Política de cotas

"Brasil precisa se assumir racista", diz autor da proposta de cotas na OAB

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21 de fevereiro de 2021, 7h29

Spacca

O Brasil é um país racista e precisa se assumir como tal. Só assim começará a combater de forma efetiva a discriminação racial e o massacre da juventude negra por agentes do Estado.

É o que diz acreditar o advogado e conselheiro federal da OAB, André Costa. Especializado em Direito Público e Eleitoral, Costa atua na Justiça Eleitoral do Ceará, no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal. Paralelamente aos compromissos profissionais, ele se dedica ao ativismo na promoção de igualdade racial. É dele a proposta que implementou uma política de cotas nas eleições da Ordem dos Advogados do Brasil.

Em entrevista à ConJur, Costa — que é o único negro no Conselho Federal da OAB — explica o potencial transformador de sua proposta. "Daqui cinco, dez ou 15 anos, nós vamos olhar para trás e se indagar sobre como podia ser assim. É algo que causa perplexidade você ter um único conselheiro negro dentro de 81 conselheiros titulares que fazem parte do Conselho Federal da OAB. E eu não digo isso com alegria e nem com estirpe de vingança em relação ao sistema; mas a gente precisa parar e avaliar se isso está certo. Se é justo e se representa a advocacia brasileira", argumenta.

Ele considera que a implantação de cotas no processo eleitoral da Ordem ajuda a desnaturalizar o lugar do negro. "O nosso racismo é tão implacável que nós tivemos 358 anos de escravidão das pessoas negras. 132 anos depois nós ainda temos uma política populista que direta ou indiretamente afasta a população negra dos melhores e maiores cargos. Nós naturalizamos que o lugar do negro é do serviçal, do trabalhador, do empregado. O negro pode ser médico, pode ser engenheiro, pode ser advogado, pode ser juiz, pode ser promotor, pode ser ministro", explica.

A proposta de cotas na OAB passa a valer já neste ano e garante 30% dos postos disputados a advogados negros. A reserva mínima valerá pelo período de dez eleições.

Leia a entrevista:

ConJur — Como surgiu a ideia da proposta de cotas? Quanto tempo o senhor trabalhou nisso?
André Costa — Minha motivação para apresentar essa proposta vem de toda a minha trajetória. Dedico parte da minha vida ao ativismo e à promoção de ações afirmativas. Sou um advogado que atua na área eleitoral, direito político, partidário, administrativo. Mas sei que existem poucos negros e negras ainda ocupando espaço de relevância no mundo do Direito e exatamente um dos motivos é o racismo institucional.

Quando fui eleito conselheiro federal pela bancada do Ceará em 2018 e assumi o conselho federal em 2019, tive uma atuação muito forte na questão do Direito Eleitoral, depois na estrutura da OAB. Em 2020, achei que era o momento de apresentar uma proposta para democratizar o acesso ao sistema OAB. Não é que os conselheiros da atual gestão sejam do ponto de vista individual racistas, nada disso. Mas a OAB completou 90 anos e não tinha uma política interna para promover a inclusão dos advogados e das advogadas negras nos seus órgãos de direção. Fiz um estudo razoável e um requerimento justificando a proposta e os seus motivos e a receptividade, desde o início, foi muito boa.

É verdade que algumas pessoas tinham alguns questionamentos e preocupações, mas nós acreditávamos que era uma medida de justiça, reparatória, seja para promover a diversidade, mas principalmente para promover o que tem que acontecer no Judiciário e no Ministério Público.

ConJur — E houve algum tipo de resistência?
André Costa — Sempre há uma resistência porque os primeiros discursos são aqueles do não racismo, de que a OAB não é uma estrutura racista, que a gente não precisava aprovar as cotas porque naturalmente a gente ia fazer campanha de incentivo. Sempre defendi cotas porque é uma medida concreta, então luto pela equidade, Mas vou esperar quanto tempo por essa equidade? Então houve resistência? Sim. Nesse sentido de preocupação em criar problemas, o sistema final inclusivo, ou as subseccionais não terem negros suficiente para preencher a cota. Mas nenhuma dessas resistências foi grave a ponto de impedir a aprovação. Tanto que nós tivemos só quatro seccionais que votaram contra, mas votaram contra a aprovar já para 2021.

ConJur — Qual a importância de cotas em carreiras públicas no nosso sistema de justiça?
André Costa —Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução dizendo que nos concursos públicos deveria ter pelo menos 20% de vagas para as pessoas auto declaradas negras e negros para juízes. Quando falamos em cotas, sempre surge aquele discurso que as cotas baixam o nível. Isso é algo desarrazoado e sem fundamento. O fato de você separar as vagas para determinado segmento social na forma de ação afirmativa só quer dizer que quem vai concorrer naquelas vagas vai ter que alcançar a nota mínima exigida nos concursos. Qual o outro caminho que não a política público-privada de incentivar que haja essa diversidade?

Ano passado, o CNJ, no final da presidência do ministro Dias Toffoli, organizou um evento sobe o Poder Judiciário e igualdade racial, reconhecendo que o racismo estrutural junto com o institucional atua no sistema de justiça. Não só na situação de que a maior quantidade de presos é de pessoas negras e a maior quantidade de pessoas atingidas pelo sistema de polícia é de pessoas negras, mas também o outro lado da moeda, que é que temos pouco negros e negras no Poder Judiciário, nos órgãos judiciários. Temos poucos negros e poucas negras no Ministério Público.

É fundamental que as ações afirmativas, que são políticas temporárias, estejam implantadas no Poder Judiciário, no Ministério Público, na advocacia, para a gente mudar a realidade que nós temos hoje. Porque essa mudança ajuda a desnaturalizar o lugar do negro. O nosso racismo é tão implacável que tivemos 358 anos de escravidão das pessoas negras, e 132 anos depois nós ainda temos uma política populista direta ou indireta que afasta a população negra dos melhores e maiores cargos. Nós naturalizamos que o lugar do negro é do serviçal, do trabalhador, do empregado. O negro pode ser médico, pode ser engenheiro, pode ser advogado, pode ser juiz, pode ser promotor, pode ser ministro. Tenho sentido isso durante essa trajetória, de julho para cá, antes da aprovação e após a aprovação, a quantidade de mensagens, telefonemas, de manifestações públicas de advogados e advogadas negras, de estudantes de Direito dizendo que agora podem chegar lá. De que podem sonhar. Você cria uma imagem positiva.

Então essa mudança que daqui cinco, dez ou 15 anos, nós vamos perceber e olhar para trás e se indagar de como podia ser assim. É algo que causa perplexidade você ter um único conselheiro negro dentro de 81 conselheiros titulares que fazem parte do Conselho Federal da OAB. E não digo isso com alegria e nem com estirpe de vingança em relação ao sistema; mas a gente precisa parar e avaliar se isso está certo. Se é justo e se representa a advocacia brasileira.

O atual Conselho Federal está de parabéns porque os conselheiros, na sua maioria brancos e brancas, tiveram a capacidade, a solidariedade, o sentimento de justiça de reconhecer que o acesso aos órgãos, aos cargos de direção do sistema estava equivocado e precisava de uma correção. E essa correção foi exatamente aprovar a proposta que eu apresentei.

ConJur — No Brasil há um verdadeiro massacre dos jovens negros pelas mãos de agentes do Estado. As estatísticas apontam que 75% dos mortos pela polícia do Brasil são negros. Como o senhor acredita que a OAB pode contribuir para esse debate, para mudar essa realidade?
André Costa — Primeiro, é fato que ocorre o extermínio da juventude negra nas periferias do nosso país. Tem estudos que comprovam isso. Essa é a face perversa do nosso racismo. O racismo à brasileira. A cor da pele de uma pessoa, a cor da pele escura, define como a pessoa vai viver ou vai morrer. É duro usar essas palavras, mas é a realidade. Às vezes as pessoas não querem que a gente toque em certos assuntos, mas esse é um dado real.

E aí a OAB, que tem uma história de luta marcada pela defesa dos direitos humanos, pelo combate à arbitrariedade e a violência do estado, tem um papel fundamental. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal  recentemente convocou uma audiência pública para discutir a letalidade policial. A OAB certamente vai participar com seus representantes. Seja das Comissões de Promoção de Igualdade Racial ou da Reparação da Escravidão Negra.

No último dia 18 de dezembro foi publicado no Diário Oficial da Câmara dos Deputados a formação de uma comissão de juristas presidida pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, que é negro, relatada pelo nosso colega, nosso Silvio Almeida, advogado e filósofo, uma das grandes referências minha e da sociedade brasileira. Tive a alegria de ser nomeado pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para integrar essa comissão.

E o que propõe essa comissão de juristas? A revisão da legislação que existe e a apresentação de propostas ao Parlamento para combater o racismo estrutural e o institucional. E um dos capítulos que serão abordados com maior cuidado é exatamente a história do extermínio da juventude negra e da aplicação da força das forças policiais em relação às populações negras. Para a polícia, a pessoa negra é sempre um elemento suspeito.

Temos o caso recente no Carrefour, que não é uma violência oficial, mas é curioso que foi violência da segurança privada. E quem fazia a segurança privada eram dois policiais que estavam fazendo bico. Então eu dei toda essa contextualização para dizer o que a OAB pode fazer. A Ordem tem que exigir que o Estado brasileiro prepare as suas polícias para que elas não sejam elementos de perpetuação do racismo estrutural e institucional, mas prepare as suas polícias para que sejam educadas a combater o racismo estrutural, institucional e não cair nessa linha de que todo negro é elemento suspeito.

ConJur — Como o nosso ordenamento jurídico acerca do tema pode melhorar?
André Costa — Ele não apenas pode, como deve. A criminalização do racismo no Brasil precisa de uma maior atenção das autoridades. Veja, temos na Constituição a previsão que o crime de racismo é imprescritível e inafiançável. Quantas condenações nós tivemos por crime de racismo nestes 30 anos? Porque o Brasil é tão racista que as suas instituições não aplicam uma norma constitucional que trata do racismo. E aí entra aquela ideia de injúria racial, que é uma forma de amenizar o crime de racismo.

É sempre um passo lento. Foi assim com a Lei dos Sexagenários, foi assim com a Lei do Ventre Livre, foi assim com a lei de Combate ao Tráfico. Foi assim com a lei chamada Lei Áurea. E mesmo depois dessas você não teve políticas para incluir os negros e as negras no processo produtivo brasileiro. Me lembra muito a novela Escrava Isaura, o final dela, quando aparece os escravizados negros saindo do nada para lugar algum. Eles saíram da fazenda e saíram andando. O Estado brasileiro bancou escola, moradia, educação, saúde para essas pessoas? Não. Não aconteceu isso. Então como é que se perpetrou o racismo? Aí volto para o centro da sua pergunta. É preciso fazer uma profunda modificação na legislação que combate o racismo, a prática individual do racismo, que aí tem a ver com a criminalização do racismo. Isso é um ponto. Mas ao mesmo tempo nós precisamos construir uma legislação que promova a igualdade racial.

ConJur — Falta vontade política para reorganizar esse ordenamento jurídico de combate ao racismo no Brasil?
André Costa — O cenário atual é muito complicado. É um cenário de negacionismo. Há negacionismo na área da saúde, na área da economia, na área das relações raciais no Brasil. Por muito tempo foi alimentado o mito do humanismo racial ou da democracia racial, que não é verdadeiro.

Os dados sociais, econômicos e políticos demonstram que a igualdade racial no Brasil é uma ilusão. Ponto. Falta ao Brasil se reconhecer como um país racista. O Brasil é um país racista sem racistas. Tanto pesquisas feitas pelo Datafolha como pesquisas outras feitas ano passado, você pergunta para um universo de pessoas se existe racismo no Brasil. Nesse universo, 85%, 90% responde que sim, existe racismo no Brasil. Aí você pergunta para essas mesmas pessoas se elas são racistas, e elas dizem que não, não são. Então onde estão esses racistas? Eu diria que a primeira vontade política que falta no Brasil são as instituições, as entidades e o Poder Público reconhecerem que existe racismo no Brasil e 358 anos de escravidão.

ConJur — Na nossa sociedade está em voga novamente a ideia de que bandido bom é bandido morto. A onda punitivista é mais uma manifestação do nosso racismo estrutural?
André Costa — Penso sinceramente que está tudo envolvido. Não se resolvem as questões sociais e aí querem um estado policialesco, autoritário, de prender e punir. Mas aí nós estamos enxugando gelo. Porque se prender e punir fosse a solução, isso teria se resolvido no tempo da ditadura, teria se resolvido nesses últimos 30 anos. E foi resolvido? Não. A política de guerra às drogas, de mais repressão e menos diálogo não resolveu o problema. Nós chegamos a um estado que no limite são pobres matando pobres. Pobres na polícia matando pobres na periferia. Eu não desconheço que a política de segurança pública hoje vive um outro momento em face das facções, do crime organizado, mas certamente a solução não passa pelas propostas fáceis que acham que vão resolver os problemas com mais repressão, com mais armas, ou aquela ilusão de que o cidadão portando arma vai poder resolver seus problemas. Não é por aí.

Mas você me pergunta onde é que isso passa pelo racismo. Passa porque as maiores vítimas da segurança pública são exatamente as pessoas negras.

O jovem negro da periferia, das comunidades, das favelas, não nasce bandido. A situação, a condição social, o que levou essas pessoas a ir para a criminalidade nós podemos impedir. A solução não deve partir do Direito Penal do inimigo. É preciso combater tudo isso que eu falei e apostar no combate à impunidade de forma democrática. Temos propostas na OAB para combater a criminalidade e a violência na perspectiva de buscar a paz, a igualdade e a oportunidade e não de aumentar mais a violência.

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