Opinião

O looping da diretoria substituta da Ancine e a teoria da Katchanga

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11 de fevereiro de 2021, 20h39

Certa vez o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Galloti [1] fez uma importante advertência acerca da interpretação jurídica proferida pelos operadores do Direito, a qual foi devidamente citada pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso na obra "Interpretação e Aplicação da Constituição", confira-se:

"De todas, a interpretação literal é a pior. Foi por ela que Cléia, na Chartreuse de Parme, de Stendhal, havendo feito um voto a Nossa Senhora de que não mais veria seu amante Fabrício, passou a recebê-lo na mais absoluta escuridão, supondo que assim estaria cumprindo o compromisso".

Pois bem, no artigo publicado na revista eletrônica ConJur em 8 de dezembro de 2020 denominado "A Diretoria da Ancine e a Nova Roupa do Rei", foi demonstrado que além de o diretor presidente-substituto estar com mandato vencido, os demais diretores substitutos encontravam-se em situação irregular, o que passo a explanar a seguir.

Conforme o disposto no artigo 42 da Lei nº 13.848/2019, que altera o artigo 10 da Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, durante o período de vacância que anteceder a nomeação de novo titular da diretoria colegiada exercerá o cargo vago um integrante da lista de substituição. Sendo certo que a lista de substituição será formada por três servidores da agência, ocupantes dos cargos de superintendente, gerente-geral ou equivalente hierárquico, escolhidos e designados pelo presidente da república entre os indicados pelo conselho diretor ou pela diretoria colegiada, observada a ordem de precedência constante do ato de designação para o exercício da substituição.

Ademais, tal como previsto no artigo 10 da lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, especialmente o parágrafo 7º, o mesmo substituto não exercerá interinamente o cargo por mais de 180 dias contínuos, devendo ser convocado outro substituto, na ordem da lista, caso a vacância ou o impedimento do membro do conselho diretor ou da diretoria colegiada se estenda além desse prazo.

Mas o que está acontecendo na Ancine?

No início do ano de 2020, foram nomeados os três diretores substitutos em razão da vacância de três cargos de diretor da agência. Porém, na véspera do vencimento do prazo legal de 180 dias e diante manutenção do estado de inércia consubstanciado na ausência de indicação pelo presidente da República de pessoas aptas a ocupar a cadeira de diretor da Ancine, a agência reguladora deveria ter enviado ao presidente nova lista tríplice para cada um dos cargos vagos, de modo que fosse permitido ao presidente escolher novos nomes dos diretores substitutos entre os servidores que ocupam postos. Viabilizando, assim, a ciência do Executivo acerca de seu estado de inércia para a nomeação definitiva das cadeiras de direção da agência reguladora.

Mas não foi isso o que ocorreu!

Em 2 de agosto de 2020, por intermédio das Portarias 407-E, 408-E e 409-E, o presidente-substituto da agência, com mandato de substituição vencido desde 31 de agosto de 2020, reconduziu os mesmos diretores que já estavam na diretoria colegiada ocupando o cargo em substituição anteriormente. Ou seja, as mesmas pessoas que estavam exercendo as funções havia mais de 180 dias.

E o que está acontecendo de novo?

Agora, novamente, com base nessa mesmíssima estratégia, em 5 de fevereiro de 2021, por intermédio das Portarias 14-E e 15-E de 1º de fevereiro de 2021, o diretor-presidente substituto reconduziu dois dos diretores substitutos que lá estavam realizando a "dança das cadeiras". Só não reconduziu o terceiro porque pediu exoneração do cargo que ocupava, o que obrigou a diretoria colegiada a submeter uma lista tríplice para esse cargo vago. Sendo certo que entendemos que o correto era submeter uma lista tríplice para cada um dos três cargos vagos.

O que leva a conclusão de que os mesmos diretores substitutos os quais estão sendo reconduzidos pela segunda vez à diretoria colegiada já estão quase a ponto de pedir música no Fantástico!

Mas como isso foi feito se a lei determina o prazo máximo de 180 dias contínuos?

Ora, no caso concreto, como uma forma de se ater ao sentido extremamente literal da lei e não observar à mens legis, foi criada uma espécie de dança das cadeiras na qual cada um dos servidores substitutos passava para a vaga de outro. Então, A passa a ocupar a vaga de B, B ocupa a de C e C ocupa a de A. Havendo, portanto, um verdadeiro "drible" ao prazo legal de 180 dias.

Aí cabe outra pergunta: mas será que era esse o real interesse do legislador ao redigir o texto normativo? Será que essa é a melhor interpretação jurídica na construção hermenêutica diante da hipótese concreta?

Segundo Luís Roberto Barroso, os métodos de interpretação serão legítimos quando utilizados pelo intérprete para buscar o correto alcance da norma. Porém, o texto da norma será sempre um limite insuperável. Ausculte-se:

"(…) Os conceitos e possibilidades semânticas do texto figuram como ponto de partida e como limite máximo da interpretação. O intérprete não pode ignorar ou torcer o sentido das palavras, sob pena de sobrepor a retórica à legitimidade democrática, à lógica e à segurança jurídica. A cor cinza compreende uma variedade de tonalidades entre o preto e o branco, mas não é vermelha nem amarela" [2].

O professor Lenio Luiz Streck escreve sobre o tema de uma forma bastante interessante, que pode ser lida na íntegra e devidamente explanada no artigo publicado na ConJur intitulado "A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil", citando a estória contada por Luis Alberto Warat para metaforizar a dogmática jurídica. Veja-se:

A estória da Katchanga foi inventada pelo saudoso Luis Alberto Warat. Ele a chamava de "O Jogo da Katchanga…" (ele não falava português; retrabalhou os "escravos de Jô", que jogavam "caxangá"… no seu portunhol, virou katchangá e, depois, simplesmente katchanga). Discuti muito em sala de aula e contei várias vezes a estorinha em conferências. Warat contou a estória para metaforizar (e criticar acidamente) a dogmática jurídica. Afinal, dizia, "a dogmática jurídica é um jogo de cartas marcadas". E quando alguém consegue entender "as regras", ela mesma, a própria dogmática, tem sempre um modo de superar os paradoxos e decidir a "coisa" ao seu modo [3].

Ainda segundo Lenio Streck, a convocação da Katchanga Real é uma forma de estabelecer a vontade do poder. A personagem Humpty Dumpty, da obra "Alice Através do Espelho" ao discutir sobre o papel do "desaniversário", pelo qual haveria 364 dias destinados ao recebimento de presentes em geral e somente um de aniversário, diz para Alice: "É a glória para você". Ela responde: "Não sei o que quer dizer com glória". Ao passo que ele, desdenhosamente, diz: "Claro que não sabe…até que eu lhe diga. Quero dizer 'é um belo e demolidor argumento para você'". Mas, diz Alice, "glória não significa 'um belo e demolidor argumento'". E Humpty Dumpty retruca: "Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos". Confira-se bem essa frase final do personagem: "A palavra 'glória' significa o que ele quer que signifique" [4].

Dito isso, para finalizar, cabe compilar o último mandamento (depois da alteração dos porcos) escrito na parede da Granja do Solar em grandes letras brancas que se encontrava transcrita na obra de George Orwell "A Revolução dos Bichos":

"Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros".

 


[1] Aput BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. p. 127.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit. p. 291.

[3] STRECK. Lenio Luiz. A Katchanga e o Bullying interpretativo no Brasil. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-bullying-interpretativo-brasil>. Acesso em: 07 de fevereiro de 2021.

[4] Idem. Ibidem.

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