Opinião

O conto 'Câmara e Cadeia', de Drummond, e o Brasil dos muitos tributos

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12 de fevereiro de 2021, 21h35

Uma das melhores formas de se apreender Direito é fazê-lo pelas artes. Os grandes escritores, os grandes pintores e os grandes cineastas deixam-nos legados, diretos ou não em suas obras, que mostram o Direito como ele é em dada sociedade, quando não como ele deveria ser.

Ultimamente, deparei-me com várias obras de arte em que o fenômeno tributário se manifesta, catando lições de Direito Financeiro e de Direito Tributário nas jazidas poéticas e artísticas, numa referência clara ao poeta maior, itabirano, de quem lavramos os ensinamentos neste texto.

Refiro-me a Carlos Drummond de Andrade, que, em um de seus belíssimos contos, contido em seu "Contos de Aprendiz" [1], retrata um diálogo, envolvendo dois vereadores, discutindo ponto por ponto o orçamento de um município, em 1920.

Há cem anos, no relato mágico de nosso maior poeta, o parco orçamento do município era de 72 contos de reis, não dando conta das despesas correntes, quanto mais pelas auguras de um ano ruim: praga na lavoura, peste no gado; empréstimo para pagar a conta de luz a juros altos.

Em ano ruim, "torna-se imperioso lançar novos impostos, criar taxas inéditas, como esta de afinador" (de pianos).

Mas quantos pianos há no município, alguém se pergunta? "Quinze no máximo, dos quais apenas uns cinco nos distritos: a taxa talvez não produza cinquenta mil-réis. Uma ninharia, meu caro".

Um tributo tolo no Brasil de tolos tributos.

Está é uma pequena aula drummondiana sobre tributação e finanças públicas.

A primeira é sobre a criatividade na sanha do poder de tributar, em como ela é grande, como sempre foi grande no país, o Brasil dos muitos tributos, dos muitos impostos, das muitas taxas, das contribuições a não mais se ver, das muitas multas também.

Por mais que o poder de tributar seja limitado constitucionalmente, a realidade dos fatos, as necessidades prementes dos caixas públicos, ainda fazem com que esses vençam o Direito.

A modulação de efeitos é uma forma em que isso se expressa. Não é um mal em si, mas pode estar sendo tomada em doses cavalares.

Assunto para outro texto, outra crônica …. O que se solta das letras de Drummond é uma pergunta que todos fazemos: Direito não é tão-só um fato social entre tantos outros?

Equilíbrio orçamentário existe como uma meta, critério ou princípio de responsabilidade fiscal, mas no conto, como ainda vemos por aí, nas cidades brasileiras, nos estados brasileiros, mais do que se tentar reduzir despesas opta-se pela "tributação criativa".

E, assim, os fatos vencem o Direito, tanto na sobreposição dos limites ao poder de tributar, quanto na praticabilidade da taxa criada [2].

Com poucos pianos, a instituição da "inusitada taxa" seria tributação para inglês ver, sem relevante acréscimo às finanças públicas.

Isso se ela pudesse ser criada, pois ainda estejamos sob regime constitucional tributário antigo: Drummond se refere também ao imposto de indústria e profissão, estamos antes da Emenda Constitucional nº 18 de 1965.

Por isso, há de se perguntar: seria uma taxa pelo efetivo exercício regular do poder de polícia, mas qual trabalho existe para fiscalizar 15 pianos, dos quais apenas cinco na área urbana?

Lembro-me de algumas taxas criadas por alguns Estados em que a fiscalização é humanamente impossível, sobre dutos abaixo do solo, em que ninguém pode chegar.

Ou seria taxa travestida de imposto sobre profissão, o que não abarcaria, àquela época, dentro da chamada norma de competência, tributar afinador de pianos, pois não existia ainda imposto sobre serviço de qualquer natureza?

Falta capacidade contributiva, pois, sim; parece uma tredestinação, pois, sim. Este o Brasil dos muitos tributos, de tolos tributos, se não há controle das despesas públicas.

Ler esse conto parece uma viagem deliciosa pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, ao signo-presuntivo de riqueza, à praticabilidade e ao controle das finanças públicas.

Continuando sua aula de sociologia tributária, Drummond sugere que um dos vereadores, João Batista, era adversário de todas as taxas por ser comerciante. O protótipo do homem que vê tributo como norma de rejeição social?

Valdemar, o vereador proponente da taxa dos afinadores de piano, um dos cinco entre nove vereadores que comparecia às sessões, sabia que o "povo precisava de escolas, de uma enfermaria no hospital em ruínas —, mas João Batista não admitia que se cobrasse mais dos bilhares e das fábricas de aguardente".

Acaso para João Batista o dinheiro nascia em árvores, os direitos da população e os serviços públicos esperados surgiam por geração espontânea?

Mas ele fica bem na fita, enquanto Valdemar "ficava com o papel odioso". Que pessoa vota em vereador que quer aumentar tributo?

Tributo estranho, é verdade, como é estranho João Batista achar que não se precisa de nenhum tributo. Libertarismo vulgar desde sempre.

Ricardo Lobo Torres, um dos grandes tributaristas brasileiros do século 20, disse certa feita que erámos os brasileiros liberais quanto a tentar evitar a tributação contra nós a todo custo, mas uns socialistas ou pessoas com trejeitos socializantes quanto a pedir por nossos direitos fundamentais e por nossas políticas públicas.

Inebriado daquela discussão, Valdemar sai do recinto em que transcorria a sessão da Câmara e vê dos fundos do prédio onde estava, na paisagem, a cadeia municipal.

Sabe que ali os presos se amontoam confusamente, na escuridão, na umidade, e se pergunta: "Como fazer leis e cobrar impostos pisando sobre presos"?

Nova aula de sociologia tributária de Drummond, que parece perguntar se a legitimidade da tributação se esvai com a ausência do Estado nos espaços sociais.

A adesão ao pagamento do tributo funcionaria mais pelas pessoas sentirem que a receita tributária traz frutos do que propriamente por coação.

Tributo legítimo é aquele que sentimos fazer o bem e não aquele sobre o qual sentimos a meação de ou o próprio castigo pelo inadimplemento. Um poeta acreditaria em monopólio legítimo da força?

Creio que não.

O desfecho do texto vai para caminhos fora da tributação e das finanças públicas, mas Carlos Drummond de Andrade, em poucas linhas, traçou uma das mais expressivas realidades dos temas no Brasil.

Direito e literatura na veia, à vera.

P.S.: Drummond ainda vive em alguns lugares históricos de Itabira, como o Memorial de Carlos Drummond de Andrade, tão bem cuidado por Solange e Jacquie. A primeira me disse que este conto teria sido motivado pela fuga de um prisioneiro da cadeia de Itabira e completou: "Drummond sempre atualíssimo".

 


[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. Câmara e Cadeia. In: ANDRADE, C.D. Contos de Aprendiz. 42ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 51-59.

[2] Nos insights de Alfredo Becker, acredito que a praticabilidade possa existir como um limite na própria instituição e cobrança dos tributos, o que fiz em minha tese de doutorado, revelando essa norma implícita do Sistema Constitucional Tributário. Ver PAULA, Daniel Giotti de. A praticabilidade no Direito Tributário: controle jurídico da complexidade. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2018.

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