Opinião

Reforma eleitoral: fortalecimento da democracia não passa pelo 'distritão'

Autor

  • Leonardo Bruno Pereira de Moraes

    é sócio do escritório Bornhausen & Zimmer Advogados professor doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC e membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

20 de fevereiro de 2021, 13h14

No último dia 11, a Câmara dos Deputados instituiu um grupo de trabalho para o aperfeiçoamento e a sistematização da legislação eleitoral e processual eleitoral. Muito embora a portaria de instauração não delimite o alcance das discussões a serem realizadas pelo GT de Direito Eleitoral, a presidente, deputada Margarete Coelho (PP-PI), em entrevista, afirmou que seriam abordados: voto impresso, cláusula de desempenho dos partidos políticos e das coligações, atos preparatórios para as eleições, crimes eleitorais, inelegibilidade, financiamento e propaganda eleitoral. Nesse sentido, o presente artigo tem o objetivo de contribuir para a discussão acerca da cláusula de desempenho e das coligações partidárias, visando a esclarecer os interessados sobre o assunto. Além disso, ao final se fará uma breve análise da proposta do sistema eleitoral "distritão", de modo a estabelecer a coerência de sua discussão no contexto da reforma política.

Ambos os institutos (coligações e cláusula de desempenho) foram objeto de alterações recentes por meio da Emenda Constitucional nº 97, de 2017. Sob essa perspectiva, a EC estabeleceu que as coligações partidárias — anteriormente permitidas — seriam limitadas às eleições majoritárias (presidente, governador, senador e prefeito), sendo vedadas nas eleições proporcionais (deputados federais, deputados estaduais e vereadores) a partir das eleições de 2020. Desse modo, esse trecho da Emenda Constitucional 97 teve aplicabilidade somente às últimas eleições municipais, não tendo ainda sido testado nas eleições gerais, uma vez que as eleições de 2018 ocorreram sob a regra antiga.

De outro lado, a EC igualmente determinou que os partidos políticos somente teriam o acesso aos recursos do fundo partidário e ao tempo gratuito de rádio e televisão caso obtivessem um percentual mínimo de representação na Câmara de Deputados, o que se denominou "cláusula de desempenho". Nesse aspecto, importante esclarecer que a cláusula de desempenho não proíbe o funcionamento do partido político ou mesmo a sua representação nas casas legislativas, o que poderia ocorrer nas chamadas "cláusulas de barreira", mas somente restringe o seu acesso às verbas públicas. Ainda nesse ponto, a emenda constitucional instituiu uma regra de transição, com os percentuais mínimos aumentando a cada quatro anos, iniciando-se com 1,5% dos votos válidos nas eleições de 2018 e terminando com 3% dos votos válidos nas eleições de 2030.

Para compreender melhor as dinâmicas propostas pela Emenda Constitucional 97 e seus objetivos, deve-se estabelecer claramente os conceitos de sistema eleitoral e sistema de partidos. Nesse sentido, o professor Carlos Blanco de Morais conceitua o sistema eleitoral como o "conjunto de normas, procedimentos e técnicas que estruturam de forma coerente o modo como a preferência dos eleitores, expressa em votos, se transforma na designação de mandatários que irão desempenhar funções públicas como titulares do poder político" [1]. De outro lado, o professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa disserta que o sistema de partidos seria o "modelo de formatação partidária que deriva da relação entre o número de partidos que obtém representação parlamentar e as variáveis compostas pelo seu peso representativo, a sua estrutura relacional, a sua durabilidade e o modo como, individualmente ou mediante alianças, podem aceder ao exercício do poder" [2]. A partir desses conceitos e do contexto da Emenda Constitucional 97, pode-se verificar com mais clareza os propósitos e consequências da alteração constitucional.

Voltando à realidade brasileira, o atual quadro de extrema fragmentação partidária demanda a formação de grandes alianças governamentais, com a participação de vários partidos, sem os quais o Poder Executivo não teria condições de sobreviver. Nesse cenário, os acordos de governo ultrapassam a fronteira de partidos da mesma família política do presidente para alcançar agremiações centristas e eventualmente partidos de visão política oposta. Para tentar reverter esse quadro, muitas propostas de reforma política indicam a necessidade de redução do número de partidos. Além disso, percebe-se certa fragilidade dos partidos políticos, muitos sem identidade definida, suscetíveis a mudanças de orientação ideológica conforme a conveniência do momento.

Diante disso, a Emenda Constitucional 97 possuía dois objetivos conexos, mas distintos: fortalecer os partidos por meio da extinção das coligações nas eleições proporcionais; e reduzir o número de partidos a partir da inclusão de uma cláusula de desempenho. Isso porque o efeito de redução do número de partidos por meio do fim das coligações seria acessório, tendo em vista que atingiria somente as agremiações muito pequenas, que não tivessem condições mínimas de alcançar os votos necessários para poucas cadeiras. Ademais, a Lei Federal nº 13.488, de 2017, em movimento antagônico com as demais reformas, alterou a redação do artigo 109, §2º, do Código Eleitoral para permitir que todos os partidos e coligações concorressem à distribuição das vagas, excluindo a necessidade de o partido atingir o quociente eleitoral. Sem a alteração promovida pela Lei Federal nº 13.488/2017, o fim das coligações poderia ter um impacto maior no número de partidos. Contudo, a expansão do rol de legitimados para a disputa das vagas acabou por anular os efeitos da emenda nesse particular, restando a cláusula de desempenho.

Sobre os efeitos sentidos até o momento, mesmo com um percentual de apenas 1,5% nas eleições de 2018, a Emenda Constitucional 97 parece ter iniciado um processo de adequação da viabilidade dos partidos políticos. Sob esse aspecto, como consequência direta da alteração constitucional, verificou-se a incorporação do Partido Republicano Progressista (PRP) ao Patriota (Patriota), do Partido Pátria Livre (PPL) ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e do Partido Humanista da Solidariedade (PHS) ao Podemos (Pode). Recentemente, novas composições têm sido discutidas, como uma possível fusão entre o PCdoB e o PSB antes ou depois das eleições gerais de 2022.

Como mencionado, o fenômeno deve se repetir nas próximas eleições gerais, a medida em que o percentual da cláusula de desempenho for aumentando. Muito embora seja de difícil previsão quantos partidos sobreviverão ao final do processo instaurado pela Emenda Constitucional 97, o crescimento de forma gradual da referida cláusula permite que os partidos planejem as incorporações e fusões com agremiações da mesma família política, sem prejuízo ao regime democrático. Enquanto um percentual alto de votos válidos causaria drásticas mudanças no sistema partidário, com a redução repentina do número de partidos, o crescimento gradual da cláusula permite ajustes e incrementos nos programas partidários, como adequação à nova realidade brasileira.

Dito isso, qualquer alteração legislativa que busque descontruir esse processo incorreria em verdadeiro retrocesso institucional. O Brasil precisa urgentemente reduzir o número de partidos políticos, diretamente responsável pela instabilidade institucional ao longo dos últimos anos. Certamente que as mudanças que estão por vir, como consequência da Emenda Constitucional 97, devem incomodar um número considerável de lideranças partidárias, mas essa é uma nova realidade absolutamente necessária ao país. De igual modo, o fim das coligações extirpou do ordenamento jurídico brasileiro uma verdadeira anomalia. Destaca-se, sobretudo, o altíssimo índice de desperdício qualificado de voto no modelo de coligações, pois o voto dado a um candidato não eleito — classicamente chamado de "voto desperdiçado" — poderia resultar na eleição de candidato de outro partido que sequer fazia parte da mesma família política do candidato votado.

Finalmente, faz-se necessário abordar brevemente o sistema eleitoral denominado de "distritão". Defende-se que o referido sistema tenderia a arruinar todos os esforços para uma melhora política no Brasil. O sistema "distritão" afeta diretamente o fortalecimento dos partidos políticos, almejado pela emenda constitucional, pois torna os candidatos praticamente independentes do partido. Como consequência, teríamos uma tendência de aumento na fragmentação política no Congresso, uma vez que os candidatos eleitos seriam praticamente independentes, e, assim, poderiam votar sem qualquer coerência com a sua bancada, aniquilando o fragilizado sistema partidário brasileiro.

Destaca-se: o "distritão" potencializa os dois maiores problemas enfrentados no cenário eleitoral-partidário no Brasil: tende a aumentar a fragmentação partidária e enfraquecer os partidos políticos, em posição diametralmente oposta à Emenda Constitucional 97, que caminhou na direção correta. Sendo assim, pode-se afirmar de forma categórica: o fortalecimento da democracia brasileira não passa pelo "distritão".

 


[1] BLANCO DE MORAIS, Carlos. O Sistema Político. Lisboa: Almedina, 2018, p. 239.

[2] BLANCO DE MORAIS, Carlos. O Sistema Político. Lisboa: Almedina, 2018, p. 271.

Autores

  • é sócio do escritório Menezes Niebuhr Advogados Associados, professor, doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SC, e membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC.

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