Opinião

Ford Brasil e a quebra de contratos e confiança

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18 de fevereiro de 2021, 21h33

Tinha a Ford o direito, pelo seu simples querer, de decretar no início do ano o instantâneo fim de sua produção industrial no país, passando a descumprir o Plano Anual de Comercialização e Compromisso (PACC de 2021), pactuado com cada um dos seus quase 300 distribuidores?

A resposta é, induvidosamente, não. A Lei Ferrari, a Convenção da Marca Ford e a Convenção das Categorias Econômicas envolvidas, não conferem tal direito.

Ao contrário, as regras vigentes impõem à montadora não só a obrigação de fornecer veículos na forma pactuada com seus concessionários, como a de ouvir a Associação da Marca (Abradif), antes de implementar mudanças sensíveis, aptas a causar impacto na rede.

Obviamente, isso não quer dizer que a Ford esteja perenemente obrigada a fabricar veículos no Brasil, mas sim, que não pode desligar a produção como quem aciona um interruptor de luz.

O encerramento da produção de veículos e do seu fornecimento na forma pactuada, configura hipótese de resolução por inexecução voluntária, ocorrente quando uma das partes, por culpa ou dolo, impossibilita a continuidade da prestação.

A abrupta supressão do fornecimento dos veículos que compunham em média 85% do faturamento da rede (Ka, Ka sedan e Ecosport), implicando no fechamento da maioria das concessionárias e a subsistência de apenas uma parte delas, que se obrigará a comercializar somente veículos importados de alto valor agregado, não se trata de mera readequação do portfólio, e sim da implosão da rede consolidada há décadas e a implementação de uma nova e seletiva rede, para tocar um novo negócio.

Logo, é certo afirmar que os concessionários que permanecerem ligados à Ford não continuarão, mas, em verdade, iniciarão um novo (e arriscado) negócio.

Caso esse novo negócio, a qualquer tempo se revele inviável, as concessionárias fecharão ou por descumprimento da quota ou por iniciativa própria, sendo que em ambas as hipóteses não terão direito à indenização, evidenciando que a aposta é alta, e favorável à banca.

À evidência, a narrativa de que a "Ford Não Vai Sair do Brasil" serve, basicamente, para respaldar o dito plano de continuidade preconizado pela montadora, que parece ter sido concebido com o fim precípuo de cooptar os maiores concessionários, chamados de escolhidos, que ao aderirem aceitam ajuda ao invés de receberem a devida indenização.

Já aos concessionários que se pode denominar de descartados, classificados pela Ford como sem condições adequadas de continuidade, que devem somar dois terços da atual rede, é reservado dois caminhos: 1) aceitar (rapidamente) a indenização na forma ofertada pela montadora, com um plus sobre o previsto na Lei Ferrari; ou 2) judicializarem a questão, exigindo integral indenização dos danos sofridos, aí não limitada ao rol da Lei Ferrari.

Sem entrar no mérito da inopinada decisão de fechamento do parque fabril, havia um caminho legal a ser seguido pela Ford. Esse caminho foi o adotado em 2019, quando fechou a planta de São Bernardo do Campo/SP, descontinuando a produção do Fiesta e encerrando a fabricação de caminhões:

1) anunciar no início do ano que a fabricação seria encerrada até o final desse ano;
2) 
manter a produção e o fornecimento aos concessionários até a celebração dos acordos para extinção dos contratos de concessão;
3) 
dado ao caráter eminentemente coletivo da questão negociar sempre via Associação da Marca (no caso a Abrafor); e, por fim,
4) 
concluir o desmonte da rede mediante pagamento da indenização e formalização dos distratos, com cada concessionário individualmente.

Nada obstante o caminho legal fosse bem conhecido, a Ford em 2021 optou por agir inobservando o disposto na Lei Ferrari e nas convenções que regulam o contrato de concessão e, sobretudo, ignorando os postulados da boa-fé objetiva, atinentes à recíproca confiança que deve imperar entre parceiros comerciais.

A estratégia adotada pela Ford, incompatível com sua centenária história no Brasil, foi a de logo escantear a Abradif, justamente a interlocutora por excelência da rede de distribuidores, e partir para o contato direto com os concessionários, impactados pelo anúncio de fechamento da montadora e já amargando os deletérios primeiros efeitos reflexos, com suas lojas vazias, portanto, mais suscetíveis a assédio moral negocial.

Ainda, é importante anotar que a Ford não pode — validamente — decretar a ineficácia dos Planos de Comercialização e Compromisso pactuados bilateralmente. Tampouco, exigir que os concessionários formulem novos pedidos ou, mesmo, constrangê-los a refazerem tais planos de comercialização, isso em meio ao tsunami por ela causado, presentes cruciais indefinições, como se permanecerão ou não ligados à agora inconfiável multinacional.

O fato é que a Ford ao abruptamente encerrar a produção nacional (a pretexto de reestruturação) e interromper o fornecimento de automóveis na forma pactuada, rompeu as bases dos contratos de concessão existentes, implodindo sua saudável e operosa rede de distribuição, devendo arcar com as consequências do inopinado ato.

Justamente por isso a matriz americana, contingenciou, ao que consta, US$ 4,1 bilhões para arcar com os custos do encerramento da produção local de veículos — seu último grande investimento no Brasil — aí incluídas, é claro, as indenizações trabalhistas.

Se o caminho escolhido pelos concessionários for o de acionar judicialmente a agora ex-montadora, requerendo a resolução do contrato de concessão por impossibilidade de sua continuidade nos termos pactuados, em decorrência de inexecução voluntária por parte da Ford, com o ressarcimento integral dos danos (não limitado à Lei Ferrari), é esse o momento.

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