Opinião

A prisão em flagrante e o estado de flagrância em tempos de cólera

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20 de fevereiro de 2021, 11h14

1) Considerações preliminares
O Código de Processo Penal determina que "qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem que seja encontrado em flagrante delito" (artigo 301 do CPP). A seguir, no artigo 302, define que "considera-se em flagrante delito quem: I  está cometendo a infração penal; II  acaba de cometê-la; III é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer outra pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração. IV é encontrado, logo após, com instrumento, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração". E completa em seu artigo 303, esclarecendo que "nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência".

O Direito Penal, por sua vez, encarrega-se de classificar e definir uma grande variedade de crimes, entre os quais destacamos apenas alguns que apresentam maior relevância em relativamente ao significado, importância e alcance do estado de flagrância, observando-se, logicamente, a definição acima destacada. Nesse sentido, consideramos especialmente relevantes aqueles definidos como crimes, instantâneo, permanente e com efeitos permanentes, por apresentarem aspectos significativos especificamente sobre a extensão da ocorrência do estado de flagrância.

O crime comissivo consiste na realização de uma ação positiva visando a um resultado tipicamente ilícito, ou seja, no fazer o que a lei proíbe. A maioria dos crimes previstos no Código Penal e na legislação extravagante é constituída pelos crimes de ação, isto é, pelos crimes comissivos. Essa classificação básica complementa-se com o denominado crime omissivo, que pode ser próprio ou impróprio. O crime omissivo próprio consiste no fato de o agente deixar de realizar determinada conduta, tendo a obrigação jurídica de fazê-lo; configura-se com a simples abstenção da conduta devida, quando podia e devia realizá-la, independentemente do resultado. A inatividade constitui, em si mesma, exemplo clássico é o crime omissão de socorro. O crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão, por sua vez, é o meio através do qual o agente produz um resultado. Nesses crimes, o agente responde não pela omissão simplesmente, mas pelo resultado decorrente desta, a que estava, juridicamente, obrigado a impedir (artigo 13, § 2º, do CP).

2) Crimes instantâneo e permanente
Crime instantâneo é o que se esgota com a ocorrência do resultado, aquele que que se completa num determinado instante, sem continuidade temporal. Instantâneo não significa praticado rapidamente, mas significa que uma vez realizados os seus elementos nada mais se poderá fazer para impedir sua ocorrência. Ademais, o fato de o agente continuar beneficiando-se com o resultado, como no furto, não altera a sua qualidade de instantâneo. Permanente, por sua vez, é aquele crime cuja consumação alonga-se no tempo, dependente da atividade do agente, que poderá cessar quando este quiser (cárcere privado, sequestro etc.). Crime permanente não pode ser confundido com crime instantâneo de efeitos permanentes (v. g., homicídio, furto), cuja permanência não depende da continuidade da ação do agente.

O crime permanente é uma entidade jurídica única, cuja execução alonga-se no tempo. É exatamente essa característica, isto é, manter-se por algum período, mais ou menos longo, realizando-se no plano fático (e esse fato exige a mantença do elemento subjetivo, ou seja, do dolo). Por essa característica de permanência se justifica que, sobrevindo lei nova, mesmo mais grave, tenha aplicação imediata, pois o fato, em sua integralidade, ainda está sendo executado. É necessário, convém destacar, que entre em vigor o novo diploma legal mais grave antes de cessar a permanência da infração penal, isto é, antes de cessar a sua execução.

Mas o que acabamos de dizer nada tem que ver com o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave (artigo 5º, XL, CF), pois se trata, em verdade, da incidência imediata de lei nova sobre fato que está acontecendo no momento de sua entrada em vigor. Assim, não é a lei nova que retroage, mas o caráter permanente do fato delituoso que se protrai no tempo, acaba recebendo a incidência legal em parte de sua execução e a expande para toda a sua fase executória; nesse entendimento, repita-se, não há nenhuma contradição, tampouco violação ao mandamento constitucional, pois não se poderá pretender que apenas um fragmento da conduta (realizado sob o império da nova lei) seja punido pela lei atual, deixando o restante para a lei anterior, na medida em que o crime realmente é único e não se havia consumado.

Nesse particular, não merece qualquer reparo a Súmula 711 do Supremo Tribunal Federal, o que já não ocorre em relação ao crime continuado, crítica que fazemos no capítulo em que abordamos a continuidade delitiva em nosso tratado de Direito Penal.

3) Crimes permanentes e crimes de efeitos permanentes
Permanente é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente, que poderá cessar quando este quiser (cárcere privado, sequestro etc.). Crime permanente não pode ser confundido com crime instantâneo de efeitos permanentes (homicídio, furto), cuja permanência não depende da continuidade da ação do agente. Na mesma linha já era o entendimento de Magalhães Noronha, que pontificava: "Crime permanente é aquele cuja consumação se prolonga no tempo, dependente da atividade, ação ou omissão, do sujeito ativo, como sucede no cárcere privado. Não se confunde com o delito instantâneo de efeitos permanentes, em que a permanência do efeito não depende do prolongamento da ação do delinquente: homicídio, furto etc" [1].

Na verdade, o que caracteriza a permanência de uma conduta criminosa não é a durabilidade dos efeitos, tampouco a repetição da atividade pelo agente, mas, sim, a extensão da fase consumatória propriamente da mesma ação do agente. A repetição de atividade (ou ação) pelo agente — receber mensalmente —, por exemplo, vantagem indevida, não é elementar constitutiva de crime permanente, mas tão somente consequência de uma ação executada. Consequentemente, os crimes instantâneos de efeitos permanentes não admitem, na sequência, a prisão em flagrante, exatamente porque se trata de crime instantâneo, e os efeitos que produzem é que são permanentes; além disso, não é a conduta criminosa que tem natureza permanente, o que caracterizaria o crime permanente.

O crime permanente, como se sabe, protrai no tempo sua consumação. Exemplo típico é o crime de sequestro: enquanto o sequestrador não liberta a vítima, o delito está sendo consumado e, pois, é delito permanente, pelo que o sujeito ativo pode ser preso em flagrante. Sobre "o elemento subjetivo, nos crimes permanentes, cumpre lembrar que a permanência decorre de um non facere quod debetur, pelo que o agente está, sem sombra de dúvida, desobedecendo à norma que o manda remover a situação antijurídica que criou. O agente deve, assim, ter a possibilidade de alterar essa situação ilícita. Tanto isso é exato que na bigamia não há crime de caráter permanente porque a situação criada pelo agente não pode ser desfeita por ato ou comportamento seu", como ensinava José Frederico Marques [2].

Com efeito, o crime instantâneo de efeitos permanentes, ao contrário do que ocorre com o crime permanente, não possibilita ao sujeito ativo reduzir ou diminuir seus efeitos. Não há como retornar, não há como fazer cessar os efeitos da ação que já foi praticada. Em outros termos, não há como fazer cessar a ação, pois esta já se esgotou, é instantânea, e os seus efeitos é que são permanentes, v. g., o homicídio! O que se reveste do caráter de permanência é a fruição da vantagem pecuniária, mas esta não é a conduta (o crime), é somente a sua consequên­cia, o exaurimento do crime. Com efeito, o exaurimento do crime pode desdobrar-se em parcelas ou ser mensal, o que não desnatura o crime instantâneo transformado em permanente, pois a conduta lesiva foi uma e já se consumou.

Fazem irrepreensível interpretação sobre esse crime as decisões refletidas nos acórdãos do (STJ) HC 121.336/SP e do (STF) HC 103.40007/RJ, respectivamente. Essas duas ementas dão preciosa interpretação quanto à natureza do crime de estelionato previdenciário, concebendo-o como crime instantâneo de efeitos permanentes. Vejamos, no que aqui interessa, a essência de cada ementa. A decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, tendo como relator o ministro convocado Celso Limongi, arrematou:

"(…) O chamado estelionato contra a Previdência Social (art. 171, § 3º, do Código Penal) deve ser considerado crime instantâneo de efeitos permanentes, razão pela qual se consuma com o recebimento da primeira prestação do benefício indevido, marco que deve ser observado para a contagem do lapso da prescrição da pretensão punitiva. Ordem concedida para declarar extinta a punibilidade da espécie pela prescrição da pretensão punitiva, tal como decidido em primeiro grau de jurisdição" (STJ — HC 121.336/SP, Rel. Min. Celso Limongi, 6ª T., DJe, 30 mar. 2009).

Não é outro o entendimento do STF, reiterado em vários acórdãos, dos quais destacamos a ementa do HC 103.407/RJ, que teve como relator o ministro Joaquim Barbosa:

"(…) Segundo precedentes recentes do Supremo Tribunal Federal, o chamado estelionato previdenciário (CP, art. 171, § 3º) é crime instantâneo de efeitos permanentes. Por conseguinte, a sua consumação se opera com o recebimento da primeira prestação do benefício indevido, contando-se, daí, o prazo prescricional (HC 99.363, rel. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso, DJe, 19 fev. 2010). (…) Ordem concedida, para declarar extinta a punibilidade da paciente, pela ocorrência da prescrição, considerada a pena em concreto" (STF — HC 103.407/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª T., DJe, 17 set. 2010).

Nessa mesma linha do ministro Limongi já decidiram, com absoluto acerto, os ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio, nos HCs 82.965-1/RN e 84.998/RS, respectivamente.

4) Crimes material, formal e de mera conduta
O crime material ou de resultado descreve a conduta cujo resultado integra o próprio tipo penal, isto é, para a sua consumação é indispensável a produção de um resultado separado do comportamento que o precede. O fato típico se compõe da conduta humana e da modificação do mundo exterior por ela operada. O resultado material que integra a descrição típica pode ser tanto de dano como de perigo concreto para o bem jurídico protegido. A não ocorrência do resultado caracteriza a tentativa. Nos crimes materiais a ação e o resultado são, em regra, cronologicamente distintos (v.g., homicídio, furto).

O crime formal também descreve um resultado, que, contudo, não precisa verificar-se para ocorrer a consumação. Basta a ação do agente e a vontade de concretizá-lo, configuradoras do dano potencial, isto é, do eventus periculi (ameaça, a injúria verbal). Afirma-se que no crime formal o legislador antecipa a consumação, satisfazendo-se com a simples ação do agente, ou, como dizia Hungria, "a consumação antecede ou alheia-se ao eventus damni" [3]. Seguindo a orientação de Grispigni, Damásio distingue do crime formal o crime de mera conduta, no qual o legislador descreve somente o comportamento do agente, sem se preocupar com o resultado (desobediência, invasão de domicílio). Os crimes formais distinguem-se dos de mera conduta porque estes são sem resultado; aqueles possuem resultado, mas o legislador antecipa a consumação à sua produção. A lei penal se satisfaz com a simples atividade do agente.

Na verdade, temos dificuldade de constatar com precisão a diferença entre crime formal e de mera conduta porque se trata de uma classificação imprecisa, superada pela moderna dogmática jurídico-penal. Com efeito, como já referimos, os crimes de resultado abrangem tanto os resultados de dano como os resultados de perigo. Nesses termos, os crimes ditos formais podem constituir crimes de resultado de perigo para o bem jurídico protegido pela norma penal. Na realidade, a classificação que consideramos mais adequada, em função da técnica legislativa utilizada na redação dos tipos penais, é aquela que distingue os crimes de resultado dos crimes de mera conduta, por que o elemento a ser considerado, nesse âmbito, é se, para a consumação do crime, há a exigência da produção de algum tipo de resultado: nos crimes materiais podem ser diferenciadas as espécies de resultado (de dano ou de perigo, como veremos no tópico seguinte), enquanto nos crimes de mera conduta, a simples ação ou omissão já é suficiente para a sua consumação.

5) Crimes de dano e de perigo
Crime de dano é aquele para cuja consumação é necessária a superveniência de um resultado material que consiste na lesão efetiva do bem jurídico. A ausência desta pode caracterizar a tentativa ou um indiferente penal, como ocorre com os crimes materiais (homicídio, furto, lesão corporal). Crime de perigo é aquele que se consuma com a superveniência de um resultado material que consiste na simples criação do perigo real para o bem jurídico protegido, sem produzir um dano efetivo. Nesses crimes, o elemento subjetivo é o dolo de perigo, cuja vontade limita-se à criação da situação de perigo, não querendo o dano, nem mesmo eventualmente.

O perigo, nesses crimes, pode ser concreto ou abstrato. Concreto é aquele que precisa ser comprovado, isto é, deve ser demonstrada a situação efetiva de risco ocorrida no caso concreto ao bem juridicamente protegido. O perigo é reconhecível por uma valoração da probabilidade de superveniência de um dano para o bem jurídico que é colocado em uma situação de risco, no caso concreto. O perigo abstrato pode ser entendido como aquele que é presumido juris et de jure. Nesses termos, o perigo não precisaria ser provado, pois seria suficiente a simples prática da ação que se pressupõe perigosa. Ocorre que esse entendimento contraria o princípio de ofensividade, como já indicamos no segundo capítulo desta obra. Se o legislador penal pretende admitir a existência de crimes de perigo abstrato, é necessário ajustar, com a maior precisão possível, o âmbito da conduta punível, sem deixar de lado os princípios limitadores do exercício do poder punitivo estatal (princípios desenvolvidos no segundo capítulo), com o fim de evitar uma expansão desmedida do Direito Penal. Significa, em outros termos, que nos delitos de perigo abstrato é necessário demonstrar, pelo menos, a idoneidade da conduta realizada pelo agente para produzir um potencial resultado de dano ao bem jurídico, visto desde uma perspectiva genérica.

Concluindo, em qualquer desses crimes é admissível a prisão em flagrante, a única diferença é até onde, quando e como pode ocorrer a prisão em flagrante. Trata-se de uma questão para refletir.

 


[1]. E. Magalhães Noronha, Direito Penal, 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 1978, v. 1, p. 118.

[2]. Tratado de Direito Penal, 1ª ed. atual., Campinas, Bookseller, 1997, v. II, p. 366.

[3]. Hungria, Comentários, cit., p. 43.

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