Defesa da concorrência

A Embraer e o ponto cego do direito concorrencial brasileiro

Autor

  • Alessandro Octaviani

    é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e autor entre outros de Recursos genéticos e desenvolvimento Estatais (em coautoria com Irene Nohara) e Estudos Pareceres e Votos de Direito Econômico (vols. I e II).

19 de fevereiro de 2021, 8h00

Em janeiro de 2020, a Superintendência Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou, sem restrições, o Ato de Concentração nº 08700.003896/2019-11, referente à operação envolvendo o grupo estadunidense Boeing e a brasileira Embraer, que significava, em verdade, a supressão da brasileira, engolfada pela norte-americana.

ConJur
Ambas eram participantes da indústria aeroespacial e de defesa, setores de grande complexidade econômica, por agregar um conjunto de rotas negociais com alta especialidade, como (i) novos materiais, (ii) software, (iii) design e (iv) serviços de assistência técnica de longa duração.

Para qualquer país do mundo, ter uma empresa que compita — ainda mais simultaneamente — nesses mercados significa estruturar cadeias produtivas internas com alto adensamento tecnológico e diversos efeitos multiplicadores positivos, gerando novas rotas de P&D, que, por sua vez, transformam-se em novos produtos e novas empresas, quando albergadas em um ecossistema institucional bem desenhado e bem executado (com (i) instrumentos de planejamento, (ii) definição e cobrança de metas, (iii) instrumentos de financiamento, (iv) articulação entre ciência, tecnologia, educação e empresas, e outros requisitos que caracterizam os Estados nacionais mais bem equipados para enfrentar a agressiva e dinâmica concorrência do sistema mundial-moderno, como dá exemplo eloquente a China).

A operação, avaliada em US$ 4,2 bilhões, consistia em duas transações distintas, mas com um fim único: a fagocitose da brasileira Embraer pelo grupo dos EUA, contando com o aval e suporte do Estado norte-americano, por meio de uma série de contratos de longo prazo, referentes a compras públicas ou financiamentos. As transações seriam (i) a “Operação Comercial”, relativa à aquisição, pela Boeing Brasil (subsidiária integral da Boeing), de 80% do capital social da unidade de aviação comercial da Embraer, obtendo controle inconteste sobre o negócio (à brasileira restariam apenas 20% e o Estado brasileiro perderia sua golden share, ação de classe especial com direito a veto); e (ii) a "Operação de Defesa" (formação de joint venture entre Boeing-49% e Embraer-51%, para a fabricação da aeronave tripulada de transporte militar KC-390).

Apesar da aprovação pelo Cade, em meados de 2020 o negócio foi abandonado, em virtude de uma sequência de acontecimentos, como (i) as dificuldades enfrentadas pela Boeing, em consequência das trágicas quedas de dois modelos 737 MAX, na Indonésia e na Etiópia, que mataram 346 pessoas, (ii) do impacto econômico da pandemia de Covid-19, que castigou severamente o mercado de aviação no mundo inteiro e (iii) do cumulativo prejuízo que culminou em aproximadamente US$ 12 bilhões, ao final do ano de 2020.

O caso "Boeing-Embraer" demonstra com clareza a existência de um perigoso ponto cego na disciplina jurídica da concorrência brasileira, principalmente para mercados estratégicos — como esse, em que interesses de desenvolvimento tecnológico são expressos pelos mais relevantes Estados nacionais. O direito antitruste praticado no caso revela-se estruturalmente insuficiente para (i) as necessidades do desenvolvimento brasileiro e (ii) a complexidade da disputa econômica mundial.

A aprovação da operação pelo Cade e a aplicação do cânone
A Superintendência Geral do Cade concluiu "pela aprovação sem restrições do presente ato de concentração", definindo os mercados relevantes da seguinte maneira:

  1. Na "Operação Comercial": (a) mercado mundial de aeronaves comerciais de grande porte de corredor único com capacidade entre 100 e 200 assentos e (b) mercado mundial de aeronaves comerciais de grande porte de corredor único com capacidade entre 100 e 150 assentos;
  2. Na "Operação de Defesa": (a) mercado mundial de aeronaves tripuladas de transporte militar.

Foi considerado que ambas as operações afetavam mercados correlatos:

  1. Na "Operação Comercial": (a) mercado mundial de peças e componentes para aeronaves comerciais e (b) mercado mundial de serviços de MRO (manutenção, reparo e revisão geral, incluindo peças de reposição) para aeronaves comerciais;
  2. Na "Operação de Defesa": (a) mercado mundial de serviços de modernização de aeronaves, (b) mercado mundial de serviços de MRO para aeronaves militares e (c) mercado mundial de peças de reposição para aeronaves militares.

Identificou-se a existência de integração vertical na "Operação Comercial", envolvendo (i) o mercado de aeronaves comerciais de grande porte (downstream) e (ii) a produção de peças e componentes para aeronaves comerciais (upstream), mas não se enxergou qualquer impacto prejudicial à concorrência advindo de tal verticalização.

Afastado, segundo a aplicação do cânone, o perigo de qualquer impacto negativo sobre a concorrência nos "mercados relevantes", o órgão instrutor tratou da representação do Partido Democrático Trabalhista – PDT, por abuso de poder econômico, que sustentava que a Embraer estava diante de ameaça à sua própria sobrevivência, já que o segmento comercial da empresa, alienado em benefício da Boeing, era justamente a parte mais lucrativa, responsável por gerar os recursos por meio dos quais o setor de defesa e desenvolvimento tecnológico se financiavam; nessa lógica, o Brasil manteria a parte mirrada e os EUA levariam o filé.

O órgão, entretanto, decidiu que "[q]uanto ao Cade, sua competência na análise do negócio limita-se aos impactos concorrenciais das operações", sustentando que "a política industrial, política comercial, soberania nacional, direitos trabalhistas, entre outras (…) não constituíram aspectos determinantes para a conclusão final do caso". Para a interpretação vitoriosa no Cade, assim, segurança econômica nacional não seria um assunto "concorrencial".

Concorrência e Segurança Econômica Nacional: aprendendo com quem entende
Nos Estados Unidos da América, segurança econômica nacional é assunto "concorrencial". No país sede da Boeing, se suas empresas tornam-se alvo de tentativas de aquisição por empresas estrangeiras, o mercado de aviação é da alçada do Committee on Foreign Investment in the United States — CFIUS, órgão nuclear no sistema norte-americano de defesa da concorrência.

 O CFIUS é um organismo interministerial, cuja competência é analisar transações empresariais em que estejam envolvidos investimentos estrangeiros e que levantem preocupações de segurança econômica nacional (como seria, por exemplo, o caso Embraer-Boeing). Em seu âmbito, o presidente dos EUA possui poder de veto sobre aquisições de empresas nacionais. É um órgão de defesa da concorrência cujo critério principal é a nacionalidade, e não o mero poder de mercado. Os adversários são os concorrentes internacionais, que não podem chegar perto de controlar setores estratégicos norte-americanos.

Desde sua criação, o Cifius já vetou ou impossibilitou por vias indiretas inúmeras operações, inclusive no "livre" mercado de aviação.

No caso da empresa Manco, o presidente George Bush (pai) vetou, no início da década de 1990 (ao mesmo tempo em que a diplomacia norte-americana defendia mundo afora a "nova ordem da organização mundial do livre comércio"), a aquisição dessa fabricante de peças aeronáuticas pela chinesa Catic, por razões de segurança nacional[1]. No caso da Hawker, a aquisição, pela Superior Aviation Beijing, não foi adiante em decorrência da mera possibilidade da atuação do Cifius e seus impactos potenciais na avaliação dos investidores (esse é um dos mecanismos de maior poder do órgão: ameaçar o início de um procedimento de análise; muitas operações que envolvem mercados estratégicos para os EUA são erodidas antes mesmo de serem notificadas ao Cifius, por "receio de sua reprovação"[2]).

Concorrência e segurança econômica no Brasil: vulnerabilidade estrutural e alternativas institucionais
Como se vê, os dois aparatos institucionais em disputa são extremamente desiguais: o sistema norte-americano de defesa da concorrência tem (i) um órgão poderoso, (ii) cujo critério é a manutenção do poder de mercado em mãos norte-americanas, (iii) e que é rotineiramente escamoteado para não aparecer, sendo propositadamente desconhecido de ampla parte dos "consumidores" de antitruste norte-americano mundo afora. 

O sistema brasileiro de defesa da concorrência funciona com um ponto cego, uma vulnerabilidade estrutural: aplicamos dedicada e competentemente uma cartilha que não é praticada pelos vendedores da cartilha. Ficamos craques em uma modalidade que não é a mais relevante. O resultado desse jogo é razoavelmente previsível.

Existem duas alternativas para essa autoimposta capitis diminutio institucional: (i) a aplicação de uma hermenêutica de heterointegração normativa dos atos da Administração Pública conforme a Ordem Econômica Constitucional, e (ii) reforma institucional que crie o "Comitê de Análise de Investimentos e Aquisição por Estrangeiros" brasileiro, seguindo o — nesse caso — bom exemplo dos EUA.

Nos termos inequívocos de nossa Constituição, soberania nacional é questão perene, de razão de Estado, impermeável à alternância de poder. Toda instituição republicana — aqui incluídos órgãos da Administração indireta, por óbvio — está obrigada a zelar pela soberania e pelos interesses nacionais. A Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso I, cristaliza como um dos fundamentos da República a soberania; no artigo 170, inciso I, fixa-se como princípio da Ordem Econômica a soberania nacional, dando concreção à noção de soberania econômica. O artigo 219 afirma que "o mercado interno integra o patrimônio nacional". Esse exemplificativo conjunto de artigos oferta legitimidade Constitucional à intepretação/aplicação do direito concorrencial com vistas a garantir o desenvolvimento tecnológico nacional ou, na dicção precisa do artigo 219, "a autonomia tecnológica do país". Ainda que (i) a defesa da concorrência seja tratada como questão de Ordem Pública Econômica, e (ii) tal Ordem seja concebida em termos meramente defensivos (herança do constitucionalismo oitocentista), é sabido de longa data ser a Constituição Econômica quem define os valores e objetivos axiais e integradores das políticas instrumentais, e não o inverso.[3] A defesa da concorrência não submete a soberania econômica; a defesa da concorrência, constitucionalmente, submete-se à soberania econômica. Aqui, como nos EUA, aliás.

Um outro caminho é dotar, explicitamente, o sistema brasileiro de defesa da concorrência de uma perna que, desde os anos 1990, foi suprimida das alternativas institucionais em circulação, no bojo da onda de obscurantismo intelectual livre-cambista baseada em duas falsas premissas: (i) que "seria assim nos EUA" e (ii) que "só assim se obteria o desenvolvimento". Tal obscurantismo intelectual hiperliberal cometeu a façanha de tornar invisíveis, simultaneamente, o Cifius e a China, desaparelhando de maneira radical nossas dotações institucionais.

Para consertar o ponto cego, como se vê, há caminhos. A retomada da grande obra do desenvolvimento nacional os tornará concretos.


[1]  BUSH, George H. W.  Message to the Congress on the China National Aero-Technology Import and Export Corporation Divestiture of MAMCO Manufacturing, Incorporated. Fevereiro de 1990. Disponível em: https://fas.org/nuke/guide/china/contractor/90020112.html. Acesso em 12/02/2021.

[2] CHAN, Arthur, MORRIS, Lyly J., OHLANDT, Chad J. R., SCOBELL, Andrew, THOMPSON, Julia A., Chinese Investment in US Aviation, Rand Corporation, Santa Monica, 2017, pp. 81.

[3] Entre tantas, duas longevas reflexões: SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da constituição econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 23.  MOREIRA, Vital. “Economia e Constituição”. Boletim de Ciências Económicas, v. XVII, Faculdade de Direito, Coimbra, 1974, p. 157.

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