Opinião

Quem deve realizar a audiência de custódia de parlamentar federal?

Autores

  • Eduardo Januário Newton

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

17 de fevereiro de 2021, 18h19

Todos os holofotes da mídia estão voltados neste momento para a prisão, em suposto estado de flagrância, do deputado federal Daniel Silveira, decretada nesta terça-feira (16/2) pelo ministro Alexandre de Moraes. Trata-se de uma situação instigante, uma vez que dela avultam vários questionamentos jurídicos. Todavia, em razão dos limites espaciais, este texto se restringirá a abordar sobre o primeiro ato decorrente de qualquer prisão em flagrante: audiência de custódia!

E, antes mesmo de examinar a questão do órgão competente para a realização da audiência de custódia, há de se apontar para uma importante lição daqueles que defendem a gramática dos direitos humanos: todas pessoas são titulares, não existindo espaço para a sua negativa, mesmo entre os seus detratores.

Assim, esse direito subjetivo público de ser apresentado ao magistrado ou autoridade indicada por lei não pode ser sonegado ao parlamentar federal preso. Embora o instituto da audiência de custódia tenha sido denominado pelo deputado custodiado como uma "absurdidade" da Justiça [1] em uma rede social, não se lhe pode simplesmente negar a fruição desse direito.

É cediço que, para se resguardar a independência funcional e evitar qualquer perseguição de cunho político, a atividade do parlamentar é cercada de imunidades o que não pode ser ignorado em um país que conviveu com dois períodos autoritários no decorrer do século 20 entre elas, há previsão constitucional de somente ser preso em flagrante por crime inafiançável e de que esta prisão seja submetida à casa legislativa respectiva para que essa resolva sobre sua manutenção ou não (artigo 53, §2º, CRFB).

Surge, portanto, o seguinte questionamento: como a prisão em flagrante de Daniel Silveira, ou de qualquer outro parlamentar federal, deve ser analisada? Deverá ser realizada uma audiência de custódia por algum ministro do Supremo Tribunal Federal, pois há a prerrogativa de foro, e somente depois a apreciação da casa legislativa? Ou a apreciação da casa legislativa é anterior à realização da audiência de custódia pelo Supremo Tribunal Federal?

Mesmo para os que não compreendem a natureza constitucional da audiência de custódia, não se pode negar que tenha, no mínimo, natureza supralegal, em razão da previsão convencional, e a apreciação da prisão em flagrante do parlamentar pela respectiva casa encontra guarida expressa no texto constitucional, como então resolver essa aparente colisão de normas? A quem compete analisar a legalidade da prisão nesse caso?

A aparente antinomia pode ser conciliada com uma interpretação sistêmica das normas constitucionais e convencionais que regem a matéria.

Explica-se!

A audiência de custódia, importante instrumento de combate às prisões ilegais, está prevista no artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos e no artigo 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ambos ratificados pelo Brasil em 1992. Nos dois tratados internacionais há expressa previsão de que a competência para a realização da audiência de custódia é de "um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais".

No que se refere à possibilidade de outra autoridade, que não seja a judicial, realizar a audiência de custódia, os ensinamentos de Caio Paiva se mostram apropriados:

"Se a apresentação do preso cumpre finalidades relacionadas à prevenção da tortura e de repressão a prisões arbitrárias, ilegais ou desnecessárias, a autoridade responsável pela audiência de custódia deve ter independência, imparcialidade, e, sobretudo, poder para fazer cessar imediatamente qualquer tipo de ilegalidade" [2].

Não se trata de postura isolada a sustentada por Caio Paiva, tal como se observa na argumentação defendida por Flávia Piovesan e Melina Giradi Fachin:

'Por 'autoridade competente' se deve entender o juiz ou outra autoridade legalmente autorizada para exercer as funções judiciais que satisfaça os requisitos da independência, imparcialidade e prévia designação por lei, fixados no artigo 8.1 da Convenção Americana (…)" [3].

Os pensamentos dos renomados doutrinadores, aliás, nada mais são do que o consagrado no caso Acosta Calderón versus Equador, que foi apreciado, em 24 de junho de 2005, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Eis o trecho relevante em tradução livre:

"(…) 'Um juiz ou outro autorizado por lei a exercer funções judiciais' devem satisfazer os requisitos estabelecidos no parágrafo primeiro do artigo 8º da Convenção. Nas circunstâncias do caso, o Tribunal entende que o Promotor do Ministério Público que recebeu a declaração preliminar do senhor Acosta Calderón não tinha poderes para ser considerado um ‘funcionário autorizado a exercer funções judiciais’, no sentido do artigo 7.5 da Convenção, uma vez que a Constituição Política do Equador, então em vigor, consagrava em seu artigo 98 quem eram os órgãos que tinham poderes para exercer funções judiciais e não concedeu essa competência aos agentes fiscais. Portanto, o agente fiscal que atuou no caso não tinha poderes suficientes para garantir o direito à liberdade e integridade informações pessoais da suposta vítima" [4].

Não se desconhece que no ordenamento jurídico brasileiro a temática prisional se encontra sob reserva de jurisdição, o que inclusive impediu que um posicionamento favorável à realização de audiências de custódia presididas por delegados de polícia vingasse.

Demais disso, é comando convencional e constitucional que a prisão ilegal deva ser imediatamente relaxada (artigo 5º, LXV, CRFB; artigo 7.6 da Convenção Americana de Direitos Humanos; artigo 9.4 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos).

Um dado não pode ser ignorado, qual seja, em se tratado de efetivação de prisão em flagrante não subsiste a reserva de jurisdição (artigo 5º, LXI, CRFB), vez que se trata de situação fática que permite a restrição da liberdade ambulatória por ordem de qualquer pessoa, tal como dispõe o artigo 301, Código de Processo Penal.

No que se refere à prisão em flagrante de parlamentar, há expressa previsão constitucional de que a casa legislativa deverá ser comunicada e resolver sobre a questão prisional.

A temática não é inédita, as casas legislativas detêm competência jurisdicional para o julgamento de tais fatos, verificando que questões como tipicidade, ilicitude e culpabilidade serão analisados pelos parlamentares quando decidirem sobre crime de responsabilidade, além, é claro, de questões eminentemente políticas.

Dito de outra forma: a partir de uma lógica própria do sistema de freios e contrapesos em que funções atípicas podem ser exercidas por cada um dos poderes constituídos, depara-se com competência jurisdicional para uma específica situação prisional.

Além disso, não resta dúvida de que o plenário da casa legislativa, até porque se trata de um regime democrático, é independente e pode se mostrar imparcial. Logo, não resta dúvida de que a audiência de custódia deve ser realizada pela casa legislativa, após ter sido comunicada da prisão, tal como preceitua o disposto no artigo 53, §2º, Constituição da República, em total consonância com as convenções internacionais sobre a matéria.

Desta forma, a casa legislativa verificará todas as questões pertinentes à audiência de custódia e à questão política que lhe é peculiar:

1) Questões ligadas a tortura ou maus tratos, afinal, o Brasil assumiu compromisso internacional de velar pelos direitos humanos, de forma que é obrigação do Estado (seja através do legislativo, judiciário ou executivo) proteger tais os direitos; 

2) Questões ligadas à legalidade ou ilegalidade da prisão, devendo determinar o relaxamento nesta última hipótese;

3) Resolver sobre a liberdade e aplicação de medidas cautelares; ou

4) Entender pela necessidade e adequação da prisão, prorrogando a prisão cautelar iniciada com o flagrante enquanto necessária.

Não é despiciendo lembrar que a casa legislativa pode, sim, deter competência para imposição de medidas cautelares, pois é autoridade judicial competente. Ademais, algumas medidas cautelares diversas aplicadas pelos parlamentares pelo órgão jurisdicional tem previsão expressa no ordenamento jurídico também podem ser determinadas pelos deputados, como, por exemplo, o disposto no artigo 53, §8º, de que as imunidades podem ser suspensas ou a perda de mandato. Aliás, o STF já decidiu que qualquer medida cautelar imposta a parlamentar só tem eficácia se submetida e aprovada pela respectiva casa legislativa (Câmara ou Senado), nos casos que impedirem ou dificultarem o exercício do mandato (STF ADI 5526).

Após a apreciação pela casa legislativa, não haverá qualquer necessidade de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de referendar, ou não, a decisão adotada por quem é competente para a realização da audiência de custódia: a uma porque as questões atinentes à audiência de custódia foram todas analisadas pelo órgão jurisdicional atípico competente; a duas porque não há possibilidade jurídica de decretação de prisão preventiva, assim, tampouco haveria a possibilidade de conversão de prisão em fragrante em preventiva, afinal

"Deixa de fazer sentido qualquer distinção entre decretar e converter a prisão em flagrante em preventiva, pois são atividades decisórias rigorosamente iguais que verificam rigorosamente as mesmas questões (necessidade/adequação das medidas cautelares diversas, pressupostos e requisitos ensejadores da prisão preventiva etc.)" [5].

Ora, se não pode o Supremo Tribunal Federal decretar prisão preventiva de ofício ou mesmo após requerimento do Ministério Público, conforme se verificou na AP 4039, não haveria também qualquer espaço, dentro do sistema acusatório e da interpretação sistêmica e coerente da Constituição, para a possibilidade de conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, seja de ofício ou mesmo por requerimento do PGR.

"Distinguir decretar e converter é um mero jogo de linguagem", seria esvaziar completamente de sentido o texto constitucional inscrito no artigo 53, 2º, que impede que o STF decrete prisão preventiva de parlamentar, mas, ao mesmo tempo, permitir que o STF dê voz de prisão em flagrante, e depois converta o flagrante em preventiva. Em respeito à República e ao ser observado o Estado democrático de Direito, não há como realizar uma interpretação constitucional que venha a defender essa posição pautada em atividade linguística lúdica.

A Constituição, a partir do checks and balance, incumbiu ao parlamento esta parcela de poder, e não se pode sabotar este modelo constitucional a guisa de boas intenções, material asfáltico das estradas ao inferno, esperando que não haja fortes reações e consequências funestas. Afastar completamente o texto constitucional, esvaziar completamente sentido de normas, é um passo para o abismo. É, tal como advertido por Lenio Streck, jogar a criança fora junto com a água suja da bacia [6].

Ainda na esteira desse ponto sobre a questão da prisão de parlamentar em situação flagrancial, é oportuno destacar que a doutrina sempre apontou para a natureza precautelar da prisão em flagrante, o que era justificado pela necessidade constitucional de apreciação imediata de qualquer prisão. Como consequência desse entendimento Aury Lopes Júnior textualmente sustenta a seguinte conclusão:

"Logo, ninguém pode permanecer preso sob o fundamento ‘prisão em flagrante’, pois esse não é um título suficiente" [7].

A questão é que o encarceramento provisório de um parlamentar, em razão da impossibilidade de decretação da prisão preventiva, o que impede a conversão do flagrante em prisão preventiva, como já apontado no curso deste texto, acaba por constituir uma exceção ao entendimento doutrinário sustentado por Aury Lopes Júnior. Dito de outra forma: na hipótese de uma casa legislativa manter a prisão em flagrante, haverá perpetuação daquele título prisional tido como precário pela doutrina, sendo uma hipótese excepcional.

O texto toma como norte histórico a prisão do deputado Daniel Siqueira, mas pretende chamar à reflexão sobre o tema em qualquer outro caso, e o fato de o Plenário do Supremo Tribunal Federal ter mantido a prisão do parlamentar em questão em nada altera o que é defendido nesta reflexão.

Como apontado no início, diversos temas podem ser suscitados a partir da prisão em flagrante do parlamentar federal em questão. Este texto focou tão somente na temática da audiência de custódia, tendo sido defendida a hipótese de que, nesta hipótese, caberá ao Plenário da casa legislativa respectiva realizá-la.

Por fim, há um quê de ironia que não pode ser ignorado: quem tanto bradou pelo retorno ao regime autoritário poderá ser reintegrado ao concerto comunitário graças a um instituto que, por ele, foi tido como um absurdo.

A Terra não é plana e na pós-modernidade tem girado mais rápido do que se pode imaginar.

 


[2] PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.47.

[3] PIOVESAN, Flávia & FACHIN, Melina Girardi. Comentário ao artigo 7º. In: PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 93.

[4] A sentença original pode ser acessada em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_129_esp1.pdf.

[5] STRECK, Lenio & ROCHA, Jorge Bheron. A batalha: o velho inquisitivismo não quer morrer – mas o novo nascerá. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-06/opiniao-velho-inquisitivismo-nao-morrer-nascera.

[6] STRECK, Lenio. Prova ilícita validada por boa-fé: lá se vai a criança com a água suja. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-ago-08/prova-ilicita-validada-boa-fe-la-bebe-agua-suja.

[7] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Volume II. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 74.

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