Opinião

Pode o empregado se recusar a se vacinar contra a Covid-19?

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12 de fevereiro de 2021, 9h14

Com o início da campanha de vacinação contra a Covid-19, uma questão relevante tornou-se alvo de grande inquietação e dúvida nas relações de trabalho.

Pode a empresa dispensar — por justa causa ou não — o empregado que se recusar à vacinação contra a Covid-19 quando houver plena disponibilidade, segundo a ordem de prioridades estabelecida pelo Ministério da Saúde?

Os que defendem a validade da recusa à vacinação se amparam, resumidamente, em respeitáveis fundamentos:

1) Não há lei que obrigue o empregado a ser vacinado, de modo que o poder hierárquico do empregador não lhe autoriza exigir obrigação não prevista em lei (artigo 5º, II da CRFB);

2) Trata-se de liberdade individual (consciência e crença) assegurada em nossa Constituição Federal artigo 5º, VI e VIII da CRFB; e

3) O empregado não pode ser dispensado pelo exercício de uma liberdade individual, ficando privado do direito social ao trabalho em desvalorização aos valores sociais do trabalho notadamente humano (artigo 1º, IV, e 6º, caput, e 170, caput, da CRFB).

Entendemos de outra forma, embora reconhecendo que a questão suscita polêmica e que seriam ainda prematuras quaisquer medidas relacionadas a eventual recusa à vacinação, estando o processo de imunização na sua fase inicial.

Partindo de uma análise sistemática, a Lei 13.979/20, no seu artigo 3º, III, "d", autorizou, de modo geral, que os entes federativos determinem a vacinação compulsória, relacionada no citado dispositivo entre as medidas de prevenção ao contágio.

A constitucionalidade do referido preceito legal foi questionada através das ADIs 6.586 e 6.587. Além disso, o STF também apreciou, no ARE 1.267.879, o alegado direito de recusa à imunização por convicções filosóficas ou religiosas.

O julgamento do agravo em recurso extraordinário (ARE) originou a seguinte tese de repercussão geral: "É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no plano nacional de imunizações; ou tenha sua aplicação obrigatória decretada em lei; ou seja objeto de determinação da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar".

E, apreciando as ADIs, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da autorização legal para a vacinação obrigatória, com a natural ressalva de que compulsoriedade não se confunde com coerção e uso de força física, estabelecendo, então, que: "(I) a vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; e (II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência".

O posicionamento do STF afasta, de plano, a recusa injustificada à vacinação — não legitimando, inclusive, a recusa a pretexto de crenças religiosas e convicções filosóficas —, atestando, ainda, a conformidade com o texto constitucional da previsão da Lei 13.979/20, que autoriza a vacinação compulsória, obviamente sem coerção, observadas as ressalvas indicadas no voto do ministro relator.

Não nos parece razoável, assim, considerar que a vacinação compulsória no âmbito laboral só poderia implicar consequências concretas a partir da existência de lei específica que dispusesse explicitamente sobre imunização e relações de trabalho.

As bases estão estipuladas em lei chancelada pelo Supremo Tribunal Federal. Empregados e cidadãos não são "categorias", muito menos distintas e o ambiente de trabalho não é segregado do meio ambiente global. Se os entes públicos estão autorizados à aplicação de multas e à imposição de restrições ao exercício de atividades e de frequência em determinados locais, àqueles que livremente optarem pela não imunização, podem os empregadores, em nome do bom senso e da lógica jurídica, normatizarem restrições e penalidades aos seus empregados não vacinados por escolhas próprias, pois o objetivo comum, nos âmbitos público e privado, decorrente da lei existente e da orientação do STF, é o combate à pandemia, preservando, em linha contígua, o meio ambiente, a saúde e a vida.

O empregador não legisla. No exercício do seu poder diretivo, ele edita os seus regulamentos — que são fontes de direitos e obrigações —, os quais, por decorrência da lei geral (Lei 13.979/20), estão autorizados a contemplar, como regra, a imunização obrigatória dos seus empregados.

Repise-se que a decisão do STF, nos termos voto do ministro Lewandowski, permite a adoção das mencionadas medidas indiretas para dar eficácia à compulsoriedade da vacinação, "(…) desde que previstas em lei ou dela decorrentes".

Ademais, a obrigação do empregador de adotar medidas de precaução no ambiente laboral tornou-se mais relevante e impositiva desde que o próprio STF, em 29/4/2020, apreciando um conjunto de ADIs, suspendeu a eficácia do artigo 29 da MP 927, permitindo, dessa forma, conforme o caso, o reconhecimento da contaminação pela Covid-19 como doença ocupacional, podendo-se até, à luz da teoria do risco, presumir a sua configuração, salvo prova em contrário, pelo exercício de funções essenciais, sobretudo em relação aos profissionais de saúde — priorizados nos cronogramas de vacinação — e quando verificado que o ambiente de trabalho não oferece condições de segurança, desrespeitando os conhecidos protocolos de prevenção.

Portanto, se pesa sobre o empregador a responsabilidade de zelo absoluto pela higidez das condições sanitárias no espaço laboral — que, transcendendo ao aspecto trabalhista, pode implicar consequências nas esferas cíveis e penais —, compelindo-o a adequações nos seus PCMSOs e PPRAs e legitimando-o a aferições de temperatura dos seus empregados, a determinação, às suas expensas, de testagens das mais diversas, não é racional tolher o titular dessa responsabilidade, o empregador, de se valer da vacinação compulsória como norma disciplinar, sabendo-se ser este, de acordo com a comunidade científica, o único meio verdadeiramente eficiente para a contenção da pandemia, considerado estratégia de saúde pública, cujo efeito será positivo na proporção direta da quantidade de vacinados, formando barreiras para a circulação do vírus, através do chamado estado de imunidade coletiva (ou imunidade de rebanho).

Nessa esteira, o legítimo direito de resistência do empregado, perante o seu empregador, não é o de se negar injustificadamente à vacinação, e, sim, o de se opor ao trabalho presencial caso o ambiente laboral não lhe proporcione todas as condições possíveis de segurança. Na realidade, imunização obrigatória está inserida, do ponto de vista das relações de trabalho, entre os aparatos de proteção do trabalhador, só que de importância ainda mais fundamental, pois dirigido à proteção individual e também da coletividade.

As posições manifestadas pelos ministros do STF nos julgamentos anteriormente mencionados, acerca da constitucionalidade da imunização compulsória, corroboram o que sustentamos acima, demarcando, com base em disposições expressas da CF (artigo 6º, no que se refere ao direito social à saúde, artigo 7º, XXII, que determina a redução dos riscos ao trabalho, "por meio de normas de saúde, higiene e segurança", artigo 225, que impõe ao poder público e a "coletividade" o dever de preservação do meio ambiente) e nos princípios da solidariedade, da dignidade e da proteção à vida, o limite das liberdades individuais quando o seu exercício possa afetar um direito maior, colocando em risco a segurança dos seus pares no contingente laboral, das suas famílias e da sociedade como um todo.

Reputamos que os incisivos fundamentos do Supremo Tribunal Federal se estendem necessariamente às relações de trabalho. Desse modo, a vacinação obrigatória, prevista em norma empresarial, não afetará, no que pertine à aplicação do direito, a liberdade individual dos empregados de agir (princípio da legalidade), pensar e de praticar suas crenças religiosas e convicções filosóficas.

Não redundará, ainda, em restrição ao trabalho e discriminação de qualquer espécie. Como visto, a vacinação é compulsória, não forçada, cabendo ao empregado ou cidadão, uma vez elegível à vacinação, escolher se dela se beneficiará, participando, por consequência, do processo solidário de imunização coletiva, ciente, todavia, das restrições e penalidades que decorrerão, justificadamente, da possível recusa.

A restrição ao trabalho, em regra, para os não vacinados, longe de discriminar — ato que pressupõe uma vontade deliberada e injustificada de alijamento —, estará circunscrita ao poder hierárquico do empregador, e, mais ainda, ao seu dever legal, democrático e de cidadania de incentivar a adoção do meio mais efetivo e eficaz para conter a propagação do vírus no ambiente de trabalho, em benefício comum da saúde da coletividade, cumprindo, também, objetivamente, com a sua obrigação constitucional de zelar pela segurança dos seus empregados, sob pena de arcar com as responsabilidades antes aludidas.

É curioso frisar que o entendimento em contrário, ou seja, o de que a demissão, mesmo sem justa causa, do empregado que optar pela não imunização caracterizaria discriminação, se porventura vingasse, acabaria por criar uma proteção especial de garantia de emprego para os refratários à vacina, não aplicável aos vacinados, estabelecendo, aí, sim, a um só tempo, manifesto tratamento anti-isonômico, obrigação não prevista em lei aos empregadores, além de estimular a não imunização, em confronto com a nossa penosa realidade e com as orientações da comunidade científica e das autoridades sanitárias.

Acresce, em reforço ao direito do empregador de normatizar a exigência de vacinação, enquadrando a recusa injustificada como indisciplina ou, até, ato de insubordinação, que o ordenamento jurídico há muito prevê a responsabilização do empregado, por falta disciplinar, face a não observância de medidas de segurança. O parágrafo único do artigo 158, da CLT, v. g., dispõe que constituem falta do empregado o descumprimento de normas de segurança e medicina do trabalho e a recusa injustificada de uso de equipamentos de proteção individual.

De forma mais específica, a NR1, que define as condições gerais de aplicação de todas as normas regulamentadoras relativas a saúde e segurança do trabalho, estipula, no seu item 1.4.2, as obrigações do empregado quanto a estrita observância das ordens de serviço expedidas pelo empregador, a submissão aos exames médicos pertinentes, a obrigatória colaboração com as disposições das NRs e ao necessário uso dos EPIs, enquadrando, no seu item 1.4.2.1, como ato faltoso, a inobservância às mencionadas normas.

A situação presente, extraordinária e com altíssimo grau de letalidade, determina, no escopo legal de respeito às normas de segurança e medicina do trabalho, um rigor sobejamente maior, seja no cumprimento das normas seja nas consequências da sua transgressão.

Em necessária síntese, podemos assentar a seguinte tese: estando o programa nacional de vacinação plenamente acessível, a dispensa do empregado que, sem justificativa plausível, nos parâmetros definidos pelo STF, se recusar, por livre opção, à imunização pela vacina, não caracterizará discriminação, podendo, inclusive, ser admitida a aplicação da justa causa, enquadrada como um ato de indisciplina ou até mesmo de insubordinação do empregado, já que, em última análise, a recusa imotivada vai de encontro aos rigorosos protocolos de proteção sanitária e médica, atentando contra a preservação do meio ambiente, da saúde e da própria vida, individual e coletivamente, nos âmbitos público e privado.

Não obstante, o momento de excepcionalidade e as incertezas causadas pelo desenvolvimento da pandemia sugerem que a tese ora sustentada seja ponderada com práticas que busquem padrões de proporcionalidade no exame de situações concretas.

É sensato e prudente que as eventuais dispensas, principalmente por justa causa, sejam precedidas de farta orientação e de advertências, oportunizando-se ao empregado com acesso à vacinação rever a recusa inicialmente manifestada.

No mesmo sentido, é razoável que o empregador procure alternativas às demissões, em especial em atividades não essenciais, como o aproveitamento do empregado em home office, desde que cabível, o que, entretanto, não prejudica o presente posicionamento jurídico.

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