Opinião

A atuação jurídica com perspectiva de gênero

Autor

  • Ezilda Melo

    é advogada professora mestra em Direito Público UFBA especialista em Direito Público historiadora e organizadora da coleção "Direitos das Mulheres" que conta com seis títulos: Feminismos Artes e Direitos das Humanas; Por uma estética artística feminista do Direito; Maternidade e Direito; Advocacia Criminal Feminista publicados pela Editora Tirant lo Blanch Maternidade no Direito Brasileiro: padecer no machismo e Direitos Fundamentais das Mulheres no período pandêmico publicados pela Editora Studio Sala de Aula.

18 de fevereiro de 2021, 16h13

O Judiciário tem sido constantemente denunciado como um lugar que retroalimenta práticas machistas, racistas e classistas. É evidente e de fácil constatação que a temática de gênero e classe são essenciais para a compreensão da atuação jurídica e, consequentemente, combater práticas seculares de exclusão e de preconceitos.

Coincidiu com o período pandêmico algumas modificações institucionais promovidas por associações de classe da advocacia, da magistratura e do Ministério Público.

O Conselho Federal da OAB, por exemplo, em dezembro de 2020 historicamente aprovou a implementação de paridade de gênero e de cotas raciais de 30% nos órgãos da entidade. A ONU apontou a necessidade de promoção da igualdade de gênero, desde 2015, como um dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS). Em sua 323ª sessão extraordinária, o Plenário do CNJ aprovou por unanimidade uma recomendação aos tribunais (Ato Normativo nº 0010087-44.2020.2.00.0000) para que observem a composição paritária de gênero na formação das comissões organizadoras e das bancas examinadoras nos concursos públicos que realizarem para ingresso na carreira da magistratura, sendo um dos argumentos levantados pela relatora para aprovação da recomendação. A proposta dirige-se aos Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça Militar dos Estados e ao Superior Tribunal Militar.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou, também no final de 2020, a Recomendação 79/2020, que institui programas e ações sobre igualdade de gênero e raça no âmbito do Ministério Público da União e dos Estados.

Diante desse breve apanhado, percebe-se uma busca pela igualdade de gênero como meta alinhada entre advocacia, magistratura e Ministério Público. Esse é um ponto muitíssimo importante, pois nessa mesma linha surgem no Brasil inúmeros cursos voltados à capacitação em direitos fundamentais com perspectiva de gênero, seja para advogados, pesquisadores, como também como diretriz apontada pelo CNJ de acordo com a Recomendação 79, aprovada em 8 de outubro de 2020, que determina que os Tribunais de Justiça promovam capacitação em direitos fundamentais com perspectiva de gênero a todos os magistrados e magistradas que atuam em juizados ou varas com competência para aplicar a Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha.

A decisão segue parâmetros legais nacionais e internacionais, como a Recomendação Geral nº 35 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que orienta os Estado-partes a fornecerem capacitação, educação e treinamento obrigatórios, recorrentes e efetivos para membros do Judiciário, para capacitá-los e adequadamente prevenir e enfrentar a violência de gênero contra as mulheres. Baseou-se ainda no artigo 226, §8º, da CF, que preceitua ser dever do Estado criar mecanismos para coibir a violência doméstica; na Resolução CNJ nº 254, de 4 de setembro de 2018, que instituiu a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário, lastreada no artigo 8º, VII, da Lei nº 11.340/2006, estabelece que um dos seus objetivos é fomentar a política de capacitação permanente de magistradas e magistrados em temas relacionados às questões de gênero e de raça ou etnia por meio das escolas de magistratura e judiciais (artigo 2º, VI); na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher — "Convenção de Belém do Pará", promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996, determina aos Estados-partes que promovam a educação e treinamento de todo o pessoal judiciário e policial e demais funcionários responsáveis pela aplicação da lei, bem como do pessoal encarregado da implementação de políticas de prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher (artigo 8º, "c"), a convenção também preconiza que os Estados-partes adotem programas destinados a "promover o conhecimento e a observância do direito da mulher a uma vida livre de violência e o direito da mulher a que se respeitem e protejam seus direitos humanos", bem como "modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher" (artigo 8º, "a" e "b").

O CNJ, na Recomendação 79, reconheceu a importância de assegurar tratamento adequado aos conflitos decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e que, em razão da sensibilidade das questões afetas aos juizados e varas que detenham competência para aplicar a Lei nº 11.340/2006, é desejável que a capacitação alcance todos os juízes e juízas em exercício que atuem nestes juizados e varas.

O CNJ alterou a Recomendação 79 pela 82 de 16 de novembro de 2020 e recomendou aos Tribunais de Justiça que promovam a capacitação em direitos fundamentais, desde uma perspectiva de gênero, dos juízes e juízas que se removerem ou se promoverem para juizados ou varas que detenham competência para aplicar a Lei nº 11.340/2006, bem como dos juízes e juízas que atuem em plantões judiciais e audiências de custódia, no prazo máximo de 120 dias. Portanto, o CNJ, em recomendação inédita, considerou a necessidade de promover capacitação em direitos fundamentais com uma perspectiva de gênero e isso nos coloca diante de uma certeza: muitas mulheres, inclusive mães, são revitimizadas pelo Poder Judiciário brasileiro e é dever de todos nós, defensores dos direitos humanos, lutarmos por mudanças estruturais em um sistema que se alicerçou no machismo, classismo e racismo. Por isso, a necessidade de novas bibliografias jurídicas que apontem o problema e pensem em solução é premente. Sobre esse tema é importante destacar que nesse atual contexto também enxergamos uma grande produção científica sobre os temas da advocacia feminista na área familista e criminal, da maternidade, dos direitos das mulheres como essenciais para modificação dos ementários e das coleções acadêmicas que compõem as bibliotecas jurídicas do país. Uma alteração que será sentida também pelas editoras jurídicas que são conclamadas a publicarem mais mulheres e as convidarem igualitariamente na participação de eventos jurídicos, sem abrir mão dos demais grupos vulnerados nessas composições multifacetadas e de entrecruzamento de saberes que, pela primeira vez, tirarão o foco da hetenormatividade e da branquitude.

É importante destacar ainda que, de acordo com o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, a vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher, além da competência para julgar o agressor criminalmente e determinar a aplicação de medidas protetivas de urgência, possui também competência para julgar ação cível movida pela vítima, desde que tenha como fundamento a violência doméstica familiar sofrida, como por exemplo separação judicial, divórcio, reconhecimento e dissolução de união estável, alimentos, guarda dos filhos, dano patrimonial contra mães e filhos, portanto possui a competência híbrida.

Na análise da conjuntura da violência letal no Brasil, em divulgação do IPEA no "Atlas da Violência 2020", temos que em 2018 uma mulher foi assassinada a cada duas horas, totalizando 4.519 mulheres vítimas, o que representa uma taxa de 4,3 homicídios para cada cem mil habitantes do sexo feminino. Entre 2008 e 2018, o Brasil teve um aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres. Em alguns estados, a taxa de homicídios em 2018 mais do que dobrou em relação a 2008: é o caso do Ceará, cujos homicídios de mulheres aumentaram 278,6%; de Roraima, que teve um crescimento de 186,8%; e do Acre, onde o aumento foi de 126,6%. Em 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Enquanto entre as mulheres não negras a taxa de mortalidade por homicídios no último ano foi de 2,8 por cem mil, entre as negras a taxa chegou a 5,2 por cem mil, praticamente o dobro. A diferença fica ainda mais explícita em Estados nordestinos como Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, onde as taxas de homicídios de mulheres negras foram quase quatro vezes maiores do que aquelas de mulheres não negras. Em Alagoas, Estado com a maior diferença entre negras e não negras, os homicídios foram quase sete vezes maiores entre as mulheres negras. É preciso investigar em quais contextos essas mortes ocorrem nesses estados nordestinos, identificando em quais áreas há necessidade de mais enfrentamento dessas violências. Descobrir, com dados oficiais, se essa violência está localizada mais no sertão ou no litoral, o perfil dos agressores, se as vítimas deram entrada na rede de enfrentamento à violência de gênero, se onde ocorreu o crime há delegacias da mulher e também fazer um trabalho de assistência social local naquela comunidade afetada.

Uma das grandes dificuldades para compreender com mais clareza sobre os crimes de gênero é a falta de dados oficiais integrados e sistematizados sobre a judicialização até a criminalização (ou não) dos casos. As diretrizes nacionais de combate ao feminicídio trazem orientações para investigação, processamento e julgamento, com perspectiva de gênero das mortes violentas de mulheres e foram criadas pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM) da Presidência da República no ano de 2016.

Diretrizes visam a colaborar para o aprimoramento da investigação policial, do processo judicial e do julgamento das mortes violentas de mulheres de modo a evidenciar as razões de gênero como causas dessas mortes. O objetivo é reconhecer que, em contextos e circunstâncias particulares, as desigualdades de poder estruturantes das relações de gênero contribuem para aumentar a vulnerabilidade e o risco que resultam nessas mortes e, a partir disso, aprimorar a resposta do Estado, em conformidade com as obrigações nacionais e internacionais assumidas pelo governo brasileiro.

Além de tratar sobre os direitos das vítimas, as diretrizes emitem recomendações acerca da investigação criminal, a atuação da perícia criminal, do Ministério Público e do Poder Judiciário que devem ser conduzidas com perspectiva de gênero nas mortes violentas de mulheres e também sobre a atuação da Defensoria Pública, em que há a possibilidade de atuação desta instituição como assistente de acusação nos casos levados ao Tribunal do Júri. Precisamos de informações sobre as práticas dos operadores jurídicos envolvidos nos processos criminais do Tribunal do Júri que versam sobre feminicídio, para identificar se são as recomendadas pelas Diretrizes Nacionais de Feminicídio, consequentemente poderemos comprovar a hipótese de que há (ou não) capacitação técnica na investigação, processamento e julgamento com perspectiva de gênero dos processos de feminicídio que foram judicializados desde 2016 no Brasil e contribuir para a expansão de informações sobre os processos de feminicídio que foram tratados pelo Judiciário e que ficam, geralmente, adstritos aos dados numéricos do CNJ.

Assim, conseguiremos ter dados sobre a revitimização das mulheres e informações sistematizadas e de fácil acesso sobre como os homens agressores estão sendo responsabilizados, seja nos casos de violência doméstica ou de feminicídio. No início de 2021 o TJ-PR em parceria com a UFPR, em projeto coordenado pela desembargadora Priscila Plachá Sá, publicou um dossiê pioneiro com dados sobre 300 feminicídios que chama atenção, entre outros questionamentos aos dados ali trabalhados, para esse problema social com repercussões econômicas, apontando para a necessidade da responsabilização dos agressores (2021, p.9): "A destinatária final é a mulher em situação de violência, sobretudo, numa perspectiva de evitabilidade do fenômeno pela fatalidade que obviamente encerra sobre si, não obstante a responsabilização dos autores do fato criminal, seja igualmente uma preocupação". Com as informações trazidas pelo dossiê é possível pensar na criação de uma política pública local, de forma a se antecipar à morte de tantas vítimas.

A revitimização expressa-se como o atendimento negligente, o descrédito na palavra da vítima, o descaso com seu sofrimento físico e/ou mental, o desrespeito à sua privacidade, o constrangimento e a responsabilização da vítima pela violência sofrida. É tão grave a revitimização no júri que tese ultrapassada como a da legítima defesa da honra voltou a assombrar e, infelizmente, o STF, com base na soberania do veredicto, corroborou com o machismo estrutural.

A defesa em júri precisa ser coerente e pautada com as diretrizes de combate ao feminicídio, sendo seus princípios: o acesso à Justiça integral e gratuita e o papel da Defensoria Pública; respeito à dignidade humana, à diferença e à privacidade; a participação em sentido amplo: informação, assistência, proteção e reparação; e o direito à justiça, à verdade e à memória.

O ordenamento brasileiro prevê mecanismos que viabilizem a reparação dos danos. A vítima sobrevivente ou as vítimas indiretas poderão agir de três formas: 1) aguardar o desfecho da ação penal, e com o trânsito em julgado dessa decisão ingressar no juízo cível; ou 2) ingressar desde logo no juízo cível com a ação de reparação de danos; ou 3) requerer que a reparação seja fixada na sentença penal condenatória.

As fases da investigação, processamento e julgamento de um feminicídio trazem em si a dor da injustiça, porque o irremediável já ocorreu. Permitir que os agressores fiquem impunes, sem responsabilização alguma, é uma narrativa que torna essas histórias mais cruéis ainda e simbolicamente tem efeitos danosos que retroalimentam uma cultura violenta contra as mulheres.

Autores

  • é advogada, historiadora, autora, professora de Direito, mestra e especialista em Direito Público pela UFBA e idealizadora do Projeto "Maternidade e Direito Brasileiro".

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