal de Justiça de instaurar inquérito para apurar supostas tentativas de intimidação a ministros do STJ, por meio de procedimentos apuratórios ilegais, que vieram a público depois do levantamento do sigilo das pretensas mensagens trocadas entre membros da magistratura e do ministério público nos arquivos da operação "spoofing".

É claro que ambas as situações exigem regular apuração e devida responsabilização dos autores, inclusive na esfera criminal, porém sem nunca descurar da garantia fundamental do due process of law, uma das "vigas-mestras do Estado de direito que tem por fundamento e por escopo a tutela da liberdade do indivíduo contra as várias formas de exercício arbitrário do poder, particularmente odioso no direito penal"[15].

Inadmissível, portanto, que tais fatos sejam apurados preliminarmente em inquéritos judiciais, colocando em xeque a imparcialidade, pressuposto indispensável e caráter essencial da jurisdição [16]. É preciso superar, em definitivo, os ranços inquisitivos que outorgam aos juízes funções que não lhe são próprias como a de realizar investigações criminais [17], ainda que em circunstâncias tidas (regimentalmente) como excepcionais.

Enfim, a eliminação desse tipo de "degradação funcional" [18] da magistratura, também presente nas cortes superiores, figura como etapa necessária para a redução das ilegalidades (de)formadoras do sistema de justiça criminal brasileiro e à (re)valorização do texto constitucional para além de qualquer inimigo (ou garante) de ocasião. Algo que, no fundo, toca diretamente as bases do próprio Estado de Direito.

 


[1] “O verdadeiro órgão de sobreposição é o STF, que não pertence a nenhuma das ‘Justiças’, e a ele podem chegar causas advindas de todos os órgãos do Poder Judiciário. Por seu turno, o STJ é um órgão de sobreposição, porque também não pertence a nenhuma das ‘Justiças’, mas se sobrepõe apenas à Justiça Estadual e do Distrito Federal’ e à ‘Justiça Federal’” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 267).

[2] A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que a garantia do devido processo legal “abarca las condiciones que deben cumplirse para la adecuada defensa de aquéllos cuyos derechos u obligaciones están bajo consideración judicial” (CIDH. Opinión Consultiva 9/1987Garantías Judiciales en Estados de Emergencia. Disponível em: < https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_09_esp.pdf>. Acesso em: 22.02.2021).

[3] DUCE J., Mauricio; FUENTES M., Claudio; LILLO L., Ricardo; VARGAS P., Macarena. El Debido Proceso en la Constitución. Santiago/Chile: Facultad de Derecho de la Universidad Diego Portales.

[4] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo: julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 69.

[5] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo: julgando os que nos julgam…, p. 73.

[6] MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de Inquérito Policial. 01 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2020, p. 28; TUCCI, Rogério Lauria; CRUZ e TUCCI, José Rogério. Devido Processo Legal e Tutela Jurisdicional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 25-29. Vale mencionar, ainda, que a incidência do devido processo legal à fase de investigação preliminar constitui disposição expressa de algumas ordens constitucionais no continente latino-americano. Cite-se, por exemplo, o artigo 19.3 da Constitución Política de la República de Chile de 1980: “Artículo 19. La Constitución asegura a todas las personas: 3º La igual protección de la ley en el ejercicio de sus derechos (…) Toda sentencia de un órgano que ejerza jurisdicción debe fundarse en un proceso previo legalmente tramitado. Corresponderá al legislador establecer siempre las garantías de un procedimiento y una investigación racionales y justos”.

[7] “A investigação preliminar goza, no plano teórico-jurídico, de importância fundamental em um sistema criminal fundado na dignidade da pessoa humana. A existência de etapa instrutória prévia (ou seja: anterior ao processo) visa teoricamente afastar acusações desvairadas, sem elementos informativos mínimos, em face das quais o único efeito concreto será aquele decorrente das “penas do processo”, quais sejam, a eterna rotulação de acusado e todas as suas consequências nefastas à subjetividade, o que independe de qualquer condenação criminal” (MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução Crítica à Investigação Preliminar. 01 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 55). De modo semelhante, afirmam Montero Aroca, Gómez Colomer, Montón Redondo e Barona Vilar: “La que se ha denominado ‘pena de banquillo’, es decir, el hacer que una persona llegue a sufrir un juicio, con todos los inconvenientes que ello le supone, sólo se justifica si antes se han acreditado los indicios (…) El procedimiento preliminar tiene, pues, finalidades muy complejas. No sólo sirve para preparar el juicio oral, pues puede llegar a servir para impedir que ese juicio oral se celebre” (MONTERO AROCA, Juan; GÓMEZ COLOMER, Juan-Luis; MONTÓN REDONDO, Alberto; BARONA VILAR, Silvia. Derecho Jurisdiccional: Proceso Penal. v. III. 10 ed.. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 119).

[8] SILVA, José Afonso da. Em face da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir investigação criminal, diretamente? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 12, n. 49, jul.- set. 2004, p. 376-377.

[9]A cultura acusatória, do seu lado, impõe aos juízes o lugar que a Constituição lhes reserva e de importância fundamental: a função de garante! Contra tudo e todos, se constitucional, devem os magistrados assegurar a ordem posta e, de consequência, os cidadãos individualmente tomados” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os Sistemas Processuais Penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 132-133).

[10] Artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal / Artigo 58 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. § 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. § 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal”.

[11] A mesma lógica normativa pode ser encontrada nos regimentos internos de tribunais regionais federais e tribunais de justiça estaduais. Cite-se, v.g., o artigo 359 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “Se ocorrer infração à lei penal na sede ou em dependência do Tribunal de Justiça, o presidente: I – requisitará a presença de autoridade policial de plantão para a lavratura do auto de prisão em flagrante se for o caso; II – mandará instaurar inquérito se a infração envolver pessoa sujeita a sua jurisdição; e III – comunicará o fato à autoridade competente para a instauração de inquérito”.

[12] Ao requisito espacial (“infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal”) foi conferida uma interpretação ampliada (ou atualizada) pelas próprias Cortes, sem qualquer modificação regimental, com o objetivo de alcançar os crimes praticados em ambientes virtuais.

[13]Substancialmente, tais dispositivos em nada diferem — em absolutamente coisa nenhuma — do que já se continha no regimento anterior, publicado no Diário da Justiça da União na edição de nº 167, no dia 4 setembro de 1970, quando nos porões da ditadura brasileira (comandada por militares das Forças Armadas) centenas de brasileiros e de brasileiras sofriam tortura, e outros tantos e tantas eram assassinados e assassinadas” (MORAIS DA ROSA, Alexandre; MOREIRA, Rômulo de Andrade. Antes e depois da (in)validade da investigação de ofício do STF. São Paulo: Consultor Jurídico, 09 jun. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-09/rosa-moreira-invalidade-investigacao-oficio-stf>.

[14] O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 572, reconheceu a constitucionalidade do artigo 43 de seu Regimento Interno, que serviu de base à instauração do Inquérito 4.781. Acompanhe: “Nos limites desse processo, diante de incitamento ao fechamento do STF, de ameaça de morte ou de prisão de seus membros, de apregoada desobediência a decisões judiciais, arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada totalmente improcedente, nos termos expressos em que foi formulado o pedido ao final da petição inicial, para declarar a constitucionalidade da Portaria GP n.º 69/2019 enquanto constitucional o artigo 43 do RISTF, nas específicas e próprias circunstâncias de fato com esse ato exclusivamente envolvidas” (STF – ADPF 572/DF – Rel.: Min. Edson Fachin – j. em 18.06.2020 – DJe 271 de 13.11.2020).

[15] BOBBIO, Norberto. Prefácio à 1ª Edição Italiana. In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 04 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 7.

[16] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 90-91. Adverte o autor: “A jurisdição não existe se não for imparcial” (ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos…, p. 86).

[17] POSTIGO, Leonel González. Pensar na Reforma Judicial no Brasil: conhecimento teórico e práticas transformadoras. Trad. Fauzi Hassan Choukr. 01 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2018, p. 27.

[18] POSTIGO, Leonel González. Pensar na Reforma Judicial no Brasil: conhecimento teórico e práticas transformadoras…, p. 27.

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    é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.

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