Opinião

As múltiplas facetas do dano existencial

Autor

  • Salus Henrique Silveira Ferro

    é advogado mestrando em Direito e Ciência Jurídica na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) especialista em Derecho de Daños (Direito de Danos) pela Universidad de Salamanca (USAL) e pós-graduado em Direito Intelectual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

11 de fevereiro de 2021, 10h34

A busca por uma categoria de danos que promova uma maior integralidade nas reparações das lesões ocorridas em solo italiano, advindos de um sistema jurídico fechado e com restrições no âmbito dos danos extrapatrimoniais, proporcionou uma interpretação constitucional que, acompanhada pela doutrina, repercutiu nos chamados danos existenciais.

A pequena introdução, embora sucinta, é microscópica perante todo o problemático histórico italiano, diante da lacuna da jurisprudência e limites processuais em enquadrar novas espécies de danos no âmbito da reparação civil.

O dano existencial, ainda presente na Itália, é aplicado dentro dos montantes destinados aos danos extrapatrimoniais, não existindo a manutenção dessa categoria como autônoma desde a Sentenza nº 26972 de 11 de novembro de 2008, mesmo após diversas discussões jurisprudenciais. Entre os críticos, haveria o receio de criar uma duplicação das indenizações advindas de um dano, de maneira que a nova categoria se mesclaria com as demais, já assegurada no ordenamento jurídico italiano.

Por sorte ou azar, o surgimento da nomenclatura dos danos existenciais no Brasil é diferente, e nada tem a ver com as discussões ocasionadas em âmbito da responsabilidade civil italiana. Expressa no ordenamento jurídico, embora com referências e sugestões de uma transição ao Direito Civil, é no Direito do Trabalho que o instituto se faz presente, mas ainda, com as repercussões e obscuridades já conhecidas além-mar.

Dono de diferentes conceituações, bem como da sua natureza jurídica, o instituto tem uma grande abrangência de aplicabilidade, e que remonta todas as discussões que o antecederam ainda na aparição doutrinária brasileira, sustentadas notavelmente por Flaviana Rampazzo. Do embate doutrinário das escolas jurídicas italianas, particularmente os juristas da escola de Trieste, oportunizaram diversas concepções desse novo instituto, e sobretudo, de sua diferenciação do dano biológico, já presente nas interpretações constitucionais.

Um não fazer, uma perda da qualidade de vida, a lesão de reflexos pejorativos, enfim; a dificuldade de uma conceituação absoluta é, sobretudo, advinda de um contexto que embora a vislumbrasse como necessária, corria-se o risco de permitir subespécies de categorias da interpretação constitucional. Não obstante, percebe-se que todas encontram-se no bojo jurídico de uma alteração substancial das diversas relações cotidianas. Não à toa, por uma característica de lesão temporária ou permanente, a junção do dano ao projeto de vida ou um dano à vida de relação são vislumbradas para fundamentar a natureza marcante desse novo instituto na doutrina brasileira.

Desde o surgimento dessa nova figura, os danos existenciais passaram a ser enquadrados a situações diversas e evidenciados como possibilidades de diversos campos e searas jurídicas, frutos das tradicionais interpretações ao danno alla persona.

Por certo, não há dúvidas de uma efetiva diferença da natureza dos danos existenciais aos danos morais, contudo, a discussão na reponsabilidade civil se esvai na medida que o dano moral se apresenta como a solução banalizada de toda a natureza extrapatrimonial, e consigo compete também a aplicabilidade dessa categoria no âmbito jurídico. No entanto, a abrangência descabida do dano moral faz, por si só, ainda mais urgente a necessidade de repensá-lo, mesmo que sem a consagração autônoma da categoria dos danos existenciais.

Contudo, ao invés de uma exaltação do instituto em solo brasileiro, a preocupação de múltiplas categorias de danos, tal qual ocorridas nos cenários italiano e francês, acaba por insustentar a autonomia do dano em áreas dispares do Direito do Trabalho, pelo qual a sua alta capacidade de banalização já é evidenciada em maior escala no dano moral. Por ter uma característica tão ampla, e ser inevitável sua concepção em outras áreas que não as tradicionais, o instituto merece uma maior objetividade, no qual a própria nomenclatura em subentender como "danos à existência", pode fatalmente induzir ao erro e uma subjetividade na qual assemelha-se uma simples perturbação da vida cotidiana.

Em sua dimensão, os danos existenciais apresentam-se na seara trabalhista nos casos de: jornada excessiva, abalos físicos e psicológicos, intervalos intrajornadas e indícios de uma turbação no convívio social ou pessoal, mas que ainda não estão delimitados e podem facilmente ser confundidos com os também expressos danos morais. Em suma, aos mais realistas, a subjetividade apresenta-se como inimiga da categoria dos danos existenciais.

Ao evidenciar a jurisprudência após a reforma trabalhista, em que pese ainda ser alvo de muitas discussões e de ADIs no Supremo Tribunal Federal, o dano existencial possui características díspares de aplicação e que denotam uma banalização do instituto ainda a espera de regulamentações. Como exemplo latente, a maioria das ações diz respeito à excessiva jornada de trabalho, no entanto, as divergências são evidentes e levam em conta diferentes horas trabalhadas à sua configuração, como os casos de 15 horas diárias que a contemplam pelo fundamento de prejudicar o convívio social e familiar, ou a rejeitam, por não haver comprovado qualquer prejuízo, ainda com a jornada de 15 horas.

Inaceitável e desumano, embora caracterizada as jornadas excessivas, o dano existencial por si só não haveria de ser aplicado, ao mesmo tempo em que a demonstração necessária do prejuízo familiar e social nesse contexto, de apenas nove horas diárias restantes de descanso e lazer, torna-se mais facilmente comprovada.

Contudo, ao que parece, a infinidade de situações que possibilitam o dano existencial no Brasil, pelo seu sistema jurídico aberto de regras e princípios juntamente com a ampla gama de direitos salvaguardados pela Constituição Cidadã, requer uma maior discussão sobre o assunto, de forma a regular as particularidades do instituto em outras áreas. As novas tecnologias e o ambiente virtual parecem transpor a discussão para campos distintos, por viabilizar nessa interação contemporânea acontecimentos que poderão ser abrangidos como um dano existencial ao lesado, como o revenge porn.

Ainda, o reinado dos danos existenciais em solo italiano teve um penoso desfecho, depois de exaltados tempos que permitiram a sua importação para outros cenários, explicando o obscurantismo doutrinário que permeia a doutrina brasileira com os acontecimentos pós-2008 na Itália, encobrindo as nuances que oportunizaram a banalização do instituto e enaltecendo características de uma reparação integral dos danos. As discussões posteriores não tardaram em produzir novas subespécies de danos, impulsionadas pela criatividade dos operadores do Direito e pela interpretação de caráter constitucional da doutrina, ainda que não florescessem no já não tão fértil terreno da responsabilidade civil italiana.

Até os dias de hoje, toda a conjuntura diante do instituto tem causado problemas e confusões de ordem processual e que sucessivamente recaem em situações como a Sentenza nº 3272 pela Corte di Cassazione de 2016, no qual prevê a especificidade do dano existencial na demanda para que seja reconhecido e indenizado ao montante. Ainda que ilustrados todos os acontecimentos e as lesões, nomeadamente do direito à saúde, a decisão é clara, os danos existenciais estão presentes e merecem estar expressamente nas futuras demandas, ainda que a simples menção em alguns casos gere um desconforto jurídico.

Tal insegurança jurídica que ainda emerge no âmbito da responsabilidade civil italiana, após o surgimento e sucessivas decisões acerca do dano existencial, deve ser devidamente interpretada, antes de permitirmos uma consagração do instituto em áreas variadas do ordenamento jurídico brasileiro, de maneira que a salvaguarda de direitos não incorra em problematizações capazes de inviabilizar ou afetar a reparação integral do lesado. Ainda assim, a banalização do dano moral às ocorrências de dano existencial parece ser um substituto que já se faz desgastado, merecendo um maior debate sobre a categoria e a reparação dos danos extrapatrimoniais no Brasil.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito e Ciência Jurídica na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas e pós-graduando em Direito Intelectual, ambas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), especializado em Derechos de Daños pela Universidad de Salamanca (USAL),

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