Opinião

O direito ao esquecimento e o papel dialógico da corte

Autor

  • Paulo Brasil Menezes

    é juiz de Direito no Estado do Maranhão mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) e pesquisador visitante no Centro de Investigación de Derecho Constitucional Peter Häberle da Universidade de Granada na Espanha.

11 de fevereiro de 2021, 18h19

O direito ao esquecimento é mais um dos grandes paradoxos que existem nos tempos atuais, daqueles que não possuem legislação própria nem convergência argumentativa para uma resposta constitucional homogênea.

Nem sempre na área jurídica o julgador possui um fundamento legal para sua decisão. Na verdade, em tempos de inelidível globalização, os problemas complexos surgem muito mais velozes do que as possíveis soluções emanadas das regulações abstratas formuladas pelas autoridades legislativas.

A modernidade impõe uma instabilidade funcional. Primeiro, os paradoxos costumam despontar na agenda da Corte Constitucional para depois iniciarem os debates das suas resoluções. A ordem do século 21 tem sido essa. A sua inversão seria, então, uma utopia (ou distopia?)?. A conclusão dessa proposição implica entender que a regulação estatal não consegue caminhar com o desenvolvimento global. Às vezes, sequer consegue dar o pontapé inicial desta corrida já previamente desigual.

Quem sofre com isso? Os direitos fundamentais de todos nós, que cada vez mais se tornam vulneráveis às intempéries dos grandes blocos econômicos, que, por sua vez, disputam espaços estratégicos de opinião e decisão na sociedade atomizada da contemporaneidade. As grandes empresas do Vale do Silício encabeçam essa lista, principalmente quando o cerne da discussão envolve o ecossistema do discurso online, o nosso atual habitat.

Pois bem. De maneira objetiva, as reflexões sugeridas nesta oportunidade não almejam retratar o significado do direito ao esquecimento em si, muito menos discorrer sobre os discursos possíveis para corroborarem uma ou outra corrente doutrinária. Busca-se, portanto, contribuir com a arena jurídica, explicando de que forma o direito ao olvido pode ser debatido na realidade constitucional brasileira por nossa respeitável Corte Constitucional.

Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal, não obstante ser também órgão de revisão judicial, atua como legítima Corte Constitucional. Quando a proteção dos direitos fundamentais atinge a pauta prioritária, porquanto tais direitos são imprescindíveis para nossa higidez existencial, o Supremo resguarda a nossa ordem constitucional. Eis, nesse particular, o grande papel do Tribunal Constitucional para tais problematizações.

Analisar o direito ao esquecimento, que se relaciona com vários outros direitos fundamentais, principalmente quando o ciberespaço exerce influência descomunal para indexar fatos que antes estavam adormecidos pelo contexto da época, é matéria de grande complexidade. Enquanto a regulação e definição do direito ao esquecimento são de competência do Legislativo, a proteção dos direitos fundamentais a ele relacionados se insere no papel da Corte Constitucional.

Por ser um conflito complexo, oriundo dos novos paradigmas da modernidade, perfaz-se um embate, por vezes, no campo principiológico. Entre esquecer e lembrar, o que mais importa para o Direito? O que teria maior relevância, as liberdades de expressão e informação ou a esfera íntima e pessoal de um indivíduo? E quanto aos dados pessoais e às indexações de conteúdos? Analisar tais circunstâncias, principalmente quando a aplicabilidade jurídica permeia sociedades heterogêneas constituídas em diferentes níveis de organização, torna-se um repto contundente.

Importante notar que a inexistência genérica do direito ao esquecimento não traz automaticamente a convicção de que as liberdades de expressão e informação são direitos nitidamente específicos e, desse modo, aplicáveis ao caso de maneira menos dificultosa. Há quem diga — e com muita propriedade — que tais liberdades também se configuram como direitos genéricos, haja vista o mimetismo constitucional evidente nas democracias ocidentais.

É bem verdade que as diversas dimensões com que as liberdades de expressão e informação são apresentadas para a sociedade pluralista também ampliam a possibilidade de explicar que a sua generalidade não é um fator em si extremamente problemático, mas condutor de perspectivas jurídicas, de construção de novas formas resolutivas.

Nesse contexto, David Law e Mila Versteeg afirmam que 97% das Constituições mundiais, a partir do ano de 2006, possuem a previsão normativa desses direitos, os quais têm crescido em popularidade e em praticidade [1]. Com as redes de sociabilidade digitais e com as timelines das plataformas virtuais, a onipresença jurídica dessas liberdades encontra afinidade com a ubiquidade do ciberespaço, aumentando, assim, a possibilidade de crescimento da referida estatística [2].

Nesse sentido, as demandas judiciais por todo o globo se espalham vertiginosamente e a relação entre as liberdades de expressão e informação com o direito ao esquecimento despontam como grandes casos jurídicos.

Além do seu marco mais conhecido, oriundo do Tribunal de Justiça da União Europeia, Corte Supranacional, no "caso Google Spain", que reconheceu que as informações consideradas não relevantes ou fora de contexto seriam passíveis de supressão, por mais que emanem discursos contrários sobre a natureza em si do direito ao esquecimento, vários países colecionam julgados oriundos de suas Cortes Constitucionais, como Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Reino Unido, Turquia, Índia, Israel, Japão, Estados Unidos e Colômbia [3].

No Brasil, temos o RE nº 1.010.606/RJ no Supremo Tribunal Federal, que iniciou o julgamento neste início de 2021, debatendo a existência ou não do direito ao esquecimento na esfera cível. O STF, mais uma vez, está com a oportunidade de apreciar problemas atinentes a liberdades individuais, sem perder a generalidade como característica.

Reside aqui a matéria de fundo deste ensaio: reduzir a carga semântica dos princípios em apreciação, restringir a generalidade ínsita a tais liberdades individuais, de modo a garantir a autonomia do Direito, e conceder a resposta constitucional contextualizada, ainda que não exista legislação específica sobre a temática. Mas como? A evidência está no diálogo judicial.

A construção dialógica para tal paradoxo pode ser encontrada com a análise da jurisprudência internacional das cortes que já apreciaram tal situação. O papel da Corte Constitucional, em matéria de direito ao desaparecimento, perpassa por proteger direitos fundamentais a ele relacionados. E, nessa árdua tarefa jurisdicional, o diálogo judicial pode ser um instrumento relevante para sofisticar o debate no Plenário do Supremo, e talvez necessário para se analisar como outras ordens constitucionais apreciaram tal temática.

A prática de analisar a jurisprudência internacional, a qual pode ser utilizada para fundamentar uma perspectiva jurídica interna sobre o assunto, é salutar para responder as questões de fundo narradas acima. No entanto, a diferença de realidade entre as cortes exige um procedimento de compatibilização ou de contextualização entre sistemas jurídicos distintos, a fim de que decisões internacionais possam ser infirmadas como argumentações de potencial solucionador para o Direito Constitucional doméstico, que, aliás, relembrando Mark Tushnet, encontra-se inevitavelmente globalizado [4].

Nesse intercâmbio de debate é que as questões principiológicas atingem marcos balizadores, pontos de equilíbrio, zonas de limitações. O livre convencimento do intérprete, a propósito, não é tão livre assim, mas focado na sua realidade constitucional e comprimido pelo contexto da corte, pelas normas constitucionais, pela proteção de direitos fundamentais mais incisiva e eficaz, bem como pelos elementos do caso concreto. Eis, portanto, a necessidade de um procedimento para que a decisão internacional acople na decisão interna, sob pena de, em não fazendo, atingir efeito contrário [5].

Portanto, diante da ausência legislativa e tendo em vista as grandes implicações do direito ao esquecimento para as relações sociais e institucionais, o Supremo possui nas mãos um caso complexo no qual as perspectivas de outras Cortes Constitucionais podem ser analisadas para proteger a fundamentalidade dos direitos em discussão, para conceder consistência argumentativa à resposta jurídica e para evitar prováveis patologias constitucionais [6] eventualmente percebidas por outros contextos jurídicos. Afinal, o direito ao esquecimento não pode propiciar o esquecimento do Direito!

 


[1] LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. The Evolution and Ideology of Global Constitutionalism. California Law Review. v. 99, n. 5, october 2011, p. 1199-1200. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1643628. Acesso em: 22 out. 2019.

[2] MENEZES, Paulo Brasil. Fake News: modernidade, metodologia e regulação. Salvador: Juspodivm, 2020. p.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Secretaria de Documentação. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. Pesquisa de Jurisprudência Internacional. n. 4, jun. 2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaBoletim/anexo/Pesquisa4ADireitoaoesquecimento.pdf.

[4] TUSHNET, Mark. The Inevitable Globalization of Constitutional Law. Public Law & Legal Theory Working Paper Series. Harvard Law School. n. 9-6. 2008. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1317766. Acesso em: 8 mai. 2019. p. 22.

[5] MENEZES, Paulo Brasil. Diálogos Judiciais entre Cortes Constitucionais: a proteção dos direitos fundamentais no constitucionalismo global. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 212.

[6] CHOUDHRY, Sujit. The Lochner Era and Comparative Constitutionalism. International Journal of Constitutional Law. v. 2, n. 1, january 2004, p. 4. Disponível em: https://doi.org/10.1093/icon/2.1.1. Acesso em: 14 out. 2019.

Autores

  • é juiz de Direito no Estado do Maranhão, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) e pesquisador visitante no Centro de Investigación de Derecho Constitucional Peter Häberle, da Universidade de Granada, na Espanha.

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