Opinião

Indeferimento prima facie, uma triste inovação

Autor

  • João Carlos Jarochinski Silva

    é pós-doutor pelo Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" (NEPO/Unicamp) pesquisador colaborador pelo NEPO/Unicamp e Research Fellow pela American University Washington D.C. professor-doutor de Direito Internacional da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e membro do programa e pós-graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF/UFRR) e da Cátedra Sergio Vieira de Mello (CSVM/UFRR).

12 de fevereiro de 2021, 15h12

Na 150ª Reunião Plenária Ordinária do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), realizada em 20 de novembro de 2020, foram julgados e indeferidos 17 solicitações de reconhecimento da condição de pessoa refugiada sem a realização das entrevistas de elegibilidade necessárias para a tomada de tal decisão, procedimento que é expressamente previsto no artigo 9º da lei 9.474/1997, complementado pelo artigo 18 da mesma lei. A alegação para a tomada dessa decisão decorre do entendimento por parte do comitê de que essas solicitações são manifestamente infundadas. Destaca-se, infelizmente, que esse tipo de decisão não é novidade no âmbito do Conare, já que na 143ª Reunião Plenária Ordinária, realizada em três de outubro de 2019, houve o indeferimento de uma solicitação sem se oportunizar a entrevista de elegibilidade ao solicitante.

As decisões de 20 de novembro por parte do Conare foram objeto de reação do meio jurídico e político. A Defensoria Pública da União (DPU) enviou ao Conare a Recomendação nº 4094830, na qual aponta a ilegalidade da medida e solicita a anulação desses atos administrativos, assim como recomenda que o órgão não indefira solicitações sem a devida entrevista de elegibilidade. Em sentido semelhante, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) também fez recomendação ao ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, visto que o Conare está vinculado a esse ministério, que anule as decisões, destacando que deliberações desse tipo não sejam baseadas apenas em critérios de nacionalidade e nas informações constantes dos formulários de solicitação preenchidos pelos solicitantes. O Senado Federal, sob a autoria da senadora Mara Gabrilli, notificou o ministro, por meio do Requerimento n° 3081, a prestar informações sobre a reunião de 20 de novembro e do processo de tomada dessas decisões relativas aos indeferimentos. Há, ainda, a solicitação de informações feita pelo Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, em que o órgão aponta fundamentação semelhante ao apresentado pelos demais citados.

Destaca-se, conforme amplamente apontado nos documentos citados, que, além de contrariar o próprio texto legal, a decisão pelo não reconhecimento da condição de pessoa refugiada contraria Resolução Normativa n° 29, de 29 de outubro de 2019, que estabelece o Sisconare, a qual traz em seu artigo 6° a possibilidade de procedimentos acelerados e simplificados para o reconhecimento da condição de refúgio para casos manifestamente fundados, assim como para os casos em que há numa análise prévia o entendimento de que o pedido é manifestamente infundado. Entretanto, como evidente de que uma resolução não pode contrariar a norma superior, a hipótese de não realização de entrevista nos casos previamente analisados como infundados não está prevista, pois é exatamente nesse momento em que o solicitante pode aclarar e trazer maiores informações sobre o contexto em que ele esteve envolvido e que justificaria o seu reconhecimento como refugiado.

Deve-se destacar, em primeiro lugar, que o objetivo de levar em conta apenas o que é reduzido a termo nos formulários de solicitação demonstra enorme desconhecimento da realidade envolvida no fenômeno do refúgio. As declarações prestadas quando da solicitação são realizadas junto à Polícia Federal, não sendo o equivalente a uma entrevista. Primeiro, por conta do seu formato. Segundo, pelo fato de muitos dos solicitantes terem receio de explicar seus casos em detalhe para autoridades policiais, conforme é amplamente apontado nos estudos relacionados ao tema. Outro ponto importante é que, em diversas oportunidades, a barreira da língua parece dificultar a obtenção de dados quando da realização dessa atividade.

Outro ponto relevante relacionado à entrevista de elegibilidade é o fato de que os entrevistadores possuem maior treinamento para fazer a escuta e compreenderem as informações trazidas pelos solicitantes. Nesse sentido, fundamental a sua realização conforme vontade do legislador e de diversos documentos internacionais vinculados ao tema, como o Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado, elaborado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). Não seguir os procedimentos estabelecidos pelo órgão já seria problemático para um país que se apresenta como engajado na temática da proteção da pessoa refugiada, mas se torna ainda mais constrangedor no momento em que o Brasil exerce a presidência do Comitê Executivo (Excom) do Acnur, o que, por si só, já aumenta a sua responsabilidade no cumprimento das medidas estabelecidas por essa agência da ONU [1].

A realização de entrevista adequada, conforme os preceitos estabelecidos nos manuais e nas boas práticas internacionais e nacionais, torna-se condição fundamental para que seja mantida a dinâmica de proteção aos refugiados e ao próprio instituto no Brasil, pois é o momento em que a pessoa refugiada pode expor a sua situação e apresentar os motivos pelos quais faz jus a proteção, o que também é a consolidação de que se lhe está sendo assegurado o devido processo legal para seu pedido. Não é a toa que o legislador determinou que o momento da prestação de esclarecimentos, e não o da solicitação, seja o início do procedimento da análise da solicitação, visto que nesse momento o solicitante pode vir a estabelecer uma comunicação mais efetiva com a autoridade brasileira, podendo contar, inclusive, com o apoio de tradutor.

Observa-se, nos últimos anos, em função do crescimento do número de solicitações de refúgio no Brasil, as tentativas do Conare em dar maior celeridade aos pedidos, seja para o reconhecimento ou não, pois a lei brasileira de refúgio é avaliada como avançada em termos protetivos e o instituto dela proveniente utilizado como um ativo de política externa, capaz de posicionar o Brasil, numa perspectiva histórica, entre os países mais acolhedores e engajados na proteção ao direito das pessoas refugiadas, argumento este que estaria enfraquecido atualmente pelo número de solicitações ser muito maior que o número de pessoas refugiadas no Brasil. Entretanto, esse problema decorre de uma estrutura de atendimento que não recebeu os investimentos necessários para o seu melhor funcionamento, não se podendo pleitear medidas que simplesmente tentam diminuir os números de solicitantes, principalmente quando essa tentativa de celeridade contraria o próprio texto legal. 

O caso em tela expõe a possibilidade de enorme injustiça para com os solicitantes que tiveram tolhido seu direito à entrevista na análise de seus pedidos, o que pode, por ventura, causar um enorme dano a esses indivíduos. Porém, convém pontuar que mesmo nos casos em que o procedimento célere e simplificado é adotado para o reconhecimento da condição de refugiado, como no caso dos venezuelanos, a prática do Conare não é isenta de crítica, pois não se tem clareza em relação aos procedimentos adotados para essas decisões, que muitas vezes são veiculadas como prima facie, mas que de fato são procedimentos simplificados para fins de atendimento dos interesses estatais, os quais permitem pouco controle em termos do tipo de informações levada em conta para essa decisão, tanto por parte da sociedade civil, como por parte dos próprios solicitantes. 

Celeridade, simplificação e até mesmo inovação são termos atraentes quando pensamos em direitos e analisamos que, em muitas situações, a demora numa decisão pode, por si só, representar um risco para quem depende desta. Entretanto, esse tipo de medida não pode desconsiderar a própria natureza do direito e tentar desconstruir elementos que representam a própria garantia do instituto. As lamentáveis decisões do Conare de indeferimento das solicitações de refúgio sem as entrevistas de elegibilidade representam justamente isso, a possibilidade de se criar uma inovação que atenta contra o próprio direito, que é o indeferimento da solicitação de refúgio prima facie.

 


[1] Em relação à facilitação da dos procedimentos em caso de pedidos abusivos, consultar a Recomendação 30 da 34ª sessão do EXCOM de 1983 e EC/SCP/29- Follow-up on Earlier Conclusions of the Sub-Committee on the Determination of Refugee Status with regard to the problem of manifestly unfounded or abusive applications. Ambos os documentos pontuam a necessidade entrevista pessoal com o solicitante, mesmo com a possibilidade de procedimentos mais céleres sejam aplicados e justificáveis (ExCOM, recomendação 30, parágrafo e (i); e EC/SCP/29 parágrafos 19, 20 e 29 (a).

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    é pós-doutor pelo Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" (NEPO/Unicamp), pesquisador colaborador pelo NEPO/Unicamp e Research Fellow pela American University, Washington D.C., professor-doutor de Direito Internacional da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e membro do programa e pós-graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF/UFRR) e da Cátedra Sergio Vieira de Mello (CSVM/UFRR).

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