Opinião

Short squeeze e o aumento artificial de preços: aspectos penais

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11 de fevereiro de 2021, 16h18

Os recentes acontecimentos na bolsa americana demonstraram a força da união coordenada de pessoas físicas em contraposição a fundos bilionários de ações; o chamado de "efeito Reddit", em alusão a plataforma de internet Reddit.

De forma bastante singela, pode-se explicar o acontecimento da seguinte forma: investidores alugam ações de terceiros. Esses terceiros ganharão uma taxa pelo aluguel. Essa operação tem prazo determinado, sendo que na data fixada o investidor deverá devolver a ação ao terceiro, dono original, independente da cotação. Assim, se o investidor vender a ação, acreditando que o preço dela irá cair, poderá recomprá-la ao fim do contrato por um preço menor, lucrando. Importante salientar que este tipo de operação é pública, sendo de conhecimento de todos do mercado.

Observa-se que nos Estados Unidos a atuação em massa de pessoas físicas gerou relevante alta do preço da ação e culminou com notícias de prejuízo para investidores institucionais, chegando a se aventar a quase liquidação total de um deles. Afinal, o short squeeze concretizado gerou o chamado "efeito bola de neve", com desarme em sequência das posições de venda impulsionando cada vez mais o preço da ação para cima. Com o mercado desestabilizado, o investidor tem prejuízo e aquela pessoa física que participou da onda avassaladora, se entrou por último, perde também após o preço da ação simplesmente voltar a sua realidade/valor.

A conduta em massa é um desafio para as autoridades, inclusive reguladoras, que tem o papel primordial de proteger investidores e manter o mercado de ações justo, ordenado e eficiente.

Inicialmente, deve-se ter por premissa que o short squeeze é da natureza do mercado e, por si só, não se reveste de ilegalidade. Trata-se de um risco inerente a uma posição vendida e que deve ser incorporado pelo investidor na montagem de sua posição. O que se questiona são os aspectos penais da atuação deliberada de ordem de compra em massa com o propósito de gerar variação artificial de preço que, por sua vez, vai provocar o squeeze e prejuízos a terceiros. Isto é, a tipicidade penal da atuação deliberada para concretizar o risco; risco não proveniente de um movimento orgânico do mercado, mas sim intencionalmente causado.

No Brasil, a CVM já disse que a manobra é irregular e relembrou os termos da Instrução CVM nº 8/79, que dispõe que manipulação de preços no mercado de valores mobiliários consiste na utilização de qualquer "processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo, terceiros à sua compra e venda".

Fato é que o mercado é feito de divergências. Sem isso, não haveria mercado. Portanto, atuar conforme livre consciência e decidir se irá comprar ou vender ações é um direito. A pessoa pode comprar uma ação de forma fundamentada ou mesmo mediante aposta/aleatória. Todavia, atuar visando à mudança de preço principalmente para prejudicar terceiro e obter lucro decorrente é algo totalmente diferente. Isso pode configurar abuso de direito e ensejar inclusive responsabilidade civil.

Na seara criminal entra no debate o artigo 27-C da Lei nº 6.385/76, com a redação dada pela Lei nº 13.506/2017. O bem jurídico tutelado é o regular funcionamento do mercado de valores mobiliários e, em especial, o processo de formação de preços [1]. A competência para processar e julgar o crime em análise é federal, diante do evidente interesse da União, pois "é inequívoco que o mercado de capitais constitui parte integrante do sistema financeiro nacional, visto que suas ações se dão essencialmente no mercado de investimentos, cuja credibilidade, equilíbrio e higidez, por ser pilar de fundamental impacto na ordem econômica do País, atrai o interesse da União" [2]Nesse sentido, também já decidiu o Superior Tribunal de Justiça [3].

Observa-se o cabimento, em tese e preenchidos os demais requisitos legais, da suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei nº 9.099/95) e do acordo de não persecução penal (artigo 28-A do Código de Processo Penal).

Para a responsabilização penal deve ainda estar presente potencialidade de ofensa ao bem jurídico tutelado. No caso, gera reflexões a diferença existente entre a regulação do mercado de capitais americano e o brasileiro; pois, ao contrário das bolsas americanas, a B3 (Brasil, Bolsa, Balcão) limita o aluguel a 20% dos papéis em circulação da empresa (free float) e 5% por investidor, havendo constante controle em caso de eventual desenquadramento. Porém, deve-se observar que o controle geral exercido, ainda que mais acentuado no cenário brasileiro, não é apto por si só a afastar a potencialidade lesiva, sendo necessária análise técnica e concreta sobre o ato praticado.

Não bastasse, o delito de manipulação do mercado de capitais tem natureza formal, "não exigindo, para sua consumação, resultado naturalístico. A consumação dá-se com a realização das operações simuladas ou a execução de outras manobras fraudulentas, independentemente do efetivo alcance da finalidade de alteração do funcionamento do mercado de capitais, ou, ainda, da obtenção de vantagem ou lucro ou da causação de prejuízo a outrem" [4]. Assim, dentro do contexto ora analisado (existência de aluguel de ações), mesmo que o movimento em massa não gere o resultado pretendido, o crime já está consumado.

O tipo penal prevê como conduta realizar "operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas". Tendo por hipótese a compra em massa de ações, não se verificam a priori operações simuladas, na medida em que a compra foi efetivada. Por sua vez, haverá crime se praticada qualquer "manobra fraudulenta", assim entendida como conduta que busque induzir ou manter terceiros em erro. Revela-se, assim, a opção do legislador, que poderia ter simplesmente previsto "manobra", abarcando toda e qualquer forma de manipulação do mercado, mas exigiu também a simulação ou fraude. Nota-se, inclusive, que a própria Instrução Normativa nº 08/1979 da CVM diferencia: 1) condições artificiais de demanda; 2) manipulação de preços no mercado; 3) operação fraudulenta no mercado; e 4) prática não equitativa no mercado.

Além disso, o tipo penal também exige o duplo dolo específico, de modo que, somente haverá crime quando o fato por praticado com as finalidades de: 1) alterar artificialmente o regular funcionamento do mercado dos valores mobiliários; e 2) com o fim de obter vantagem indevida, ou lucro, para si ou para outrem; ou 3) causar dano a terceiros [5]. Questão concreta que demanda provas específicas.

O tipo penal analisado, portanto, é complexo e exige diversos requisitos para tipificação. Porém, deve-se ressaltar que essa situação não rechaça por completo hipótese de responsabilização criminal, havendo a possibilidade de tipificação penal de tipos comuns, como por exemplo o estelionato (artigo 171 do Código Penal), caso presentes obviamente os elementos típicos.

Ante todo o exposto, verifica-se que a conduta em massa encontra desafios normativos para tipificação penal no artigo 27-C da Lei nº 6.385/76, devendo haver demonstração concreta de simulação ou fraude, bem como do duplo dolo específico. Há, outrossim, desafios de individualização da conduta e processamento diante do elevado número de pessoas envolvidas, bem como de ordem probatória, na medida em que a manipulação de mercado não é tema de fácil constatação e prova.

 


[1] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes Federais – 10.ed.rev.,atual.e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2015.

[2] TRF4 Apelação Criminal Nº 5067096-18.2012.4.04.7100/RS. RELATORA: Desembargadora Federal CLAUDIA CRISTINA CRISTOFANI. 7ª Turma. DJ 17/12/2019.

[3] RHC 82.799/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 06/12/2018.

[4] TRF 3. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0006193-78.2009.4.03.6181/SP. RELATOR Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW. 5a Turma. Dj 6.2.2017.e-DJF3 Judicial 1 DATA:10/02/2017.

[5] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes Federais – 10.ed.rev.,atual.e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2015.

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