Opinião

Jogos de azar e internet gaming são lícitos no Brasil?

Autores

  • Gabriel Leôncio Lima

    é advogado atuante na área de propriedade intelectual com especialização em Tributação dos Negócios de Tecnologia e de Propriedade Intelectual e pós-graduado em Direito Empresarial ambos pela FGV-SP pós-graduado em Propriedade Intelectual Direito do Entretenimento Mídia e Moda pela ESA-OAB-SP membro efetivo na Comissão de Direito da Moda (CDMD) na OAB-RJ e da OAB-SP e autor de diversos artigos.

  • João Pedro Ferraz Teixeira

    é advogado sócio do escritório COTS Advogados consultor jurídico palestrante dedicado aos temas de Privacidade e Proteção de Dados Cyberlaw Online Dispute Resolution e Segurança da Informação especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e co-autor do livro "O Legítimo Interesse e a LGPDP" Editora Revista dos Tribunais 2020.

15 de fevereiro de 2021, 9h14

Não é sabida a exata origem dos jogos de azar, acredita-se que remontam há mais de dois milênios. Existem relatos de que os primeiros dados sugiram na antiga Roma; já os jogos de cartas surgiram no século 9 na China, aparecendo apenas alguns séculos mais tarde na Europa.

As casas de jogos, por sua vez, teriam surgido através de um visionário suíço que resolveu juntar vários jogos de sorte e azar numa sala, enquanto servia aos jogadores refeições e bebidas, criando-se, assim, os primeiros cassinos.

À medida em que a civilização evoluiu, os denominados jogos de sorte e azar também se desenvolveram, aumentando sua diversidade e complexidade. Hoje é possível realizar apostas ou jogar internet games em qualquer local do mundo, graças à rede mundial de computadores. Entretanto, essa prática é lícita?

Segundo dispõe o artigo 50 da Lei das Contravenções Penais (Decreto 3.688/41), é contravenção "estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele", enquanto o §3º do referido artigo, em sua alínea "a", complementa que considera-se jogo de azar "o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte".

Ao interpretar referido dispositivo legal, imperioso ressaltar que não se pode inverter o sentido da lei. Assim, para que o jogo não incida na vedação legal, o fator sorte não pode prevalecer sobre o fator habilidade. Consequentemente, todos os jogos em que o fator habilidade superar o fator sorte não podem ser considerados jogos de azar.

Apesar de serem considerados contravenção no Brasil, os jogos de azar não são estranhos aos brasileiros, os quais muitas vezes se utilizam de subterfúgios para sua prática, como uso de cartão de crédito com bandeira internacional, para viabilizar a participação em apostas virtuais por meio de sites hospedados nos mais diversos países ao redor do mundo.

Não bastasse a problemática dos tradicionais jogos de azar que agora se apresentam também em sua modalidade online, a evolução tecnológica e os avanços que ela permite trazem novos contornos a esta temática, como é o caso das loot boxes existentes nos mais variados jogos digitais.

As loot boxes são caixas de recompensa existentes em jogos digitais populares, como Fifa e Counter Strike: Global Offensive, as quais permitem que os usuários utilizem dinheiro real para, com base na sorte, serem premiados com itens virtuais para utilização no próprio jogo, tratando-se de um sistema estilo caça-níqueis em que, apesar de ser garantido o recebimento de algum item a cada rodada, o usuário conta com a sorte para conseguir o item efetivamente pretendido, muitas das vezes com baixa probabilidade de sucesso e, quase sempre, sem qualquer interferência doo fator habilidade.

Assim, os jogos de azar atingem novos patamares, encontrando espaço também no valioso mercado dos jogos digitais, que teve receita de US$ 126,6 bilhões em 2020 [1]. Além disso, esse novo mecanismo direciona os jogos de azar a novos públicos, pois os jogos digitais têm forte apelo entre crianças e adolescentes.

Nesse sentido, interessante destacar que, no ano de 2018, a Comissão de Jogos da Bélgica decidiu que a mecânica de loot box encorajaria as crianças à prática de jogos de azar e, portanto, violaria a legislação do país sobre jogos [2], já que a mistura dos jogos digitais com jogos de azar seria capaz de afetar seriamente a saúde mental de crianças e adolescentes, pois envolvem a incerteza quanto à recompensa e induzem os usuários a acreditar em alguma vantagem relacionada à utilização de seus mecanismos, sem, no entanto, deixar claro o caráter de aposta. Vale destacar, ainda, que estima-se que o mercado de loot boxes possa gerar, até o ano de 2022, uma receita de até US$ 50 bilhões, segundo dados da Juniper Research [3].

A problemática trazida por essas novas modalidades de jogos de azar é tanta que o tema vem sendo debatido a nível mundial. Além da sua proibição na Bélgica, o governo do Reino Unido realizou, após manifestação da Câmara dos Lordes sobre a necessidade de regulamentação das loot boxes como jogos de azar, consulta pública sobre a matéria [4] com objetivo de entender os impactos deste novo mecanismo em problemas relacionado a jogos de azar. Nos Estados Unidos, há uma ação coletiva que pretende a condenação EA Games no valor de US$ 5 milhões em razão das loot boxes utilizadas em seus jogos Fifa e Madden, supostamente pelas leis californianas relacionadas aos jogos de azar [5], enquanto o National Council on Problem Gambling [6], ainda em 2019, já havia apresentado parecer [7] à Federal Trade Commissionm[8] sobre sua preocupação com a semelhança entre estes mecanismos e os tradicionais jogos de azar.

No Brasil, no entanto, ainda não há uma normatização em relação aos jogos de azar na internet. Isso porque a Lei das Contravenções Penais dispõe que a legislação pátria apenas é aplicável quando a contravenção é praticada em território nacional. Dessa feita, como os jogos virtuais estão, na maioria das vezes, hospedados em domínios estrangeiros, figura-se um conflito de territorialidade, o que afasta a legitimidade e a competência do Estado brasileiro quanto à prática de jogos nestes ambientes.

Atualmente, há em trâmite perante o Congresso Nacional projetos de lei que visam a bloquear o acesso de brasileiros a algumas páginas de sites de apostas e jogos virtuais, bem como restringir o uso de cartão de crédito internacional para tais atividades, com objetivo de dificultar a prática de "jogos de azar". Outros projetos de lei, como o de n° 186/2014, que busca regulamentar jogo do bicho, bingo (online e presencial), jogos de cassino (online e alocados em complexos de lazer), apostas esportivas e não esportivas (online e presencial), estipulando como de responsabilidade do governo federal na fiscalização dos estabelecimentos credenciados. Importante lembrar que, no Brasil, somente são permitidos os jogos deste tipo quando realizados pela Loteria Federal.

Concluímos, portanto, que, devido à falta de regulamentação ou por questões jurídicas relacionadas à territorialidade, o poder público não consegue controlar, fiscalizar ou proibir que qualquer pessoa faça apostas ou jogue utlizando-se cartão de crédito internacional em casas de apostas de sites hospedados fora do território nacional, inexistindo, também, regulação quanto às loot boxes existentes em jogos digitais.

Posto isso, tem-se que essa temática deve ser tratada de forma específica no país, de modo a garantir que o Estado tenha efetivo controle sobre sua utilização e, ao mesmo tempo, sejam mitigadas as consequências lesivas dos jogos de azar, especialmente considerando que a internet e as novas tecnologias possibilitam o acesso a esse tipo de atividade por crianças e adolescentes, trazendo novos contornos a antigas questões.

 


[1] Nielsen Company. 2020 Year In Review: Digital Games and Interactive Media, disponível em: https://www.superdataresearch.com/reports/p/2020-year-in-review.

[3] Press Release, Juniper Research, Loot Boxes & Skins Gambling to Generate a $50 Billion Industry by 2022 (April 17, 2019). Disponível em: https://www.juniperresearch.com/press/press-releases/loot-boxesand-skins-gambling [https://perma.cc/P5Q3-EK2Q].

[6] Conselho Nacional de Jogo Problemático, em tradução livre.

[8] Comissão Federal de Comércio, em tradução livre.

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    é advogado atuante na área de propriedade intelectual, com especialização em Tributação dos Negócios de Tecnologia e de Propriedade Intelectual e pós-graduado em Direito Empresarial, ambos pela FGV-SP, pós-graduando em Propriedade Intelectual, Direito do Entretenimento, mídia e moda pela ESA-OAB/SP.

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    é advogado, sócio do escritório COTS Advogados, consultor jurídico, palestrante dedicado aos temas de Privacidade e Proteção de Dados, Cyberlaw, Online Dispute Resolution e Segurança da Informação, especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e co-autor do livro "O Legítimo Interesse e a LGPDP", Editora Revista dos Tribunais, 2020.

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