Opinião

Lavagem de dinheiro e condutas neutras

Autor

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

11 de fevereiro de 2021, 13h40

O problema atual de imputação nos delitos de lavagem de dinheiro relaciona-se às pessoas que desenvolvem trabalhos que, em tese, favorecem a atividade do lavador, mas que se distanciam dela em face da atividade exercida. Essas atividades normalmente são denominadas pela doutrina de quotidianas, condutas standard ou atos neutros, isto é, que são desenvolvidos dentro do marco normal da vida do sujeito e por isso não estão vinculados à atividade-fim (ato criminoso).

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Ocorre que, mesmo dentro desse marco de normalidade, há uma forte tendência de alguns setores da doutrina em criminalizar essas condutas que de alguma forma estariam vinculadas à conduta do branqueador de capitais, ainda que sem qualquer vínculo subjetivo ou de cooperação criminal propriamente dita.

Há pouca doutrina no Brasil sobre o tema, e a jurisprudência pátria não compreendeu ainda o significado das atividades neutras ou quotidianas. O que se verifica é a aceitação de denúncias nos processos criminais de pessoas que desenvolvem sua atividade profissional sem qualquer vínculo com a atividade criminal do lavador de capitais. Isso pode ser visto claramente em relação à atividade do advogado defensor em matéria penal, pois, ainda que receba honorários de procedência desconhecida, não é seu papel controlar a origem dos valores recebidos. Quando atua única e exclusivamente na defesa de seu cliente, desenvolve uma atividade neutra, dentro do seu rol profissional de advogado.

É certo que tampouco há um acordo doutrinário sobre o tema, pois não há conclusões sedimentadas da localização dessas atividades dentro da teoria do delito, isto é, não se desenvolveu de maneira sistemática a localização e a compreensão da exclusão desses atos realizados por profissionais que podem de alguma maneira "favorecer" o delito de lavagem de dinheiro.

As teses até agora desenvolvidas encontram-se dentro da tipicidade (adequação social) em uma visão clássica ou dentro da teoria da imputação objetiva (risco permitido ou proibição de regresso). Também já nos manifestamos que há uma restrição própria dentro dos conceitos dogmáticos do concurso de pessoas [1]. Todas essas teses podem ser utilizadas sem maiores dificuldades para a exclusão de favorecimentos de atividades que, em tese, desembocam na suposta participação no delito de lavagem de capitais.

Embora doutrinariamente isso pareça de fácil compreensão, o que se tem verificado é uma posição contrária, ou seja, a admissão de acusações de pessoas que de alguma forma se vincularam com lavador de dinheiro, porém, dentro de suas atividades quotidianas de trabalho (atos neutros ou condutas standard). O mero conhecimento ou prestação de atividade laboral para o lavador de dinheiro tem servido como sustentação jurídica para a imputação criminal a título de participação daquele que realiza uma atividade neutra, contrariamente as posições encontradas na doutrina estrangeira.

De acordo com o exposto, não é qualquer "colaboração" de uma atividade profissional que "favoreça" a atividade de lavagem de dinheiro que pode ser justificada como típica. O dolo ou o mero conhecimento não são suficientes para determinar a relevância penal da conduta, mesmo quando os conhecimentos especiais do autor devam ser considerados para a determinação da tipicidade da concreta conduta analisada [2].

Como exemplo desses casos, há denúncias criminais postas perante o judiciário abarcando a atividade de corretores de imóveis, agentes de bolsa de valores, vendedores de automóveis e, em alguns casos (decisões na Alemanha e na Espanha), incluindo a atividade de advogados como possíveis envolvidos nas atividades de lavagem de dinheiro. As decisões desconsideram as atividades neutras (socialmente adequadas, ou condutas standard), ao menos em nossa jurisprudência, fato que não ocorre nas decisões do exterior que já reconheceram a impossibilidade de vinculação de determinadas atividades profissionais com o lavador de capitais.

De nosso ponto de vista, é dentro do marco da tipicidade objetiva que se resolve o problema das atividades neutras ou quotidianas com relação ao delito de lavagem de dinheiro. A questão da neutralidade das condutas e sua relevância penal devem ser resolvidas no primeiro nível da teoria da imputação objetiva, ou seja, na imputação do comportamento.

Utilizando-se corretamente desses critérios da teoria da imputação objetiva, limitam-se de forma correta determinados comportamentos que aparentam um caráter delitivo, porém, que se restringem às prestações quotidianas de atividades profissionais e, por isso, não podem ser vistas como atos de favorecimento ao delito de lavagem de dinheiro.

Não se pode alargar a tipicidade prevista na Lei de Lavagem e o mero conhecimento não justifica a tipicidade de atividades neutras. A devida compreensão desses institutos facilita o recorte da participação criminal e a justa adequação das condutas ao caso concreto. Observados esses critérios de delimitação da tipicidade, haverá um filtro na imputação de supostos participantes no delito de lavagem de dinheiro, corrigindo-se, assim, o alargamento da participação criminal que alguns setores pretendem dar sem qualquer suporte teórico de acordo com a melhor doutrina.

 


[1] CALLEGARI, André Luís. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Manole, 2004, pp. 118 e ss.

[2] Idem, p. 173.

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    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor nos cursos de mestrado e doutorado do IDP/Brasília, e sócio do escritório Callegari Advocacia Criminal.

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