Opinião

Sobre a natureza do prazo para cumprimento de obrigação de fazer

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12 de fevereiro de 2021, 12h08

A consolidação jurisprudencial acerca da natureza jurídica do prazo para cumprimento de obrigação de fazer é tema de extrema relevância, eis que trará segurança jurídica aos advogados e partes do processo quanto à forma de contagem de tais prazos.

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, os prazos processuais por ele regidos, até então contados em dias corridos, passaram a ser computados em dias úteis, o que trouxe grande alívio aos advogados, que, na prática, muitas vezes acabavam tendo um ou dois dias úteis para cumprir um prazo que na teoria seria de cinco dias, situação que se visualizava quando esse prazo fluía durante o fim de semana e/ou feriado.

Em seguida, foi promulgada a Lei Federal 13.728/2018, instituída sob a mesma mens legis que embasou a redação do artigo 219 do CPC/2015, alterando a redação do artigo 12-A da Lei 9.099/95 (Lei de Juizados Especiais Cíveis e Criminais) para determinar a contagem em dias úteis para a prática dos atos processuais nos processos que tramitam no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais.

A partir da edição dessas leis, ante a repercussão na forma de contagem dos prazos processuais, um novo desafio foi proposto à doutrina e jurisprudência pátria: o de diferenciar os prazos processuais dos prazos de natureza material, uma vez que tanto o CPC/2015 como a Lei de Juizados Especiais Cíveis e Criminais não distinguem expressamente tais modalidades.

Em uma conceituação fundamentada em critérios ontológicos, poderíamos afirmar que o prazo é processual quando decorre do processo judicial, e de natureza material, se com este não guarda relação, ou seja, está previsto em lei, e portanto, existe independentemente da proposição da ação judicial a que poderia estar vinculado.

Assim, prazos para contestar, apelar, indicar provas a produzir seriam definidos como processuais, enquanto para impetrar mandado de segurança, prescricional, para reclamar de vício redibitório, consistiriam em prazos de natureza material.

Tal definição encontra respaldo na doutrina de Carreira Alvim. Vejamos:

"Normas materiais ou substanciais são aquelas que disciplinam diretamente as relações de vida, procurando compor conflitos de interesses entre os membros da comunidade social, bem como regular e organizar funções socialmente úteis" [1].

Partindo dessa definição, seria possível concluir que os prazos concernentes à obrigação de fazer e pagar, esta última prevista no artigo 523 do CPC, seriam processuais, por se tratarem de obrigações decorrentes do processo judicial.

Ocorre que renomados doutrinadores têm defendido tese distinta, no sentido de que por se tratarem de atos a serem cumpridos pelas partes, fora do processo judicial — muito embora guardem relação com este — a obrigação de fazer proveniente de tutela de urgência ou sentença, e a de pagar regulada pelo artigo 523 do CPC, se tratariam de prazos de natureza material (definição fundamentada em critério teleológico).

Esse é o entendimento de Daniel Amorim Assunção, ao discorrer a respeito do artigo 523, caput, verbi:

"Apesar de existir corrente doutrinária que defende tratar-se de um prazo processual (apud, Scarpinella Bueno, Manual, p. 402), em meu entendimento o prazo é material, porque o pagamento é ato a ser praticado pela parte e não pelo advogado, não se tratando, portanto, de ato postulatório" [2].

Acerca da obrigação de pagar, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que se trata de prazo processual, devendo ser contado em dias úteis Recurso Especial nº 1.708.348 – RJ (2017/0292104-9).

Entretanto, para defender tal entendimento, registra que a intimação para cumprimento da obrigação a que se refere o artigo 523 do CPC é destinada ao advogado, que por sua vez teria a atribuição de contatar o seu representado, a fim de solicitar que este cumpra a obrigação.

Destaca, ainda, que uma vez não cumprida a obrigação de pagar, inicia-se o prazo para apresentação de impugnação ao cumprimento de sentença, este iminentemente processual, sendo inegável a relação de simbiose entre tais atos, o que se apresenta como argumento válido na defesa da aplicação do artigo 219 do CPC na contagem do prazo previsto no artigo 523 do CPC.

O mesmo não se pode afirmar em relação à obrigação de fazer, razão pela qual, em que pese ainda não haver entendimento claro do Superior Tribunal de Justiça acerca dessa discussão, já é possível identificar tribunais firmando entendimento a respeito do tema, no sentido de se tratar de prazo de natureza material.

Neste sentido, vejamos os excertos jurisprudenciais abaixo transcritos, provenientes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

"OBRIGAÇÃO DE FAZER. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. Decisão que rejeitou impugnação da executada. Execução de multa referente a 102 dias de descumprimento da obrigação. Incidência da multa em dias corridos, e não em dias úteis. Prazo para cumprimento da obrigação de natureza material. Não aplicação da regra do art. 219 do CPC. Descumprimento de apenas 47 dias. Excesso de execução reconhecido. Litigância de má-fé. Não configurada. Decisão reformada. Recurso parcialmente provido" (TJ-SP – AI: 22527879020208260000 SP 2252787-90.2020.8.26.0000, Relator: Fernanda Gomes Camacho, Data de Julgamento: 24/11/2020, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/11/2020 — grifo do autor)

"Agravo de instrumento. Impugnação à multa imposta. Imposição de astreintes. Possibilidade. Valor da multa que não se mostra exagerado, sendo razoável e proporcional. Multa que incide em dias corridos e não em dias úteis, o que se aplica apenas aos prazos processuais. Recurso não provido" (TJ-SP; Agravo de Instrumento 2033577-37.2020.8.26.0000;Relator (a): Miguel Petroni Neto; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bebedouro – 1ª. Vara Judicial; Data do Julgamento: 9/9/2020; Data de Registro: 9/9/2020 — grifo do autor).

De igual forma, entendeu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

"EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. ASTREINTES. CONTAGEM DO PRAZO. DIAS CORRIDOS.
1. Hipótese em que o prazo para implantação do benefício foi fixado em 30 dias, de modo que, diante do cumprimento intempestivo, a multa diária deve ser contada em dias corridos.

2. Ademais, o artigo 219 do Código de Processo Civil determina a contagem de prazos em dias úteis, especificando o parágrafo único que tal disposição aplica-se tão somente aos prazos processuais. Assim, o prazo para a efetivação da tutela conta-se em dias corridos, já que não se trata de prazo para a prática de algum ato processual e sim para a implementação do próprio direito material reconhecido" (TRF-4, AG 5014110-37.2018.4.04.0000, TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DO PR, Relator OSCAR VALENTE CARDOSO, juntado aos autos em 9/7/2018 — grifo do autor).

Não é tarefa difícil, todavia, identificar entendimentos jurisprudenciais opostos, a exemplo dos abaixo encartados, emanados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, os quais tem como fundamento o fato da obrigação de fazer ser decorrente de ação judicial, razão pela qual sua natureza seria processual:

"EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRAZO PROCESSUAL. CONTAGEM EM DIAS ÚTEIS. TEMPESTIVIDADE. MULTA. INAPLICABILIDADE. Por ser de natureza processual, o prazo previsto para cumprimento da obrigação de fazer deve ser contado em dias úteis. Respeitado o prazo de 15 (quinze) dias úteis, contados da juntada do AR aos autos, tempestivo o cumprimento da obrigação, não havendo que se falar em aplicação de multa" (TJ-MG – AC: 10000200294601001 MG, Relator: Fabiano Rubinger de Queiroz (JD Convocado), Data de Julgamento: 17/05/0020, Data de Publicação: 21/05/2020 — grifo do autor).

"PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPLANTAÇÃO DE BENEFÍCIO. MULTA POR ATRASO NO CUMPRIMENTO. CONTAGEM. DIAS ÚTEIS. PRECEDENTE. RECURSO DO INSS PROVIDO. 1 – A multa diária, prevista no artigo 461, § 4º, do Código de Processo Civil (atuais artigos 536 e 537 do CPC/2015), é um instrumento processual, de natureza coercitiva, que visa assegurar a observância das ordens judiciais, bem como garantir a efetividade do direito reconhecido em prazo razoável. 2 – Essa medida inibe o devedor de descumprir a obrigação de fazer, ou de não fazer, bem como o desestimula de adimpli-la tardiamente, mediante a destinação da multa ao credor da obrigação inadimplida. 3 – No caso concreto, o INSS foi intimado, em 13 de dezembro de 2019, para colocar em manutenção a aposentadoria por invalidez no prazo de 15 dias, tendo cumprido a ordem em 24 de janeiro de 2020. 4 – O prazo para cumprimento da ordem judicial de implantação de benefício possui natureza processual e, portanto, sujeita-se ao regramento contemplado no art. 219 do Código de Processo Civil, devendo ser contado em dias úteis. Precedente. 5 – Assim, tratando-se de prazo processual, deve-se levar em conta a suspensão havida entre os dias 20 de dezembro e 20 de janeiro, a contento do disposto no art. 220 do CPC. 6 – Dessa forma, cumprida a ordem em 24 de janeiro de 2020, entende-se não ter o INSS extrapolado o prazo que lhe fora concedido pela sentença de primeiro grau de jurisdição. 7 – Agravo de instrumento interposto pelo INSS provido." (TRF-3 – AI: 50150392920204030000 SP, Relator: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO DELGADO, Data de Julgamento: 08/10/2020, 7ª Turma, Data de Publicação: e – DJF3 Judicial 1 DATA: 19/10/2020 — grifo do autor).

Assim, observa-se que os julgados relacionados ao tema em discussão têm se embasado em correntes hermenêuticas distintas. A primeira, levando em consideração a origem e essência da determinação judicial. A segunda, estabelecendo como critério prioritário a finalidade do ato.

Logo, muito embora o início da vigência do CPC de 2015 esteja próximo de completar cinco anos, a definição acerca da natureza da obrigação de fazer decorrente de decisão judicial, se material ou processual, o que determinará a aplicação ou não do artigo 219 do CPC e artigo 12-A da Lei 9.099/95 a esse prazo, ainda é objeto de divergência doutrinária e jurisprudencial.

Considerando que existem fundamentos relevantes em ambos os sentidos, até que o assunto seja pacificado pelo STJ, recomenda-se que o advogado aja com o máximo de prudência, o que corresponderia à contagem em dias corridos, a fim de evitar prejuízos às partes.

Acredita-se, todavia, que a interpretação da norma jurídica deve levar em consideração não somente a natureza da sua formação, mas também a motivação de sua criação.

Nesse aspecto, considerando que o artigo 219 do CPC e o 12-A da Lei 9.099/95 foram instituídos com o objetivo de possibilitar ao advogado o devido descanso no exercício de sua profissão, uma vez que o cumprimento de obrigação de fazer é destinado exclusivamente às partes que integram o polo passivo e ativo da lide, entende-se que, ainda que decorrente de processo judicial, possui natureza material, de modo que deve ser computado em dias corridos.

Diante da relevância da controvérsia em questão, torçamos para que esse tema seja brevemente sedimentado, e isso com estrita observância à legislação e à conhecida regra de hermenêutica que determina que "onde a lei não distingue não pode nem compete ao intérprete fazê-lo", evitando, desse modo, que o Judiciário venha a exceder sua competência na interpretação e na aplicação da lei.

 


[1] ALVIM, Carreira. Teoria Geral do Processo, Rio de Janeiro: Forense, 2015, livro digital.

[2] ASSUNÇÃO, Daniel Amorim. Manual de Direito Processual Civil – Volume Único. 8ª Edição – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. p. 1.124.

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