Opinião

Cobrança de IPVA para pessoas deficientes em SP: irregularidades e consequências

Autores

  • é advogado doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com pesquisa pós-doutoral pela Universidad Complutense de Madrid na Espanha professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) pesquisador do Grupo de Pesquisa Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (CNPq/UnB) e membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

    Ver todos os posts
  • é advogado do escritório Gomes Altimari Advogados professor da Universidade de Marília (Unimar) mestre em Direito Tributário e em Educação e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP.

    Ver todos os posts

10 de fevereiro de 2021, 18h13

Todas as pessoas deficientes contempladas com isenção do IPVA ficaram preocupadas com as notícias veiculadas pela mídia de que o governo do Estado de São Paulo acabaria com referido benefício. Ainda não se sabia como, mas imaginava-se que se seguiriam as regras fixadas pelo Código Tributário Nacional para revogações de isenção; que se seguiriam os procedimentos legais no âmbito administrativo e que se respeitariam os direitos constitucionalmente assegurados dos contribuintes.

De repente, a preocupação virou pesadelo, com a certeza de que as isenções estavam revogadas. Do pesadelo à raiva e à indignação foi um pulo, porque se teve a certeza de que o governo passou por cima de tudo e de todos, sem respeitar direitos dos afetados nem quaisquer normas que fossem.

Esse assunto é extenso e comporta vários ângulos de análise. A ação civil pública ajuizada pelo 6º promotor de Justiça de Direitos Humanos Área de Pessoas com Deficiência, Wilson Ricardo Coelho Tafner, em 13 de janeiro de 2021, por exemplo, seguiu na linha das violações constitucionais dos direitos das pessoas deficientes e outros princípios clássicos do Direito Constitucional. Outras manifestações destacam violações aos princípios tributários, sobretudo os da anterioridade e da anterioridade nonagesimal. Mas há também o enfoque do ponto de vista operacional, que é a nossa opção para as considerações que se seguem.

Dizemos ponto de vista operacional porque a isenção, como o CTN estabelece no inciso I do artigo 175, exclui o crédito tributário, o que significa que, sobre pessoas ou situações isentadas, não pode haver cobrança do tributo isentado. De plano, já fica demonstrada a improcedência da atitude do governo do Estado em cobrar o IPVA de pessoas deficientes para as quais já foi deferida a isenção em processo administrativo regular no qual elas mesmas já comprovaram atendimentos às condições e requisitos então fixados.

Contudo, o mesmo CTN abre a possibilidade de cobrança do tributo isentado desde que haja a revogação da isenção. Para entender a revogação da isenção, é necessário saber que, para a finalidade, o CTN separa as isenções em dois grupos: 1) as que são concedidas em caráter geral, que podem ser por prazo certo ou por prazo indeterminado; e 2) as que são concedidas em caráter individual, que são sempre subordinadas a condições, e que também podem ser por prazo certo ou indeterminado. As condições e requisitos são, basicamente, o que diferencia uma da outra.

As que são concedidas em caráter geral são as isenções incondicionadas, bastando para o seu vigor ou para a sua revogação a publicação da lei isentiva ou revogadora. É o caso, por exemplo, de produtos hortifrutigranjeiros, que estão isentos por natureza, independentemente de qualquer condição ou requisito. Aqui, a isenção vige a partir de quando a lei estabelece, mas a revogação não, porque o CTN estabelece que essa revogação pode ser a qualquer tempo desde que a isenção tenha sido concedida por prazo indeterminado. Logicamente, a isenção por prazo determinado tem data de validade.

Mesmo sendo indeterminado o prazo, o CTN manda observar o princípio da anterioridade previsto no inciso III do artigo 104 (artigo 178). Ou seja, a revogação da isenção dada em caráter geral nunca vige no mesmo exercício da publicação da lei revogadora ou modificadora. É justamente o que prevê o artigo 178: "A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do artigo 104".

As isenções que são concedidas em caráter individual são as condicionadas, cuja efetivação dá-se por despacho da autoridade administrativa, depois de requerida pelo interessado com a comprovação do atendimento das condições e requisitos. É o que determina o artigo 179 do CTN: "A isenção, quando não concedida em caráter geral, é efetivada, em cada caso, por despacho da autoridade administrativa, em requerimento com o qual o interessado faça prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos em lei ou contrato para sua concessão".

As isenções a que têm direito as pessoas deficientes são concedidas em caráter individual, pois se efetivam por despacho da autoridade administrativa depois de verificado o atendimento das condições e requisitos fixados em lei vigente na época do pedido. Para elas, a revogação deve obedecer ao comando do §2º do artigo 179 do CTN, que deve ser analisado juntamente com o artigo 155 do mesmo CTN ("§2º. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155"). "Artigo 155  A concessão da moratória em caráter individual não gera direito adquirido e será revogado de ofício, sempre que se apure que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições ou não cumprira ou deixou de cumprir os requisitos para a concessão do favor, cobrando-se o crédito acrescido de juros de mora".

É preciso saber contextualizar a questão do direito adquirido, pois ele não existirá, no caso de isenções concedidas, somente se, e depois de feitas as comprovações previstas pelo artigo 155 acima, ou seja, existe o direito adquirido, mas ele não impede a autoridade administrativa de encetar verificações tendentes a auditar as isenções concedidas, para depois, com base nas apurações, revogá-las. Parece-nos que seja essa a inteligência da Súmula 544 do STF: "Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas".

Assim nos parece porque o STF ratificou o entendimento no agravo regimental relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski no RE-582.926: "O acórdão recorrido encontra-se em consonância com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que a isenção tributária, quando concedida por prazo certo e mediante o atendimento de determinadas condições, gera direito adquirido ao contribuinte beneficiado. Incidência da Súmula 544 do STF (…)".

Essa revogação será com efeito retroativo à data da concessão no caso de se comprovar que o beneficiário não preenchia as condições para ter a isenção, e, com efeito, a partir da data em que o beneficiário deixou de cumprir as condições da isenção da qual usufruía.

Evidentemente que essa auditoria e as apurações devem ocorrer depois de instaurado o competente procedimento administrativo, conforme manda o artigo 7º da Lei Estadual nº 10.177/98 ao estabelecer que: "A Administração não iniciará qualquer atuação material relacionada com a esfera jurídica dos particulares sem a prévia expedição do ato administrativo que lhe sirva de fundamento, salvo na hipótese de expressa previsão legal".

Essa exigência da Lei 10.177/98 decorre do dever de obediência aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, presentes no inciso LV do artigo 5º, segundo o qual "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

A improcedência da cobrança do IPVA 2021 das pessoas deficientes começa por aqui, pois não se tem notícia de que a Secretaria da Fazenda paulista tenha revogado individualmente, pela via administrativa, garantindo a ampla defesa e o contraditório aos beneficiários da isenção. Logo, elas estão em pleno vigor.

A improcedência das cobranças, todavia, não decorre apenas disso, pois há também violações ao Código de Defesa do Contribuinte Paulista, a Lei Complementar Estadual nº 939/2003, cujo artigo 2º traz expressos os seus objetivos, dos quais se destacam, para o caso presente os seguintes: proteger o contribuinte contra o exercício abusivo do poder de fiscalizar, de lançar e de cobrar tributo instituído em lei; assegurar a ampla defesa dos direitos do contribuinte no âmbito do processo administrativo-fiscal em que tiver legítimo interesse; prevenir e reparar os danos decorrentes de abuso de poder por parte do Estado na fiscalização, no lançamento e na cobrança de tributos de sua competência; e assegurar o regular exercício da fiscalização.

A maior irregularidade em relação ao Código do Contribuinte foi o desrespeito ao artigo 9º, que prevê a prévia emissão de ordem de fiscalização para a execução de trabalho fiscal. Não se tem dúvida de que houve lançamento do IPVA, e lançamento é função privativa do Fisco, não se podendo admitir que haja lançamento de tributo por lei, de modo que era fundamental que tivesse havido, antes a emissão, uma ordem de fiscalização em nome de cada contribuinte que teve contra si lançado o IPVA 2021.

É a lei que determina no seu artigo 9º: "A execução de trabalhos de fiscalização será precedida de emissão de ordem de fiscalização, notificação ou outro ato administrativo autorizando a execução de quaisquer procedimentos fiscais, exceto nos casos de extrema urgência, tais como flagrante infracional, continuidade de ação fiscal iniciada em outro contribuinte ou apuração de denúncia, nos quais adotar-se-ão de imediato as providências visando a garantia da ação fiscal, devendo nesses casos a ordem de fiscalização, notificação ou outro administrativo ser emitido no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas".

As irregularidades não acabam aí. A maior delas está exatamente na falta de autorização legal que permita as providências em relação às isenções concedidas para pessoas deficientes autorizadas a dirigir o veículo.

A Lei 13.296/2008, reguladora do IPVA em São Paulo, traz, nos artigos 13 e 13-A, o primeiro alterado e o segundo inserido pela Lei 17.293/2020, as previsões das isenções para pessoas deficientes. Basta uma leitura simples para saber que cada um deles trata de uma espécie de isenção distinta. Assim, pelo artigo 13, a lei regula a isenção para as pessoas deficientes autorizadas a dirigir o veículo, enquanto pelo artigo 13-A, a lei trata da isenção para pessoa não autorizada a dirigir o veículo.

O entendimento dessa separação é importante porque se verá que muitas das inovações, principalmente a da obrigação de recadastramento e da vistoria anual do veículo, oneram apenas a isenção concedida para pessoas deficientes não autorizadas a dirigir o veículo.

Isso significa que a exigência de recadastramento para as pessoas deficientes autorizadas a dirigir o veículo é totalmente descabida e ilegal. Esse recadastramento e a vistoria, aliás, não estão sequer previstos pelo Decreto 65.337/2020, que alterou o decreto regulamentar do IPVA.

Logo, também é ilegal a cobrança do IPVA 2021 dessas pessoas sob a alegação de que deveriam elas pedir o recadastramento.

Por fim, o Decreto 65.337/2020 alterou o Decreto 59.953/2013, o regulamento da lei do IPVA. A nova redação dada ao arrigo 4º não traz a previsão do recadastramento nem da vistoria. Logo, afiguram-se matérias não reguladas e, portanto, sem eficácia plena. Mas esse decreto viola o artigo 99 do CTN, pois cria obrigação não prevista na lei, que é a obrigação de marcar o carro do deficiente com um adesivo anunciador de que o proprietário é uma pessoa deficiente. A lei não prevê esse adesivo. Aliás, previa, mas houve veto do próprio governador à época, provavelmente porque a lei só o previa para o deficiente não autorizado a dirigir, ao passo que o executivo estadual queria a identificação para todos os veículos.

Além de tudo, a cobrança do IPVA 2021 viola o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, ambos previstos pelo inciso XXXVI do artigo 5º da CF/88.

Com todas estas irregularidades, não fica difícil entender e admitir a improcedência das cobranças do IPVA 2021 das pessoas deficientes, pois as isenções das quais são beneficiárias impedem que contra elas se constitua crédito tributário de mesma natureza.

Outras consequências devem existir, mas essas aqui arroladas já são suficientes para demonstras as improcedências das cobranças.

Autores

  • é advogado no escritório Marcelo Leal Advogados, professor da Faculdade de Direito da UnB, doutor em Direito pela UFPR, com pesquisa pós-doutoral pela Universidad Complutense del Madrid, e compôs a comissão de juristas responsável pela elaboração e acompanhamento do anteprojeto do novo CPC no Senado.

  • é advogado do escritório Gomes Altimari Advogados, professor da Universidade de Marília (Unimar), mestre em Direito Tributário e em Educação e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!