Embargos Culturais

Arrependimento e Justiça no livro 'Desonra', de J. M. Coetzee

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

14 de fevereiro de 2021, 8h01

John Maxwell Coetzee (1940), escritor sul-africano, é, ao lado de Nadine Gordimer (1923-2014), também sul-africana, lugar-comum literário para reflexão em torno do problema do apartheid. Não se pode restringir o alcance e o valor desses dois autores porque seriam escritores de origem europeia e porque uma nota etnocêntrica marcaria respectivos pontos de vista. Nesse assunto, creio, não se poderia recusá-los uma posição privilegiada de fala. São escritores que revelam país conturbado, marcado por guerra interna à qual falta um mínimo de racionalidade: não há racionalidade em guerra nenhuma. Ambos, Coetzee e Nadine, foram laureados com o Prêmio Nobel de Literatura.

Spacca
Em "Desonra", Coetzee trata de um professor universitário solitário, divorciado, desiludido, com mais de 50 anos, e que nada mais espera de uma vida monótona. No entanto, como se percebe em suas atitudes (ainda que substancialmente condenáveis), é um homem coerente e que assumiu responsabilidade por atos censuráveis que praticou. Tem-se um estudo psicológico de um decadente, que protagonizou vida medíocre, no que essa expressão carregaria de neutralidade valorativa. Era um mediano, sem altos que o destacassem, e com algumas falhas que o levaram à perda de tudo.

"Desonra" é um livro que se divide em duas partes. Há uma desonra no envolvimento que o personagem central teve com uma aluna, e há desonra também na violência sexual de que foi vítima a filha do personagem central, atacada por vizinhos de uma fazenda distante, onde vivia. Na primeira seção do livro o personagem foi destituído de sua posição e honra universitárias por conta de rumoroso envolvimento. Recusou-se a se defender, reconhecendo-se culpado, assumindo integralmente a responsabilidade devida pelos atos que praticou.

O leitor é submetido a uma ambiguidade. Abomina o personagem pela relação que manteve com a jovem estudante e, ao mesmo tempo, não deixa de admirá-lo pela integridade com que assumiu a culpa, para efeitos de responsabilização funcional. Intimamente, o personagem, no entanto, não admitia que havia errado, argumentando em torno de pulsões intrínsecas a todos nós. O leitor é confrontado com limites pouco precisos entre impulsos naturais e convenções normativas. Um bom tema para exemplificar o alcance do imaginário contrato social que nos governaria. Há também pano de fundo para reflexão em torno da sinceridade de um pedido de desculpas ou, ainda, sobre a natureza do arrependimento, como forma de remissão de pecados.

Martirizado pelas forças incompreensíveis do desejo, o personagem acreditava que se poderia castigar um cachorro por ter roído um chinelo, mas não se poderia castiga-lo por obedecer a seus instintos. Transpondo-se essa simetria para a condição humana, no sentido de que não se aceitaria uma Justiça que castiga a quem obedeceu ao próprio instinto, Coetzee nos põe o complicadíssimo desafio à pureza do contratualismo social, que Sigmund Freud já havia impugnado em "A civilização e seus descontentes".

Não se trata da defesa de autorização para a prática de qualquer manifestação pulsional, até porque há indiscutível poder de recusa, por parte de quem é abordado. O problema está na intimidade de quem deseja, e de quem se exige o mais absoluto respeito para com o outro. É nesse (des)controle pulsional que Coetzee fixa um dos dramas mais incompreensíveis da natureza humana.

Na segunda parte do livro, o personagem vai até a casa da filha, que vivia na zona rural. Tem-se uma relação paternal difícil, a filha vive maritalmente com uma amiga, há alguma hostilidade com o pai. Coetzee propõe ao leitor reflexões em torno das relações entre pais e filhos, em ambiente socialmente degradado e desprovido de esperanças. É nessa parte do livro que explora a violência que marca o apartheid, com cenas assustadoras. O conflito é bem mais intenso do que se supõe, com o benefício de um distanciamento geográfico. O relato dos conflitos entre os locais e a filha do professor expressa, de um modo nada metafórico, o confronto entre grupos sociais marcados pelo ódio e pela negativa conciliadora.

Há muitos assuntos que Coetzee inventaria e problematiza nesse livro: solidão, divórcio, relação entre pais e filhos, o determinismo implacável das forças eróticas, uma teoria dos desejos manifestos, o tema central do arrependimento. Do ponto de vista político, o núcleo do livro consiste no preconceito racial, bem como na herança complicadíssima do trabalho missionário europeu na África. Há reflexões em torno da violência policial e da política de alianças entre as populações locais, violentadas pelo invasor. Há também um problema linguístico. O narrador não acreditava que o inglês fosse a língua mais apropriada para a expressão da verdade na África do Sul.

O personagem central falava italiano e francês, mas essas línguas nada valiam naquela porção da África. Sentia-se "desamparado, um alvo fácil, um personagem de cartoon, um missionário de batina e capacete esperando de mão juntas e olhos virados para o céu enquanto os selvagens combinam lá na língua deles como jogá-lo dentro do caldeirão de água fervendo". O requintado descendente de europeus era desprovido de qualquer poder real no contexto de uma região inóspita e agressiva.

O conflito interracial é incontrolável. De igual modo, a desigualdade social, intrínseca a toda situação de opressão racial. Segundo o narrador, era risco possuir coisas na África do Sul. Um carro, um par de sapatos e um maço de cigarros eram valores cuja disputa resultava nas mais incompreensíveis barbaridades. Há insuficiência de bens, indicativos de pobreza absoluta para uma população marginalizada e explorada. Instintivamente, tudo se resolve no plano da violência. Tem-se ponto de partida intrigante para pensarmos os temas do crime, do criminoso, da vítima e do sistema repressivo.

A vitimologia, que se ocupa também do papel da vítima na construção do enredo criminal, encontra na dinâmica do apartheid farto material para conjecturas e confirmação de hipóteses. Na segunda parte de "Desonra", o leitor questiona até que ponto os europeus atacados não seriam (no limite) os responsáveis pelas violências que sofreram. É um assunto complicado, no qual não tenho competência para opinar com segurança. Gosto, mas não entendo de criminologia.

"Desonra' é um livro emblemático para o selo Direito e literatura. É Direito na literatura em sua expressão mais ampla. É um libelo contra a violência e contra a irracionalidade da condição humana. Mostra-nos que o "fardo civilizador do homem branco" era mais uma falácia para justificar a violência e a opressão: somos todos culpados.

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