Observatório Constitucional

Imparcialidade judicial: uma ficção gramatical?

Autor

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

20 de fevereiro de 2021, 8h01

É vivo e intenso o debate que se instaurou sobre o modelo de persecução penal trazido pela operação "lava jato". Isso ocorre em vista da exposição de diálogos que teriam sido mantidos entre os integrantes do Ministério Público e o juiz responsável pela condução dos processos associados à operação e das repercussões jurídicas desses eventos em recursos que serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. Uns veem nesse movimento a possibilidade de derrotar um modelo de investigação que teria conseguido enfrentar a impunidade e a corrupção. Outros identificam, nas informações que estão sendo divulgadas, demonstração dos excessos da "lava jato", ante uma parceria indevida entre quem julga e quem acusa.

Sem entrar na discussão sobre a licitude ou não de provas que podem embasar esses julgamentos ou sobre a idoneidade das transcrições feitas das mensagens ou mesmo sobre a aptidão desses fatos para anular sentenças condenatórias que foram confirmadas por tribunais, cabe reconhecer que o caso traz uma oportunidade ímpar para refletir sobre a imparcialidade judicial.

É parte essencial do estudo do devido processo legal, como condição e requisito para a efetiva possibilidade dessa garantia, a existência de um Poder Judiciário independente e juízes imparciais [1]. A noção de justiça independente e imparcial é um requisito de validade para o processo e uma garantia prometida pela jurisdição [2]. Isso porque não há efetiva prestação jurisdicional e devido processo legal quando os meios processuais à disposição das partes sejam ilusórios, em função das condições gerais do país ou em função das circunstâncias particulares do caso.

Nessa linha, os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore, elaborados pelo Grupo de Integridade Judicial, constituído com o apoio das Nações Unidas, aprovado pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em abril de 2003 (resolução 2003/43) e pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas em 2006 (resolução 2006/23), trazem a independência e a imparcialidade como os dois primeiros valores de um sistema judicial (ao que se sucedem os valores integridade, idoneidade, igualdade e competência/diligência).

Esse documento, enunciando o princípio da imparcialidade como "essencial para o apropriado cumprimento dos deveres do cargo do juiz", adverte que ele se aplica "não somente à decisão, mas também ao processo de tomada de decisão".  A imparcialidade está associada à ideia de que a função judiciária deve ser exercida por um terceiro estranho ao conflito, que não tenha outro interesse na lide que não seja a aplicação do direito [3]. Nos comentários a esses princípios, menciona-se a jurisprudência da Corte Europeia, segundo a qual, o juiz deve ser imparcial a partir de um ponto de vista objetivo, ou seja, "ele deve oferecer garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima a seu respeito" [4]. Isso porque a percepção de parcialidade corrói a confiança pública no Judiciário.

E, sobre essa perspectiva, aproveito a oportunidade para apresentar aos leitores o pensamento do Josep Aguiló Regla, professor catedrático de Filosofia do Direito da Universidade de Alicante (Espanha), exposto no texto intitulado "Aplicação do direito, independência e imparcialidade" [5].

Nesse artigo, Aguiló Regla se propõe a pensar o juiz e a jurisdição não a partir dos poderes que exerce, mas dos deveres que recaem sobre ele o dever de aplicar o direito (garantia objetiva), o dever de imparcialidade e o dever de independência (grantias subjetivas) que são garantias para o jurisdicionado associadas ao devido processo legal.

O juiz imparcial e independente é aquele que aplica o Direito e o faz motivado pelas razões que o Direito indica (não por motivações pessoais). Juiz independente e imparcial é aquele que não tem outros motivos para decidir senão o cumprimento de seu dever de bem aplicar o direito [6]. A decisão judicial precisa ter o conteúdo correto e a motivação correta.

Nesse artigo, Regla procura demonstrar que em termos práticos o não cumprimento das garantias subjetivas da imparcialidade e da independência tem um potencial deslegitimador superior ao não cumprimento da garantia objetiva. E também que, em termos conceptuais, as noções de independência e de imparcialidade são dependentes da concepção do Direito que se tenha. Sobre esse último ponto, Regla sugere que não é viável pensar na imparcialidade e na independência como garantia efetiva se assumirmos que as verdadeiras motivações dos juízes sempre são políticas, ideológicas, psicológicas ou econômicas. É dizer, quem adota uma visão cética do Direito (e assume que o Direito não consegue constranger o intérprete/aplicador) não conseguirá ter uma atitude crítica sobre os motivos de decidir dos juízes.

A primeira conclusão que retiro do texto do professor Regla é que não se pode ter uma postura cética na aplicação do direito. A visão cética aludida por Regla transforma a garantia da imparcialidade que não é uma prerrogativa que protege o magistrado, mas um dever no exercício da jurisdição numa ficção gramatical.

Quem tem sincero e verdadeiro compromisso com o Estado democrático de Direito não pode ser cético em relação à possibilidade de o Direito oferecer as boas razões para decidir.

O leitor mais atento lembrará da expressão "ficção gramatical", contida no memorável romance de Arthur Koestler "O zero e o infinito" [7]. No livro, a expressão é utilizada para descrever a "primeira pessoa do singular". O inesquecível personagem Rubashov, membro de primeira hora do partido e que está sendo expurgado, repudiava o individualismo (tratado, com pudor, como "primeira pessoa do singular"), por considerar que a realidade social se apresentava apenas pelo "nós", que se materializava pelo partido. Durante sua estadia na prisão, até o desfecho inexorável de sua confissão, julgamento e execução, é confrontado consigo mesmo e passa a duvidar se o "eu" seria mesmo uma ficção gramatical [8].

Não cabe negar a subjetividade. E não se deve esperar do juiz, como agente do Estado, tanto. Mas não se pode tolerar que o juiz julgue conforme suas convicções, impondo sua visão de mundo em detrimento do Direito. Não é uma equação simples. Os valores pessoais do juiz não constituem, per se, uma vulneração à imparcialidade. A opinião e as crenças de um juiz, que são aceitáveis, devem ser distinguidas da parcialidade, que é inaceitável [9].

Regla passa a examinar as combinações possíveis acerca de um juízo de correção/incorreção sobre o conteúdo da decisão e sobre os motivos para decidir. Uma decisão correta (no seu conteúdo) e que foi tomada por um juiz imparcial e independente (motivo para decidir também é correto) cumpre os requisitos da legalidade e da legitimidade. O cético, por óbvio, pensará que não há critérios para avaliar a decisão no plano da legitimidade (e essa é a postura que o cético sempre terá em relação à motivação, com o entendimento de ser impossível sindicar esse plano da decisão). Quando a decisão é incorreta (no seu conteúdo), mas foi tomada por juiz imparcial e independente, o crítico (não cético) acatará a decisão, porque emanada de uma autoridade legítima, mas pode não aceitá-la (fará uma crítica interna). Quando a decisão é incorreta (no seu conteúdo) e tomada por um juiz parcial, o crítico não acata a decisão nem aceita a decisão. Agora a decisão correta no seu conteúdo proferida por um juiz sem independência ou que seja parcial evidencia a completa deslegitimação da decisão em função da falta de legitimidade da autoridade. Como diz Regla:

"Quem decidiu não devia decidir por não reunir os pressupostos essenciais para a legitimidade da jurisdição. A presença dos motivos corretos para decidir é condição necessária para a aceitação e o acatamento da decisão. Na perspectiva interna, a crença de que a decisão foi dada a partir de motivos proibidos leva inexoravelmente à conclusão de que a 'motivação' da decisão é pura simulação de correção; é dizer, leva à mesma conclusão a que chegaria o cético, mas com a diferença de que essa conclusão não é o produto de uma atitude geral frente ao Direito, mas sim decorrente da interpretação concreta da conduta de um juiz em uma ocasião determinada. Sem imparcialidade ou sem independência, a decisão do juiz carece de autoridade" [10].

Como pondera o magistrado espanhol Andrés Perfecto Ibaneis, a independência e a imparcialidade do juiz não são qualidades autoevidentes da jurisdição, nem são valores que estão implícitos na investidura ou que o juiz carrega na toga. Em verdade, esses atributos só estão presentes em juízes que os trabalham reflexivamente [11].

Esse desafio se impõe para o Direito e para todos aqueles que acreditam no projeto do Estado democrático de Direito e repudiam a "lógica consequente". E aqui uma segunda referência ao livro "O zero e o infinito", que é uma leitura obrigatória para ver os perigos do Estado totalitário e da opressão que ele traz. No livro, a "lógica consequente" é expressão para explicar uma forma do agir político. Como refletia Rubashov, em seu diário, "a política até pode ser relativamente justa nos espaços vazios da história; porém, em seus pontos críticos de virada, nenhuma outra regra é possível a não ser a velha 'os fins justificam os meios'" [12]. O interrogador (e antigo camarada de Rubashov) Ivanov bem explica essa lógica. Segundo Ivanov, "só existem duas concepções de ética humana, e estão em polos opostos. Uma é a cristã e humana, considera o individuo sagrado e afirma que as regras da aritmética não se aplicam às unidades humanas. A outra concepção parte do princípio básico de que o objetivo coletivo justifica todos os meios, e não só permite como exige que o individual seja, em todos os sentidos, subordinado e sacrificado à comunidade que dele poderá dispor como de um rato de laboratório ou um cordeio imolado (…). Quem se vê sob o peso do poder e da responsabilidade logo se dá conta de que deve escolher, e fatalmente se volta para a segunda alternativa" [13], como forma de autodefesa da sociedade.

Por certo, a lógica consequente deve ser objeto de repúdio na atuação política, mas sempre haverá aqueles que defenderão, no âmbito da política, que em certas situações os fins podem justificar os meios, ou, nas palavras de Rubashov, "que castidade na escolha dos meios gera impotência política". Mas essa opção não está disponível no exercício da jurisdição, atividade na qual os fins e os meios são dados pelo Direito [14]. Por isso, não se pode admitir, por parte do Estado-juiz, uma visão meramente formal do devido processo legal, como se essa garantia pudesse ser reduzida à "correta aplicação da lei", independentemente dos meios e das motivações, a fim de alcançar um suposto bem maior. De outro modo, poderemos escrever na lápide do Estado democrático de Direito o que Rubashov uma vez escrevera em seu diário: "Jogamos ao mar todas as convenções, o único princípio que nos guia é o da lógica consequente; estamos navegando sem lastro ético" [15].

* Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

 


[1] GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Derecho procesal constitucional: el debido processo. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2004. p. 233.

[2] GOZAÍNI, op.cit. p. 238.

[3] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Irresponsáveis? Trad e revisão Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, pp. 31-33.

[4] Nações Unidas. Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008. P. 66

[5] AGUILÓ REGLA, Josep. Aplicação do direito, independência e imparcialidade. In: Revista NEJ – Eletrônica, Vol. 16 – n. 3 – p. 228-240 / set-dez 2011. Sobre o tema, do mesmo autor, vide: AGUILÓ REGLA, Josep. Sobre Derecho y  argumentación. Palma (Mallorca): Lleonard Muntaner Editor, 2008, pp.  29-50.

[6] A independência deve ser compreendida como o controle sobre a motivação do juiz frente a influências estranhas ao direito, provenientes de fora do processo judicial. A imparcialidade é o controle da motivação do juiz frente às influências internas ao processo judicial. No exercício de seu mister, o juiz não deve outra motivação, interna ou externa, senão aplicar o direito.

[7] KOESTLER, Arthur. O zero e o infinito. São Paulo: Amarilys (Manole Ed.), 2013. Tradução de André Pereira da Costa

[8] KOESTLER, op.cit., p. 287.

[9] Nações Unidas. Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008. P. 68

[10] AGUILÓ REGLA, op.cit. p. 233. Tradução livre.

[11] "La cultura de la jurisdicción" (Parte I) – Homenaje a un juez: entrevista a Perfecto Andrés Ibáñez. 27 de março de 2018, disponível em https://puntocritico.com/ausajpuntocritico/2018/03/27/la-cultura-de-la-jurisdiccion-parte-i-homenaje-a-un-juez-entrevista-a-perfecto-andres-ibanez/.

[12] KOESTLER, Op.cit. p. 118.

[13] KOESTLER, Op.cit., 182.

[14] Em artigo publicado na ConJur em julho de 2019, Lenio Streck, comentando o modus operandi da "lava jato", já sustentava que essa “prática de substituir o direito pela moral deve ser enfrentada. Cruzadas morais são abomináveis. Deveria envergonhar-nos a justificação da tese de que os fins justificam os meios. Essa tese é uma vergonha para o Direito. Sim, deveria envergonhar a todos o fato de que juristas, jornalistas e jornaleiros justificam as práticas de Dallagnol e de Moro depois que estes acabaram com o princípio da imparcialidade judicial.” (A parcialidade judicial: de como (só) a vergonha poderá nos redimir, disponível em https://www.conjur.com.br/2019-jul-18/senso-incomum-parcialidade-judicial-vergonha-redimir).

[15] KOESTLER, Op.cit., p. 294.

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    é editor-chefe do "Observatório da Jurisdição Constitucional", doutor em Direito Constitucional pela USP, mestre em Direito do Estado pela UnB, professor vinculado ao programa de pós-graduação do IDP e advogado.

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