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Reduzir políticas públicas essenciais é fomentar violência

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22 de fevereiro de 2021, 8h00

A existência do Direito no mundo moderno só cumpre seu papel quando a parcela de liberdade cedida pela sociedade ao Estado é usada para solucionar os conflitos da forma menos violenta possível e atender ao interesse da maior parte das pessoas, naquele intervalo de tempo [1].

No entanto, é comum que, de tempos em tempos, parte da sociedade questione o formato das soluções ofertadas pelo Direito posto. Às vezes, uma interpretação normativa distinta da que se costumava dar, é suficiente para ajustar o Direito aos valores vigentes em determinada comunidade. Outras vezes, há necessidade de reforma legislativa. Outras tantas, manter a norma como está, apesar de… é indispensável para a prevalência da dignidade humana e da segurança jurídica, indispensáveis à ordem social almejada no Estado democrático de Direito [2].

Uma lei constantemente posta em xeque no Brasil é o Estatuto da Criança e do Adolescente — Lei nº 8.069/90, tida pelo senso comum como uma norma que privilegia os interesses dos "menores" e assegura sua impunidade, o que faz com que se passe a questionar a própria Constituição Federal, ao menos no tocante à maioridade penal [3].  

E por que tratar disso agora? Porque sempre que há um momento em que ecoam mais alto os valores conservadores, há uma tendência a acreditar que o endurecimento das regras penais é capaz de trazer a tão desejada paz social, o que não é cientificamente comprovado, pois a ocorrência do ilícito depende de um sem-número de fatores pessoais (individuais) e ambientais e, com isso, diferentes lugares que endurecem suas regras podem ter resultados diametralmente opostos e até os mesmos lugares, em momentos distintos, podem ter resultados distantes.

Com nome diferente, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a privação de liberdade como um dos meios de punir e educar a pessoa que, com menos de 18 anos, praticou ato com grave ameaça ou violência contra a pessoa, descumpriu medida anteriormente imposta ou reiterou a prática de atos infracionais [4].

A diferença entre a sanção aplicada ao adolescente e jovem autor de ato infracional e o adulto está tão somente na quantidade de tempo que o indivíduo que cometeu o ilícito pode ficar privado de liberdade, o que é razoável considerando-se, proporcionalmente, a razão entre anos de vida e anos privados de liberdade.

Ao contrário do que se imagina, o adolescente autor de ato infracional autor de ato infracional grave é tratado com o rigor indispensável à sua adequação às normais de convívio social. Tão firme é o tratamento dado que a lei que estabeleceu o sistema nacional de atendimento socioeducativo (Lei nº 12.594/2012) lembra à Justiça da Infância e Juventude que, além de ser observado o princípio da legalidade, não pode "o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto".

De antemão, é importante lembrar que o Direito brasileiro não prevê, para nosso dia a dia, pena de morte ou prisão perpétua, partindo do pressuposto de que a execução da pena atribuída a um adulto criminoso (ou da medida socioeducativa a um jovem) será capaz de fazê-lo voltar ao convívio social apto a não mais descumprir as normas.

O pressuposto da reeducação (ou socioeducação) é que, durante o cumprimento da pena (ou da medida socioeducativa) haverá um investimento do Estado para encontrar e sanar a causa que levou o indivíduo à prática tão grave que gerou o cerceamento de sua liberdade. Tanto a Lei de Execuções Penais como o Estatuto da Criança e do Adolescente preveem o atendimento multidisciplinar dos infratores a fim de modificar o que tem de nocivo em seu comportamento.

É evidente que quanto mais tarde a interferência do Estado ocorre mais demorado é o processo de identificação das causas da criminalidade [5] e sua reversão, daí a enorme importância da intervenção precoce, disciplinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 100. Atuando-se com eficiência e oportunamente junto ao adolescente que comete ato infracional, evita-se o adulto criminoso e, antes ainda, intervindo no momento adequado com a criança e o adolescente em situação de risco, evita-se que chegue a ser adolescente autor de ato infracional.

Importante pedir ao leitor que reflita, a partir do universo de crianças e adolescentes que convive, quantos desses tem uma essência que os leva(ria) a cometer "maldades" e quantos aprenderam essas mesmas "maldades" a partir do que observaram no curso de sua vida [6]?

Partindo do pressuposto que a maior parte das pessoas não possui transtorno de personalidade [7] (notadamente antissocial), é de se verificar que o meio em que vivem as impulsionou para a prática de atos para os quais não tinham predisposição. Por outro lado, identificar, dentre os autores de delitos, os portadores dos tipos de transtorno de personalidade que os levaram a cometer crimes (ou atos infracionais) e a eles ofertar tratamento diferenciado (às vezes demandando até isolamento) também é desafio essencial para a compreensão e o sucesso do processo de (res)socialização.

Em isolamento social por cerca de um ano, vimos os índices da violência cometida contra crianças e adolescentes aumentar. Como sociedade, fomos capazes de perceber a vulnerabilidade dessas vítimas e nos mover em direção à sua proteção?

O que podemos fazer ao constatar a insuficiência da rede de proteção à criança e ao adolescente em impedir tamanhas agressões, resgatar oportuna e adequadamente as vítimas ou atuar, com qualidade, no processo de recuperação da dignidade das crianças e adolescentes agredidos?

Ensinando-as, através da família e da comunidade a que pertencem, a linguagem da violência, do ódio, da indiferença, do desprezo e da dor, que linguagem esperamos que aprendam e nos devolvam?

Quantas vezes passamos por crianças "de rua" e tivemos medo?

Quantas sentimos raiva da própria criança por estar ali?

Em quantas nos perguntamos, sinceramente, por que uma criança preferia estar ali?

Em quantas tomamos qualquer providência para que aquela criança saísse ou não precisasse estar ali?                                                                              

Pois bem, inúmeros são os casos em que crianças, na primeira infância [8], fogem de suas casas (por serem agredidas das mais diversas formas e serem obrigadas, para se protegerem, a fugir). Inúmeras são as situações em que, tendo falhado a família, a sociedade e o Estado, crianças optam, por uma questão de sobrevivência, pela selva de pedra que é a rua. Nem sempre as crianças conseguem fugir, mas as que conseguem passam a conviver com outras batalhas igualmente violentas. A maioria das crianças vítimas de violência familiar, com menos força/sorte, segue nos seus infernos familiares.

Há, ainda, as crianças que crescem parte do tempo nas escolas públicas (quando há vagas) e outra parte nas ruas, enquanto suas mães e avós lutam pelo "pão nosso de cada dia", tendo sua educação concluída pelos adultos sedutores e criminosos, que romanceiam o futuro de quem entra na criminalidade e evidenciam a cruel realidade da falta de mobilidade social brasileira.

Com isso quero dizer que pobreza é condição sine qua non para a criminalidade? Ou que ser pobre leva, necessariamente, à prática delitiva? Claro que não! Quero dizer que a maior parte dos brasileiros resiste bravamente a todos esses chamados e evita a criminalidade! Mas uma pequena parte, a que ingressa, lutou todas essas batalhas antes de se tornar criminoso (ou autor de ato infracional).

É papel do Estado, através de seus inúmeros órgãos, proteger essas crianças e adolescentes de forma a evitar seus intensos sofrimentos ou, não evitando, reduzir, ao máximo, os danos deles decorrentes. Para isso, é indispensável que os equipamentos públicos que atendem a essas crianças e adolescentes sejam dotados de pessoal e equipamentos de qualidade, o que impõe investimento do dinheiro público.

É dever, também, da sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, seus direitos, consoante estabelece o artigo 227 da CF/88. A Constituição direciona a sociedade a um olhar protetor para esse público essencialmente vulnerável, por ser esse o único caminho para o Estado brasileiro alcançar seu objetivo de uma sociedade livre, justa e solidária.

Quando se fala que investir em criança e adolescente é proteger o futuro de uma nação, não se pode dizer maior verdade. E, ao contrário, defender a redução de gastos em áreas fundamentais para a proteção de crianças, adolescentes e suas famílias é prejudicar a si mesmo e, consequentemente, à nação.

Sábia é a Constituição Federal ao determinar que a criança e o adolescente são prioridades absolutas, devendo [9] ter prioridade na formulação e execução das políticas públicas, na destinação de recursos públicos, entre outros.

Assim, se, em algum momento, o leitor ouvir falar em redução da maioridade penal, que tal cumprir seu dever constitucional e inverter esse discurso equivocado, explicando, a importância da ampliação do investimento em políticas públicas de proteção e promoção dos direitos das crianças e adolescentes.


[1] WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, estado e direito. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2003. Pp. 80 e seguintes.

[2]VASCONCELOS, Ruth. "A violência e a violação dos direitos humanos: um sintoma de déficit democrático no Estado de Alagoas", In VASCONCELOS, Ruth e PIMENTEL, Elaine (orgs), As faces da segurança pública e dos direitos humanos em Alagoas. Alagoas: EdUFAL, 2011. Pp. 19 e seguintes.

[3] Artigo 228, da CF/88

[4] Artigo 122, do ECA

[5] Em regra ligadas a fatores ambientais e pessoais (de personalidade).

[6] "Segundo especialistas, de 3 a 15 % da população mundial é composta de psicopatas e eles reincidem na criminalidade três vezes mais que bandidos comuns". https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/mentes-perigosas

[7] "Existem caracterizados hoje dez transtornos de personalidade diferentes nos códigos de classificação dos transtornos mentais (CID 10 e DSM 5). Um deles é o transtorno de personalidade antissocial. Temos os outros transtornos de personalidade: boderline, esquizóide, esquizotípica, obsessivo-compulsiva, paranoide, esquiva, dependente, narcisista e histriônico". Esclarecimento do psiquiatra alagoano João Facchinetti para ajuste desse artigo.

[8] Crianças até seis anos de idade, segundo a Lei nº 13.257/2016.

[9] Nos termos da Lei nª 8.069/90.

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