Trabalho contemporâneo

Hércules morreu. Agora, só o Messias?

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16 de fevereiro de 2021, 8h00

Spacca
Tenho me deparado com textos de integrantes da magistratura do trabalho sobre os rumos do Direito do Trabalho a partir das decisões do Supremo Tribunal Federal.  Normalmente muito bem escritos, seduzem pela mensagem que pretendem passar, uma espécie de alerta do apocalipse.  Não passam, entretanto, de um lamento pela morte de seus heróis.

Hércules, como sabemos, é uma referência à figura mitológica e costuma ser associado ao juiz que se utiliza de um poder discricionário para superar o texto legal, o juiz que não atua como mero "boca da lei", que vai além da literalidade para buscar a verdadeira justiça.  A bem da verdade, a questão é muito mais profunda, e indico o texto do professor Lênio Luiz Strek para quem deseja entender o problema, bem como a crítica aos demais modelos de juiz (Júpiter e Hermes), que pode ser acessado aqui. Para a finalidade deste comentário, basta a ideia generalizada do juiz como ser acima da média, um iluminado capaz de ir além dos textos legais, com conexão diretamente com a sabedoria que pode expressar a melhor interpretação para o Direito em cada caso que lhe é posto para análise.

Pois bem.  A Justiça do Trabalho, enquanto instituição integrante do Poder Judiciário, não ficou imune ao movimento de elogio à intervenção na vida social através do exercício da jurisdição, entrando de corpo e alma no ativismo para promover uma "verdadeira" justiça social. A ideia de praticar o bem, cumprindo valores consagrados constitucionalmente, como a erradicação de desigualdades, o valor social do trabalho e, por fim, a própria dignidade da pessoa humana, fizeram com que as decisões fossem inspiradas por uma agir no sentido pró trabalhador, alcunhando seus juízes de humanistas vinculados à promoção do bem estar social.  Claro, os que seguiram esta cartilha.

Existem inúmeros exemplos de decisões da Justiça do Trabalho que seguem esta matiz ideológica, algumas inclusive consagradas na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho em Súmulas e Orientações Jurisprudenciais.  A incorporação da gratificação de função (Súmula 372), as estabilidades da gestante (Súmula 244, III) e a decorrente de acidente de trabalho (Súmula 378, III) em contratos a termo são normalmente citadas como casos em que a interpretação foi além do texto legal. A primeira já se tornou inaplicável com o acréscimo do parágrafo segundo ao artigo 468 da CLT pela Reforma Trabalhista, as demais ainda remanescem, o que na prática significa dizer que um direito (estabilidade) que surge porque existe um contrato sobrevive ao próprio fim do contrato que, por sua vez, não pode findar por conta daquele direito.  Difícil de explicar não?  Melhor não tentar.

A situação mais recente foi a decisão que impediu a dispensa em massa pela empresa Ford, que deliberou encerrar suas atividades por questão econômica, sem antes esgotar a via da negociação coletiva, requisito este não existente em nosso ordenamento jurídico que, ao contrário, prevê expressamente tal possibilidade (artigo 477-A da CLT).  Seria algo como manter os empregados em empresa inexistente.  Uma ficção somente possível no tortuoso mundo interpretativo do Direito. A decisão já foi objeto de reforma.

O interessante é que diversos magistrados trabalhistas, que entendem como correta esta postura interpretativo-ideológica, agora lamentam os rumos que o STF vem trazendo para o Direito do Trabalho. E, pior, acusando-o de atuar ideologicamente, como um traidor da classe, um agente do mal porque prioriza outros aspectos da vida em sociedade que não apenas os direitos do trabalhador celetista. Seria engraçado ver tal lamento, não fosse o perigo embutido nesta crítica.

O primeiro texto a que tive acesso foi o do colega Grijalbo Fernandes Coutinho, que logo no início dá o tom de seu pensamento: "E assim me conduzirei sob a perspectiva da existência de uma guerra jurídica no Brasil contra o Direito Constitucional do Trabalho, lente crítica objeto de pesquisa minha em curso perante à Faculdade de Direito da UFMG. Não é novidade que o Judiciário, como regra geral do modo peculiar de atuação nos momentos de embates econômico-políticos mais significativos entre o capital e o trabalho, assume inegável protagonismo no desmantelamento impiedoso da essência de normas trabalhistas aptas a impedir mortes e mutilações obreiras".

O segundo, do desembargador Gustavo Tadeu Alkmin, de forma bem mais elegante finaliza conclamando a uma reflexão apocalíptica: "A leitura das reflexões de Ilicht mostra que o mero exercício de poder e os aplausos alimentam a vaidade, mas são efêmeros. E que ser juiz exige mais que dedicação; é preciso empatia. Existem contextos por trás de cada litigante. Pois contextualizar o papel do Direito do Trabalho num país que banaliza a desigualdade social, levando em conta seus princípios, é o que ainda se espera do Supremo — e não que subtraia a última camisa da Justiça do Trabalho, como a dizer-lhe "acabou!". Porque algo está acontecendo. Mas o Mr. Jones sabe o que é. Não sabe?"

Em comum, além do fato de ambos serem ex-presidentes da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) e membros da AJD (Associação Juízes para a Democracia), o desencanto com o Supremo, a crítica à magistratura que não professa suas ideias, a necessidade de combate na guerra interna para que os trabalhadores sejam salvos de seus pares, pois nem todos conseguem enxergar suas iluminadas percepções do mundo, nem suas intenções.

O curioso nesta história, e que motiva a análise de hoje, é a amargura de experimentar do próprio remédio.  Se há um ramo do Poder Judiciário que não pode criticar decisões pós-positivistas, principiológicas ou o que o valha é a Justiça do Trabalho. Nos lambuzamos, desde que recebemos os ensinamentos de Dworkin e Alexy, numa combustão espontânea com a constitucionalização do Direito do Trabalho. Incrível é que ainda queiram apagar o fogo com mais combustível.

A magistratura trabalhista desenganada com o Supremo não percebe que a solução proposta apenas vai intoxicar ainda mais a aplicação do Direito do Trabalho.  Talvez, para usar a expressão do Grijalbo, já antevejam o fim dos seus tempos, restando como alternativa apenas instalar o medo e conclamar à guerra, eliminando — ainda que no plano simbólico — todos os que representam um perigo a sua justiça ideal.

E neste caminho carreiras são esmagadas, pessoas são alijadas, imagens são desgastadas, tudo em nome de uma forma de ver o mundo que não aceita divergências. E assim criam-se mundos antagônicos, ruindo amizades, criando grupos que se rivalizam na forma de exercer a interpretação do Direito, polarizando-se a tal ponto que não se pode se expressar dentro da própria instituição: quem não concordar com a cartilha, automaticamente vira inimigo nesta guerra santa.

O resultado é a pequenez que vivemos dentro do Direito do Trabalho.  Não há mais possibilidade para o diálogo, para pensamento divergente.  Os dois grandes grupos já estão formados: progressistas e conversadores (como inclusive já abordei nesta mesma coluna). Ser tachado num deles significa exclusão do outro. O resultado é que não existe mais liberdade de expressão, ressalvada a assunção de todas as consequências por se assumir uma posição.  E pouco importa tentar explicar que não se enquadra nem em um nem no outro, a lógica da guerra não faz concessões e precisa desumanizar o adversário, para justificar qualquer tipo de atuação a fim de vencê-lo.

Neste ponto, o leitor deve estar fazendo um juízo de valor sobre minha posição, que não pretendo defender nem enunciar, mas que espero seja tomada a partir das mais de duas décadas de atuação na Justiça do Trabalho (e não de duas laudas deste texto).  A bem da verdade, pouco importa como serei rotulado, desde que o alerta fique claro nestas linhas: há uma concertação para impedir o florescimento de uma nova Justiça do Trabalho e um novo Direito do Trabalho.

Não podemos sucumbir ao medo nem deflagrar um combate ao juiz que não é considerado progressista, humanista ou qualquer "ista" que seja.  Não podemos sucumbir a uma retórica que toca os corações e esquecer a realidade que nos assola: apenas 15% da população brasileira em geral está no modelo tradicional do Direito do Trabalho. Para 85% dos brasileiros a opção é um vazio protetivo.

Enquanto nós, intérpretes e aplicadores do Direito do Trabalho, perdemos energia e tempo com esta guerra entre o bem e o mal, as pessoas padecem, assim como o juiz "Hércules". Ainda temos a possibilidade de superar a dicotomia para construção de um sistema melhor para proteção social do trabalhador humano. É isso, ou esperar o Messias…

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