Opinião

A força do Estado e a (des)igualdade jurídica das famílias plurais

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21 de fevereiro de 2021, 7h14

Em dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu que não é possível a caracterização de famílias simultâneas. A decisão enterra, ainda que momentaneamente, a atribuição de direitos típicos e próprios do estatuto familial para essa constituição, chamada de paralela. É considerada como família aquela que primeiro se organiza. Aquelas que se formam depois, sem que o primeiro casal se separe, não terão efeitos jurídicos decorrentes do estatuto familiar, como o direito a nome, direitos patrimoniais, assistenciais e sucessórios.

A decisão mostra a força do Estado, consagra a monogamia e a fidelidade como bases principiológicas e o repúdio ao concubinato, todos instrumentos de controle dos corpos e dos afetos.

A família patriarcal brasileira, patrimonial e matrimonializada, fincou raízes profundas no imaginário social. A ausência de mulheres portuguesas deu origem a novas acomodações e alianças (Aziz N. Ab´Saber, 2003), com filhos que não eram reconhecidos caso os pais não fossem casados entre si, pois nas Ordenações do Reino até 1890 a família legítima exigia o casamento religioso, católico e público, uma forma de evitar o concubinato. O vínculo era indissolúvel, deixando à margem outros arranjos pessoais.

Os contratos matrimoniais garantiam a distribuição patrimonial — e a administração dos bens era feita pelo marido, cabeça do casal. O casamento sacralizava as famílias e garantia a honra paterna, afiançada a todo custo para o homem que dera à família o seu nome e sustento, modelo burguês do casamento monogâmico. O papel da mulher era com os cuidados da casa, exigindo como deveres a sua castidade, doçura e submissão, naturalizando os papeis de gênero tradicionais.

Eles atribuem poder ao patrimônio e posições de vantagens jurídicas e sociais aos homens. As prerrogativas da família sanguínea, a força do sistema de trocas, a importância do parentesco e de suas derivações, como o compadrio (Samara, 1997), revelam o apego ao convívio familiar e a dicotomia entre liberdade e reclusão.

A passagem da família patrimonial para a afetiva tem como ponto de empuxo a luta das mulheres para a concretização de direitos civis. O giro está no foco de interesses, que começa a ser deslocado do homem para cada um dos integrantes do grupo familiar. A saída das mulheres do ambiente doméstico, dos cuidados com casa, filhos, pais e maridos, e a realização dos ideais de liberdade e de igualdade traçam outros contornos.

A complexidade e importância do movimento impõem a reorganização dos papeis familiares como forma de resistência à vontade marital e paterna. O reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos e de cuidados diferenciados aproxima os membros das famílias, ressignificando o espaço privado.

A naturalização de um único modelo legal nuclear e matrimonial não reflete com exatidão as famílias reais, que vão se modificando. Romper com o padrão pode agitar o processo político e exatamente aí tem-se a complexidade do fenômeno jurídico, com dificuldades e necessidades em incorporar essas mudanças. Como se o corpo social criasse ideias e possibilidades, exigindo do Direito respostas e mudanças para garantir a plena realização dessas famílias.

Nesse ambiente, o amor romântico enfrentou o desquite, a separação e o divórcio como etapas para a regularização e o acolhimento de famílias democráticas, igualitárias e plurais. A capilaridade desses vetores irriga as (re)configurações familiares e a multiplicidade social. Não é simples viver no mesmo mundo quando já se é tão diferente dele. As relações amorosas são a causa de união — e não há razão para mantê-la se sobrevier o desamor.

A impossibilidade de dissolver o vínculo conjugal pela manifestação da vontade das pessoas implicava a existência de famílias informais, por vezes sem os direitos próprios e típicos das famílias e com o preconceito do concubinato. Se uma parte da sociedade precisava de instrumentos de realinhamento de suas relações jurídicas, aqueles que tinham acesso a essas possibilidades rejeitavam as mudanças.

Na defesa de uma família única, eterna e perene, a maioria dos legisladores defendia o casamento civil como indissolúvel (Carneiro, 1977), aproximando-o do religioso. As mudanças para admitir a dissolução do vínculo, liberando o antigo casal do acordo conjugal, colocou o divórcio a serviço das famílias, que poderiam se reorganizar com redução de conflitos, o que é de interesse das famílias.

Há outras famílias que se organizam a partir dos acolhimentos e dos laços amorosos sem que haja a formalidade do matrimônio. A relação pode ser valorizada a partir da atribuição de significados aos amores, ciúmes, cuidados, sentimentos, sem sinais diacríticos das sexualidades e da pluralidade afetiva.

A transposição pelas formações das famílias passa por lutas sociais e políticas na reorganização do ordenamento jurídico e no estatuto familiar. A escolha é de cada casal e decorre de questões pessoais, sociais e até mesmo econômicas. Nesse espaço de identificações e de individuação, as pessoas se encontram, desencontram, realizam, frustram as suas expectativas e a dos outros também. Integrar uma família, se reconhecer como membro, dá sentido à vida e às ideias. O grupo ao qual uma pessoa pertence não necessariamente é o mesmo tipo performado por outras pessoas.

Sair da invisibilidade tem sido um longo processo para as famílias plurais, com outras conjugalidades e parentalidades distintas do modelo nuclear heteronormativo. A resistência social tem sido superada a partir das interpretações humanitárias, com reconhecimento e alargamento conceitual aos mais diversos grupos familiares. A garantia na concretização da afetividade revela suporte à dignidade da pessoa humana.

As famílias não são apenas nucleares, há singularidades e possivelmente têm como traços em comum a intimidade, o amor conjugal, parental ou filial (Ferry, L. 2013). A preocupação com a manutenção do patrimônio dentro de um mesmo grupo ainda parece superar o interesse pela existência de casais que têm histórias e filhos em comum.

O comportamento do Direito, considerando as mudanças do corpo social, analisado à luz de cada processo histórico e social, pode iluminar as discussões sobre novos projetos familiares. Elas podem distar uma da outra, em outras oportunidades se aproximam, exatamente por considerar a organicidade das famílias. Elas pulsam, são vivas, ativas e não respondem exatamente ao processo legislativo. A interferência do Estado em direitos individuais parece distante da realidade social.

Respeitar a historicidade do direito das famílias, relativizar o tempo para não condenar o espírito conservador pode ser uma dificuldade para aqueles que defendem a modificação do estado das coisas. Aí se encontra a necessidade de ampliar o espaço para discutir o movimento que mudará o Direito das famílias. A proposta para a igualdade jurídica entre as famílias plurais, talvez um ato liberatório para a livre realização amorosa, pode ser uma contribuição do Legislativo e do Judiciário para a sociedade.

 


Referências bibliográficas
— AZIZ N. Ab´Saber…[et al.]. História Geral da Civilização Brasileira. Época colonial. Tomo I, v.1: do descobrimento à expansão territorial. Direção Sérgio Buarque de Holanda. 13ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

— FERRY, Luc. Do amor: uma filosofia para o Século XXI. Tradução Rejane Janowitzer. 1 ed. Rio de Janeiro: Difel, 2013.

— SAMARA, Eni de Mesquita. A família no Brasil: história e historiografia. História Revista 2. 7-21. Jul/dez. 1997. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/ historia/article/viewFile/10680/7096?journal=historia Acesso em 16 fev. 2021.

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