Separando joio do trigo

"Sem inteligência artificial, cobrança da dívida inscrita estaria condenada"

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14 de fevereiro de 2021, 9h39

O Plano São Paulo marcou a vida do contribuinte paulista em 2020. O conjunto de medidas e metas para lidar com a pandemia da Covid-19 dependeu da consultoria e defesa garantidas pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo. Também dependeu da instituição todo o combate a pedidos e pretensões de empresas e cidadãos que poderiam colocar em risco a coordenação das ações governamentais.

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Apesar desse papel de advocacia do governo estadual, a procuradora-Geral do estado, Maria Lia Pinto Porto Corona, afirma que parte do sucesso da atuação da PGE é devido ao fato de não ter caráter político, e, sim, de garantia do bem público. 

Escolhida pelo governador João Doria para ocupar o cargo no biênio 2019/2020, Lia Porto atuava como procuradora na área da dívida ativa, trazendo sua experiência para a administração e reestruturando completamente os procedimentos de gestão dos valores devidos ao estado. 

Para modernizar a dívida ativa do estado, apostou em inteligência artificial para separar as dívidas cobráveis das irrecuperáveis, tornando São Paulo o único estado que protesta 100% da dívida inscrita. Sem inteligência artificial, afirma, o trabalho estaria condenado. "A capacidade do Judiciário jogar o prazo e rodar o processo é enorme. Se a gente não estiver preparado desse lado, não consegue atender à demanda do Judiciário."

Especializada em Direito Tributário, ela ingressou na PGE-SP em 1993. Foi procuradora-chefe da Procuradoria Fiscal e, entre setembro de 2015 e abril de 2018, subprocuradora-Geral do Contencioso Tributário Fiscal. 

Impossibilitados de aderir como os outros membros da PGE ao regime de home office, Lia e sua equipe de assessores próximos trabalharam intensamente durante os momentos mais graves da pandemia para garantir a efetividade das medidas do estado.

Leia abaixo a entrevista:

ConJur — Os planos da administração da senhora foram concretizados? Quais são os objetivos para o futuro?
Lia Porto —
 Primeiro, esclarecendo que a Procuradoria não é uma secretaria, não é uma pasta, é uma instituição. Então nossos projetos e planos não são planos de governo, são de Estado. E desde que eu assumi, em 2019, posso dizer que sim, nós estamos atingindo tudo dos nossos projetos de atuação e, mais do que isso, estamos tendo 100% de apoio do governo do estado de São Paulo para que essas metas sejam atingidas. 

Atuamos em três grandes frentes. Uma delas é na área consultiva. Nenhum grande contrato ou projeto de governo sai ou é executado sem um parecer de viabilidade jurídica. Como esse governo tem empreendido muito, tem buscado muitos investimentos, buscado muitas novidades, então nossa área está sendo bastante demandada. Mas temos um quadro que vem se mostrando brilhante nesse sentido, para que nos apoie.

Temos uma frente que é o contencioso geral, que são todas essas residuais de ações que não são tributárias. Dentro da área do contencioso tributário, além da defesa das ações que nos chegam nos tribunais, temos uma parte que não é só cobrança da dívida ativa, mas gestão e cobrança. A dívida ativa pertenceu durante muito tempo à Secretaria da Fazenda. Em 2007, ela passou a ser organizada e controlada pela gestão da PGE. Durante muito tempo nós saneamos e organizamos a dívida.

Nem todas as empresas haviam apresentado os valores. Herdamos um universo que tivemos de depurar para saber, de tudo aquilo, o que nós consideramos dívida cobrada e dívidas que nós achamos que são incobráveis. Depuramos tudo primeiro e depois segmentamos de acordo com os nossos interesses.

Utilizamos inteligência artificial para nos ajudar nessa construção, pois a base e as variáveis são muito grandes. Você tem de analisar a tese, o processo judicial. Muitas vezes as pessoas já estão discutindo a dívida com garantia, o Estado cobra, o contribuinte se defende, deposita em juízo aquela dívida e tem o poder de discutir até a decisão final se ela é válida ou não. As maiores dívidas muitas vezes são ou estão sendo discutidas com depósitos, com garantias. Então elas não são exigíveis naquele momento. 

Por isso que a gente precisa de uma inteligência artificial, porque não estamos lidando com um único fator. Posso apresentar uma dívida de R$ 1 bilhão, mas ela está garantida, sendo discutida judicialmente. Então para nós não é que ela não é importante. Temos um grupo de procuradores para explorar a tese e discutir judicialmente. Vamos focar a nossa força de arrecadação naqueles que não têm a garantia e a dívida suspensa. E voltamos muitas vezes nisso.

ConJur — Quando falamos de modernização da dívida, é disso que se fala?
Lia Porto
  Posso lhe dizer que São Paulo, hoje, é o estado que tem a dívida ativa mais organizada, mais segmentada do Brasil. Porque quando os estados vêm nos procurar, é com a intenção de modernizar. Se você não fizer a lição de casa, você está lidando com dado podre. E isso torna o trabalho ineficiente.

O que aconteceu em São Paulo? Ficamos durante quase dez anos nesse trabalho, segmentando, saneando, tirando, oficializando conceitos. Trabalhamos muito junto da Secretaria da Fazenda, com o Tribunal de Contas, com a Procuradoria do estado para que isso fosse muito claro, para sabermos o que a gente poderia cobrar e o que não. Esse trabalho evoluiu bastante e hoje felizmente nós temos uma dívida muito organizada.

Ainda não fizemos a baixa dos incobráveis, pois isso depende também de autorização do Tribunal de Contas, da Procuradoria. Mas hoje em dia nós já conseguimos separar, segmentar. 

ConJur — Já há uma ideia de qual seria o impacto desses incobráveis na dívida ativa do estado?
Lia Porto
  Não tem muito. O impacto será muito positivo para nós, porque nós arrecadamos hoje um percentual que eu acho que está entre dois e três anos em cima de uma base suja. É o maior do Brasil, mas em cima de uma base suja. Então você tem uma base que, quando você tira e segmenta, novamente, de acordo com critérios contábeis e aprovados, aquela base diminui e seu percentual aumenta. Então o impacto é positivo. 

O estado estava sendo ineficiente por trabalhar e empreender esforços e dinheiro em dívidas que nós consideramos, por termos contábeis, irrecuperáveis. Por exemplo, agora estou dando um exemplo rasteiro, baixo. Uma empresa que está há 20 anos desaparecida com uma dívida milionária, os sócios morreram, não existe mais garantia nenhuma a se buscar, está inteira alaranjada. Você tem, às vezes, dívidas que são valores um pouquinho menores, mas que têm capacidade de serem recuperadas. Que são empresas ativas e coisas assim. Nós não vamos empreender esforços numa empresa que está desaparecida, sumida, alaranjada. Essa é a eficiência que nós estamos buscando. 

ConJur — Então é um trabalho de também cortar gastos com esforços que não trazem nada?
Lia Porto
  Exatamente. É uma economia. No princípio, isso era entendido como abrir mão do dinheiro público. Hoje a gente já entende que a cobrança é cara, envolve procurador, funcionário, Poder Judiciário, diligências. As diligências de um processo judicial são caríssimas. Então, às vezes, você fica empurrando aquele processo judicial, mandando fazer diligências que você sabe que são infrutíferas, mas você gasta para isso.

Então começamos a fazer conta. Quanto se está gastando aqui? Não está valendo a pena, estamos gastando muito para recuperar zero. Sendo que muitos devedores se aproveitam dessa massa ineficiente para que os processos deles demorem. A ineficiência é a demora da rapidez. Tempo na cobrança é tudo. Quando a gente tem uma massa muito grande, a gente está trabalhando sem foco. Quem não quer pagar se aproveita muito dessa situação.

Então há hoje uma reclamação muito grande, inclusive de associações, sindicatos e até de contribuintes que se associam, que ficaram incomodados com nossa eficiência. Acham que utilizamos inteligência para invasão de privacidade. Mas não, são todos dados públicos. A gente só fez isso: separou e dividiu esforços no que achamos que tem uma cobrança mais eficiente, para que não se gaste dinheiro público com coisas que não funcionam mais. 

A máquina é enorme, precisa ser enxugada. Isso está dentro do projeto que eu chamo de modernização e enxugamento de estrutura não física. Empreender as nossas estruturas em uma política mais eficiente de cobrança.

ConJur — A aprovação da Lei 17.293, que fala sobre transação tributária, está dentro desse contexto?
Lia Porto
  Sim. Hoje só é possível porque conseguimos, dentro dessa organização, segmentação de dívida ativa, fazer uma classificação, como também é feita já na Fazenda Nacional. Para você fazer uma segmentação, uma transação, você precisa ter uma lista. Isso só é possível quando você tem uma inteligência e critérios objetivos que são alimentados para isso. Estamos trabalhando muito nessa regulamentação interna para que esses sistemas nos apoiem.

As pessoas entendem muito a transação como programa de parcelamento incentivado. Não é anistia, é outra coisa. Uma empresa que chega aqui, por exemplo, um PPI, um parcelamento incentivado, entra num sistema e faz por isonomia de parcelas entre outros critérios. Já na transação, não. É dizer: "Deixa eu ver aqui como é que você conduz todos os seus processos, como é que você se comportou durante todos esses anos."

Se você andou sendo fraudador ou sonegador, não vai fazer, porque aí está em outra categoria. Se você tem suas dívidas garantidas, se a sua tese envolvida e discutida não é boa, se o estado for ganhar uma tese, porque eu vou transacionar? Eu só posso transacionar no que eu sei que eu vou perder ou que eu tenho menor possibilidade de vitória. A transação é muito complexa. 

ConJur — A lei tornou algo complexo mais regulamentado e, portanto, mais tangível?
Lia Porto — 
Isso não existia. A possibilidade de transação nunca foi posta exatamente porque nós não tínhamos lei. Só veio no momento em que a Procuradoria-Geral do Estado veio dizendo: "Ok, o estado de São Paulo está preparado para atuar na transação".

Enquanto nós não sentimos que o estado estava preparado para lidar de forma profissional com isso, não encaminhamos projeto nenhum. Porque é complexo. 

ConJur — A transação é só para quem está inscrito? Então é responsabilidade integral da PGE?
Lia Porto —
 Vai ser acompanhada por órgãos de controle. A gente tem de ter toda uma motivação para cada caso, justificar cada um, verificar tese, valor, possibilidade de pagamento, que em dívida conta muito. Dívida de 30, 50 anos. Principalmente quando a gente está falando de ICMS, até de IPVA, também. Isso é determinante.

Quando você recebe uma cobrança de autuação, ainda que seja dano inscrito, numa fase inicial, você tem toda uma fase administrativa. Acabando essa fase administrativa, a dívida é inscrita e passa a ser para a PGE. Existe um arranjo, uma disponibilidade dos bens e das garantias que podem ser feitas. Então, quando você demora muito para cobrar, você tem menos recuperação.

Nós temos um decreto estadual que dá 90 dias para a inscrição na dívida ativa. E aqui a dívida é inscrita. De 2016 para cá, ela era totalmente inscrita e depois ela passava a se chamar de ajuizada. Os 90 dias que a gente está falando estão aqui. 

Hoje nós não ajuizamos, transformamos em processo judicial todas as dívidas que são inscritas acima de R$ 30 mil. E 100% das dívidas inscritas, ajuizadas ou não, são protestadas. A partir do momento da inscrição, no máximo 30 dias depois, elas são protestadas. Isso foi uma mudança de paradigma absurda, é um sucesso. O estado de São Paulo é o único no Brasil que protesta 100% da dívida inscrita, tanto é que o protesto hoje corresponde a 30% da nossa arrecadação, sem honorários advocatícios.

ConJur — A inteligência artificial pode ser a resposta para muitos dos problemas do Judiciário?
Lia Porto
 — Sim, o Poder Judiciário tem a inteligência artificial, além de tudo isso, para um saneamento, uma segmentação e cobrança eficiente. Se nós não tivéssemos, estaríamos condenados porque hoje sentenças são dadas e os processos rodam inteligências, eles têm robôs. Então a capacidade do Judiciário jogar o prazo e rodar o processo é enorme. Se a gente não estiver preparado desse lado, não consegue atender à demanda do Judiciário. 

ConJur — Como foi para a PGE acompanhar os processos durante quase sete meses de sessões telepresenciais?
Lia Porto
 — A pandemia para nós praticamente não existiu. Trabalhamos todos os dias, sábado e domingo, desde que começou, presencialmente. Em um mês, recebemos 160 ações coletivas de altíssima complexidade, sempre ligadas ao exercício de direitos fundamentais. Os números totais só de ações tributárias superam mil ações para discutir elegibilidade de tributos por conta da pandemia.

ConJur — Recentemente, o STF decidiu sobre os poderes municipais que contratam consultoria jurídica sem licitação, na ADI 6.397, dizendo que a PGE tem exclusividade para prestar consultoria jurídica à administração pública estadual. Como a PGE-SP viu essa decisão?
Lia Porto
  No nosso Estado, os procuradores têm atuação exclusiva. Por exemplo, procuradores do município podem ter essa atuação com a advocacia judicial. Nós não. Temos muito tempo, um histórico de exclusividade no assessoramento e na produção de novas ações. Para nós nada mudou nessa decisão. Nossa instituição é centenária, o tema está na Constituição estadual. A preocupação dos municípios, talvez, seja mais por conta da grande quantidade e do tamanho de muitos deles.

ConJur — Qual a atuação recente mais relevante da PGE na área de uso de precatórios?
Lia Porto
 — Duas. Uma é a compensação. Antes não tínhamos, mas agora temos um sistema inteligente de compensação por dívida ativa. Então, por exemplo, muita gente que tem uma dívida ativa está discutindo judicialmente e tem um precatório. Compensamos. Isso já vem sendo executado há um tempo, um ou dois anos.

E nós temos o que chamamos de acordos. O nosso deságio é de 40%, pagamos 60% e posso dizer que ele é menor do que essas empresas que estão aí que oferecem compras e comércio de precatórios. Isso tem economizado também muito dinheiro do estado, favorecido ao dono do precatório que quer e que tem uma necessidade pequena. Temos muitos acordos e acordos legítimos. Com deságio aplicado quase que integralmente no interesse do credor.

ConJur — Como será o futuro para a PGE?
Lia Porto
  Vamos focar muito nessa transação, se devemos atuar mais com centros de organização. A nossa estrutura descentralizada, o quanto ela custa, o quanto ela é eficiente. Não digo nem do interior. No interior ok, eles estão longe. Vamos focar para uma missão interna. Temos, em relação a projetos de governo, uma agenda 2020/2021 muito complexa, na qual a nossa parte de consultoria e assessoramento estará totalmente envolvida. São investimentos muito vultosos, muito robustos. Isso vai realmente exigir muito estudo, uma nova organização de grupos de trabalho, mas sempre pensando na modernização do estado. 

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