Opinião

A dispensa de caução no cumprimento provisório de sentença

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12 de fevereiro de 2021, 20h22

O entendimento externado pelo Judiciário na fase de conhecimento de um processo autoriza o seu cumprimento, que importa, como sabido, em atividade material voltada à concretização do resultado a que se chegou.

Logicamente, antes que se tenha o trânsito em julgado da decisão, o resultado do processo pode ser modificado, em decorrência do acolhimento de recurso que contra o decidido veio a ser interposto. É certo, porém, que a eternização dos recursos, embora se possa justificar com a plenitude do direito de defesa, representaria óbice ao cumprimento da garantia que se confere ao jurisdicionado de um processo com razoável duração (artigo 5º, LXXVIII, CF; artigo 4º, CPC), justificando, assim, um tempero na regra, que realmente o Código de Processo Civil realiza a partir da definição do efeito que atribui ao recurso, de modo que o óbice ao cumprimento da decisão existe apenas quando ao recurso cabível ou interposto a lei processual confere o efeito suspensivo. Resguarda-se, dessa forma, o direito do devedor. Todavia, mesmo sem esse efeito, ainda se fez necessário resguardar, se bem que em menor escala, o devedor dos riscos que possam advir com a execução e o posterior provimento de recurso que não possuía efeito suspensivo.

O cumprimento da sentença, portanto, se faz com carga plena depois do trânsito em julgado da decisão exequenda, podendo chegar-se aos atos finais para a satisfação do crédito, ou seja, à alienação de bens do executado e ao levantamento de dinheiro, sem qualquer cuidado maior. É a execução definitiva.

O artigo 520, por sua vez, admite o cumprimento provisório da decisão judicial "quando impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo". Tal cumprimento, que é somente provisório, tem restrições, notadamente porque o recurso pendente de julgamento pode ser provido, com o que o cumprimento ficaria sem efeito e as partes deveriam ser restituídas ao seu estado anterior (inciso II, artigo 520, CPC), desfazendo-se os atos praticados.

Protege-se o devedor na realização do cumprimento provisório impondo-se ao credor restrições quanto ao seu atuar, vedando, nessa linha, o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importam em transferência de posse ou alienação de propriedade ou outro direito real, salvo se houver a prestação de caução suficiente e idônea arbitrada pelo juiz (inciso IV, artigo 520, CPC). Essa regra é aceita em sua literalidade diante de recursos especiais e extraordinário, mas vem de ser afetada pela redação que se conferiu a um dos incisos que cuidam dos casos de dispensa de caução (artigo 521, CPC).

O artigo 521 dispensa a caução para o levantamento de dinheiro e alienação de bens quando a execução versar sobre crédito de natureza alimentar; quando o credor demonstrar situação de necessidade; quando a sentença que está sendo cumprida está conforme súmula do Supremo ou do Superior Tribunal de Justiça ou decisões proferidas em julgamento repetitivo. Além disso, na redação originária do atual Código de Processo Civil, também se colocava neste mesmo artigo a dispensação de caução na pendência de "agravo fundado nos incisos II e III do artigo 1.042".

A previsão contida nesses dois incisos cuidava do agravo diante da não admissibilidade do especial ou do extraordinário contra acórdão coincidente com a orientação do tribunal superior e do extraordinário versando fundamento já reconhecido como não contendo repercussão geral da questão constitucional, que é requisito de admissibilidade do extraordinário.

A Lei 13.256/16, que veio à luz antes da vigência do Código, revogou os referidos incisos (II e III) e previu, em termos amplos, o cabimento do agravo para a não admissibilidade do especial e do extraordinário, ressalvando, no caput do artigo 1.042, os casos de aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral ou de julgamento de recursos repetitivos. Essa disciplina acerca da recorribilidade completou-se com os §§1º e 2º do artigo 1.030, que, depois de elencar os casos de indeferimento do especial e do extraordinário, dividem os recursos entre o agravo (nos próprios autos) e o agravo interno, de acordo com o fundamento da negativa de subida do recurso.

Revogados os incisos a que a redação originária do artigo 521, III, fazia referência, deu-se ao dispositivo outra redação, generalizando na sua literalidade a dispensa de caução para todos os casos de agravo contra a não admissão dos recursos especial ou extraordinário. Apartou-se, pois, do seu sentido primitivo, ditando regra simplista ("pender o agravo do artigo 1.042"), que vem sendo entendida como correta pela jurisprudência (TJ-SP, AI n. 2045566-40.2020.8.26.0000) e pela doutrina (cf. PAULO EDUARDO D’ARCE PINHEIRO, Código de Processo Civil Anotado, GZ Editora, AASP, OAB/PR, 3ª edição, pág. 786).

Apesar da literalidade da previsão legal, essa não parece ser a melhor interpretação. A regra em questão não se esgota no quanto declinado, devendo se ter presente que a nova redação que se conferiu ao inciso III do artigo 521 foi fruto da modificação ocorrida quanto ao recurso cabível contra o indeferimento do especial e do extraordinário, onde existia um tratamento diferenciado conforme o teor da decisão. A nova redação do inciso não poderia reportar-se a regra inexistente, mas também não poderia restringir a proteção conferida ao devedor que se voltava apenas a certos fundamentos da decisão.

A previsão original da disposição (inciso III, artigo 521, CPC) restringia a ausência da obrigação de prestar caução apenas aos casos em que o especial e/ou o extraordinário tivessem sido obstados porque já se firmara a orientação dos tribunais superiores ao sentido da decisão (artigo 1.042, II) ou, então, quando, em se cuidando de extraordinário, já houvera antes o Supremo negado repercussão geral da questão discutida no recurso obstado (artigo 1.042, III). Portanto, a modificação da lei buscava uma simples adaptação do preceito e nada justificaria a retirada da exigência de caução para os casos de pendência de agravo contra o indeferimento do especial fora daquelas hipóteses específicas e denotadoras de posição indubitavelmente consolidada dos tribunais superiores, a ponto de negar a subida do especial em prestígio da própria posição por eles antes sedimentada. Não é, nem pode ser para as hipóteses comuns de indeferimento que superam, notadamente no Tribunal de Justiça de São Paulo, a 90% dos recursos interpostos.

Para as hipóteses comuns de negativa de subida a regra não se mostra adequada, mesmo porque não se pode retirar toda a importância da decisão dos tribunais superiores, deixando evidente a predisposição de se entender totalmente inócua a interposição de recurso para esses órgãos se já antes a presidência do tribunal a quo tiver constatado óbice ao provimento do recurso, ou seja, estaria a segunda instância, com o entendimento de sua presidência, se sobrepondo aos tribunais superiores, o que soa contraditório, sem dúvida. Haveria, ademais, um convite aos tribunais superiores para manterem as decisões inferiores de modo a não ensejarem o ressurgimento dos processos com a criação de novas desavenças, dado que terão que ser desmontadas execuções provisórias realizadas de modo precipitado e sem garantia de que a reposição das coisas ao estado anterior seria feita, pois caução para tanto não precisou ser prestada.

Sem dúvida o apego à simples letra da lei denota violação ao que o sistema como um todo impõe. Faz-se necessário reconstituir-se normativamente a inserção da regra no ordenamento, admitindo-se, pois, essa restrição somente para os casos em que o agravo foi ofertado contra decisões para as quais, outrora, entendia-se não caber as exigências próprias da execução provisória. Não se pode, dessa forma, conferir ao preceito atual do inciso III do artigo 521, sentido que se contraponha ao que o conceito possuía quando foi elaborado o código.

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