Opinião

Deputado cometeu crimes, mas STF se equivoca ao decretar prisão

Autor

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

18 de fevereiro de 2021, 19h19

Antes de chegar a conclusões acerca das prisões em flagrante de parlamentares decretadas pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive a mais recente (do deputado federal Daniel Silveira, decretada pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes e ratificada à unanimidade pelo Plenário[1]), são necessárias explicações sobre as imunidades parlamentares e seus limites.

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Como se sabe, parlamentares federais (senadores e deputados federais), estaduais e distritais gozam de diversas imunidades e prerrogativas, que não constituem privilégios pessoais, mas proteção em razão da relevância das funções desempenhadas, que podem ser assim sintetizadas:

a) imunidade prisional: não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável — os autos devem ser remetidos em 24 horas à Casa respectiva, para, pelo voto da maioria, resolver sobre a prisão (artigo 53, §2º da CF e art. 27, §1° da CF);

b) imunidade material: são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos (artigo 53, caput e art. 27, §1° da CF);

c) imunidade processual: recebida a denúncia, o Tribunal dará ciência à Casa respectiva, que pelo voto da maioria poderá sustar o andamento da ação (artigo 53, §§3º e 4º da CF e art. 27, §1° da CF);

d) prerrogativa como testemunha: inquiridos em local, dia e hora previamente ajustados com o magistrado (artigo 221 do CPP);

e) foro por prerrogativa de função: parlamentares federais são julgados por crimes comuns no STF (artigo 102, I, b da CF), e parlamentares estaduais e distritais pelos respectivos Tribunais quando houver previsão na legislação específica, observada a simetria.[2]

Sobre a imunidade material, com razão a Suprema Corte não mais a enxerga com caráter absoluto.

De fato, para os pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas, em regra não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato.[3] Todavia, responde pelo ilícito o parlamentar que profere ofensas dentro do parlamento e as divulga na internet[4] ou quando concede posteriormente entrevista — ainda que no próprio gabinete legislativo — reafirmando as palavras.[5]

Já fora do parlamento, existe um rigor maior para a incidência da imunidade, sendo necessário que as afirmações tenham relação direta com o exercício do mandato.[6]

A imunidade material não confere aos parlamentares o direito de empregar expediente fraudulento, artificioso ou ardiloso, voltado a alterar a verdade da informação, ou para ofender a honra de terceiros ou incitar a prática de crimes, divulgando os ilícitos na mídia ou redes sociais.[7] Afinal, a prerrogativa busca salvaguardar a liberdade de atuação do legislador, e não servir como escudo protetivo para a prática de crimes sem qualquer vinculação com a atuação parlamentar.

Em relação à imunidade prisional (freedom from arrest), realizada a prisão, os autos devem ser remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros (não mais secreto, com o advento da Emenda Constitucional 35/01), resolva sobre a prisão (artigo 53, §2º e artigo 27, §1° da CF). O Supremo já relativizou essa norma ao dispensar a análise da prisão em flagrante pela Casa Legislativa em 24 horas, pois no caso concreto 23 dos 24 deputados estaduais estavam envolvidos em esquema criminoso.[8]

Pela literalidade do dispositivo, não obsta a prisão em flagrante de crime inafiançável.

Por interpretação sistemática, realizada pela Corte Suprema, tampouco impede a prisão definitiva decorrente de condenação transitada em julgado[9], pois o condenado não mais se encontra na condição de parlamentar, em razão da perda do mandato parlamentar derivada da suspensão ou perda dos direitos políticos (art. 15, III da CF).

Em razão de interpretação teleológica, em sede doutrinária, também nada obsta a prisão preventiva. Afinal, na época da redação da Constituição em 1988, prevalecia que o indivíduo podia permanecer preso por força de prisão em flagrante. É dizer, autorizar expressamente apenas a prisão em flagrante como exceção à imunidade prisional era suficiente para que o congressista permanecesse preso se houvesse necessidade. Todavia, notadamente após as alterações promovidas pela Lei 12.403/11 no CPP, o suspeito só pode continuar preso se a prisão em flagrante for convertida em preventiva (artigo 310 do CPP), motivo pelo qual não faz sentido permitir apenas o flagrante e vedar a preventiva, sob pena de inviabilizar a custódia cautelar quando necessária.

Pode o Judiciário também, na visão do Supremo, em substituição à prisão em flagrante, impor medidas cautelares diversas da prisão previstas no artigo 319 do CPP, seja em substituição de prisão em flagrante delito por crime inafiançável, seja autonomamente; se a medida cautelar impossibilitar que o parlamentar exerça seu mandato, a decisão judicial deve ser encaminhada em 24 horas para a respectiva Casa Legislativa.[10]

Os Tribunais Superiores entendem que a inafiançabilidade que obsta a prisão em flagrante do parlamentar federal é a relativa, aquela analisada no caso concreto segundo parâmetros do CPP, e não a absoluta, enxergada em abstrato pela leitura da CF.[11] O que merece críticas, pois essa leitura permite que qualquer delito seja rotulado como inafiançável, fazendo letra morta a previsão expressa da Constituição. Segundo essa visão, a inafiançabilidade seria dividida assim:

a) inafiançabilidade absoluta: prevista na Constituição (artigo 5º, XLII, XLIII e XLIV), com análise em abstrato (são inafiançáveis somente os crimes taxativamente listados na CF), abrangendo os crimes de racismo, tortura, tráfico de drogas, terrorismo, crimes hediondos e crimes cometidos por ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

b) inafiançabilidade relativa: prevista no CPP (artigo 324), com análise no caso concreto (são inafiançáveis quaisquer crimes cujo contexto se encaixe nas hipóteses do CPP), englobando as situações de quebra de fiança anteriormente concedida ou infração das obrigações dos arts. 327 e 328, prisão civil ou militar e existência de motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.

Passando à análise de caso concreto, além do caso da prisão do deputado federal Daniel Silveira[12] o Supremo Tribunal Federal possui precedente em que admitiu a prisão em flagrante do senador Delcídio do Amaral[13], bem como no qual chancelou a prisão em flagrante determinada pelo Superior Tribunal de Justiça contra o deputado estadual José Carlos de Oliveira.[14]

Na situação da prisão do senador, o Supremo decretou a custódia mediante pedido do Ministério Público. A decisão ambígua afirmou que estavam presentes situação de flagrância e os requisitos da preventiva, e determinou a "prisão cautelar".

No caso da prisão do deputado federal, não houve provocação do MP. A decisão também afirmou a existência de requisitos de prisão em flagrante e de preventiva, porém determinou expressamente a "prisão em flagrante".

Em ambos cenários, o STF determinou a prisão em flagrante por mandado judicial, e manteve o congressista preso por força dessa prisão.

Diversos problemas são detectados, pois a prisão em flagrante:

a) não é decretada por mandado, exigindo a confecção do respectivo auto (artigos 304 e 307);

b) não pode ser imposta ao delegado de polícia, sob pena de configurar verdadeira requisição de indiciamento (ainda que de forma indireta, pois a prisão em flagrante e o indiciamento possuem requisitos semelhantes – indícios suficientes de materialidade e autoria), vedada pelo próprio STF,[15] e afrontar a autonomia da autoridade policial na realização de sua análise técnico-jurídica (artigo 2º, §6º da Lei 12.830/13 e art. 304, §1º do CPP);

c) só pode ser determinada pelo magistrado por crime praticado em presença da autoridade ou contra ela no exercício de suas funções (artigo 307 do CPP), não podendo ser decretada em outras hipóteses inclusive para não ferir o sistema acusatório, que separa em órgãos distintos as funções de investigar, acusar e julgar (artigos 144, 129 e 92 da CF e artigo 3º-A do CPP), não devendo o Judiciário ordenar prisões ou produção de provas de ofício na persecução penal;

d) exige a presença de alguma das modalidades de flagrante, seja o próprio, impróprio ou presumido (artigo 302 do CPP), admitindo-se a custódia flagrancial em crime permanente (cuja consumação se prolonga no tempo por vontade do agente, que continua agredindo o bem jurídico protegido), e não em crime instantâneo de efeitos permanentes (cujos efeitos persistem após a consumação, independentemente da vontade do agente);

e) não tem força suficiente para manter o indivíduo preso, devendo ser convertida em prisão preventiva caso seja necessária a manutenção do encarceramento (artigo 310 do CPP).

Além disso, se a imunidade material foi afastada por não ter a conduta do parlamentar relação com as funções, não deveria incidir o foro por prerrogativa de função, que engloba apenas os delitos praticados no exercício da função ou em razão dela, na visão do próprio Supremo.[16]

Apesar de abomináveis as condutas dos parlamentares (considerando os elementos de convicção contidos nos processos judiciais), e a par de qualquer posicionamento político (e sim realizando análise estritamente jurídica), o Supremo Tribunal Federal acabou ignorando uma série de dispositivos constitucionais e legais, e inclusive parte de sua própria jurisprudência.

Em adição, especificamente no episódio da prisão do deputado federal Daniel Silveira, a investigação é extremamente problemática. Foi instaurada no famigerado inquérito das fake news[17], que apesar de julgado constitucional pelo próprio Supremo Tribunal Federal,[18] apresenta os seguintes equívocos:

a) inquérito "judicial" instaurado de ofício pelo STF, violando o sistema acusatório (artigos 144, 129 e 92 da CF e artigo 3º-A do CPP);

b) portaria de instauração vaga e imprecisa, sem delimitar com precisão as condutas e suspeitos investigados (artigo 5º do CPP), em tese podendo abranger qualquer comportamento e indivíduo;

c) designação ad hoc de Ministro relator, sem sorteio, em prejuízo do princípio do juiz natural (artigo 5º, XXXVII da CF);

c) crimes apurados sem terem sido necessariamente praticados por detentor de foro por prerrogativa de função no STF, desrespeitando a competência originária (artigo 102 da CF);

e) continuidade do inquérito mesmo com pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público, que deve ser observado pelo STF diante de solicitação do PGR nos casos de competência originária, segundo a jurisprudência da própria Corte Suprema.[19]

Por fim, não se enxergam vícios na atuação do Supremo Tribunal Federal pelo fato de os ministros terem julgado o caso mesmo sendo vítimas das palavras ofensivas e ameaçadoras do deputado federal. Nessa situação, inexiste suspeição dos ministros, assim como a ausência de recurso a outro tribunal contra decisão do STF em ação de competência originária não fere o duplo grau de jurisdição.[20] Trata-se de cenário excepcional em que o tribunal de maior hierarquia age originariamente por força do próprio ordenamento jurídico.


[1] STF, Inq 4.781, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ 17/02/2021.

[2] STF, ADI 2.553, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 15/05/2019.

[3] STF, Inq 1.958, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 29/10/2003.

[4] STF, Pet 7.174, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ 06//03/2018.

[5] STF, Inq 3.932, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 26/06/2016.

[6] STF, Inq 3.672, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 14/10/2014.

[7] STF, Inq 4.781, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ 16/02/2021; STF, AP 1.021, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 18/08/2020; STF, Pet 5.705, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 05/09/2017.

[8] STF, HC 89.417, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 22/08/2006.

[9] STF, AP 396 QO, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 26/06/2013.

[10] STF, ADI 5.526, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 11/10/2017.

[11] STF, Inq 4.781, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ 16/02/2021; STF, AC 4.039, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 24/11/2015; STJ, APn 460, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 04/08/2006.

[12] STF, Inq 4.781, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ 16/02/2021.

[13] STF, AC 4.039, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 24/11/2015.

[14] STF, HC 89.417, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 22/08/2006; STJ, APn 460, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 04/08/2006.

[15] STF, HC 133.835 MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18/04/2016; STF, Inq 4.621, Rel. Min. Roberto Barroso, DJ 23/10/2018; STF, Inq 4.831, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 05/05/2020.

[16] STF, AP 937 QO, Rel. Min. Roberto Barroso, DJ 03/05/2018.

[17] STF, Inq 4.781, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ 16/02/2021.

[18] STF, ADPF 572 MC, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 17/06/2020.

[19] STF, Inq 2341 QO, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 28/06/2007.

[20] STF, AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 02/08/2012.

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    é delegado de Polícia Civil do Paraná; autor pela Juspodivm; professor da Verbo Jurídico, Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná; mestre em Direito pela UENP; colunista da Rádio Justiça do STF. Foi professor do CERS, TV Justiça do STF, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Secretaria Nacional de Justiça, Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola do Ministério Público do Paraná, Escola de Governo de Santa Catarina, Ciclo, Curso Ênfase, CPIuris e Supremo. www.henriquehoffmann.com

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