Opinião

Vacinar sem o conteúdo da vacina: tentativa de homicídio?

Autor

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

19 de fevereiro de 2021, 17h40

Assistimos perplexos às notícias em que idosos estariam sendo vacinados sem o devido imunizante dentro das seringas. As enfermeiras teriam feito dito procedimento, segundo veiculado na imprensa, com o devido conhecimento de que a seringa estava vazia.

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Antes de seguir nas reflexões posteriores, sigo defendendo que o Direito Penal deve ser a ultima ratio de uma sociedade, em outras palavras, um soldado de reserva quando outros mecanismo não são eficazes para a preservação da pacífica convivência social (bem jurídico tutelado).

Por isso, seria o caso de interferência penal no caso exposto no início deste artigo? Penso que sim. Qual a enfermeira ou profissional da saúde que tem como missão preservar vidas humanas que aplica uma vacina sem o seu conteúdo? Não se trata de um conteúdo ético ou moral aqui, mas, antes de tudo, de preservação de vidas.

Assim, numa rápida reflexão, parece-me que os profissionais da saúde que atuam dessa forma, aplicação da vacina contra a Covid-19 sem o seu devido conteúdo na seringa, no mínimo assumem o risco de matar o paciente (dolo eventual). A situação parece clara porque o paciente, normalmente idoso nos casos noticiados, se sentirá imunizado, quando, na verdade, não estará. Imaginando isso, poderá relaxar em algumas medidas de proteção com a falsa premissa de que não contrairá mais a doença, tudo porque confiou na imunização que não foi realizada.

De outro lado, os profissionais da saúde que agiram dessa forma não só praticam uma ação dolosa (intencional) ao não aplicarem o imunizante como também assumem o risco de morte do paciente, pois, ao não estar de fato imunizado, o paciente poderá morrer ao contrair a doença. Assim, além do artigo 132 do Código Penal (expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente), uma vez havendo o efetivo contágio do paciente, creio que, em análise perfunctória, é possível a acusação de tentativa de homicídio contra o profissional que deixe intencionalmente de aplicar a dose da vacina.

Se não fosse só por essa vertente penal, também é de ressaltar que os profissionais da saúde estão numa posição de garantes, nos exatos termos do artigo 13, parágrafo segundo, do Código Penal, ou seja, são responsáveis pela causação do resultado pelo risco assumido em face da posição de garantia.

Assim, se o paciente supostamente imunizado pelo profissional da saúde vier a falecer em face de contrair o coronavírus, em tese o profissional da saúde seria responsável por essa morte. Isso está de acordo com as normas legais da posição de garante, em que a causalidade é normativa imposta por um dever de agir no caso específico.

Não é crível que em plena pandemia não se possa responsabilizar penalmente aqueles que atuam conscientemente vacinando pessoas sem o conteúdo imunizante. Dizer que essas pessoas não assumem o risco de matar não só contraria o bom senso, mas todo o sistema penal, que tem como missão a preservação de bens jurídicos essenciais, entre eles a vida humana e a saúde das pessoas.

Ainda que se assuma uma posição funcionalista do bem jurídico, que seria manutenção da vigência da norma, parece cristalino que a resposta da sociedade só pode ser esta: aqueles que se comportam contra a expectativa normativa (preservação de vidas) merecem a sanção penal como confirmação de que a norma vale.

Feitas essas breves reflexões, indago se esses profissionais que agiram vacinando sem o imunizante deveriam responder por tentativa de homicídio. Mesmo contra a intervenção penal e entendendo que a norma penal é subsidiária, deixo a indagação para a reflexão dos leitores. Não é possível que nesta quadra da história possamos permitir esse tipo de ação num momento tão grave e sensível como esse.

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    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor nos cursos de mestrado e doutorado do IDP/Brasília, e sócio do escritório Callegari Advocacia Criminal.

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