Opinião

Direito ao esquecimento no STF: a dignidade da pessoa humana em risco

Autores

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • João Alexandre Silva Alves Guimarães

    é doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra Portugal mestre em Direito da União Europeia pela Universidade do Minho Portugal associado do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e membro do Comitê Executivo do Laboratório de Direitos Humanos (LabDH) da Universidade Federal de Uberlândia.

10 de fevereiro de 2021, 16h05

A internet tornou-se uma rede complexa de dados, cada vez mais utilizada e alimentada com um excessivo número de informações, de todos os tipos de conteúdo e, principalmente, os de cunho pessoal, o que possibilita a criação de um cenário em que nada é esquecido.

Viktor Mayer-Schönberger afirma que enquanto estamos constantemente esquecendo e reconstruindo elementos do nosso passado, a generalidade dos internautas continua a acessar a lembrança digital e os fatos que não foram modificados e reconstruídos. Logo, como o passado que lembramos vai mudando e evoluindo, o passado capturado na memória digital é constante e permanece congelado no tempo. É possível que essas duas visões se colidam, ou seja, a memória congelada que os outros têm sobre nós e a memória emergente em evolução que carregamos em nossas mentes. Nenhuma delas é uma representação precisa e completa do que somos e nos tornamos. A primeira visão está presa no tempo, enquanto a segunda visão, a interpretação do passado da nossa mente, é influenciada por quem somos no presente [1].

A consagração de um conjunto de pretensões jurídico-políticas denominado direito de proteção de dados surge em um contexto internacional de crescente percepção da informação relativa aos indivíduos, no âmbito da utilização da informação relativa aos indivíduos, e da utilização de meios informáticos para o desenvolvimento humano nas sociedades democráticas [2].

O voto do ministro Dias Tóffoli no julgamento do Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ, lavrado no último dia 4, após estabelecer um preciso e técnico histórico da matéria, juntamente com as controvérsias que a cercam, considerou, ao apreciar o "caso Aida Curi", a seguinte proposta de tema de repercussão geral: "Tema 786 É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível".

Tal decisão vai de encontro a uma outra decisão histórica do próprio Supremo Tribunal Federal, que considerou o direito à proteção de dados pessoais um direito fundamental autônomo, envolvendo a Medida Provisória 954/2020, que previa o compartilhamento obrigatório de dados de empresas de telefonia com o IBGE (Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.387, 6.388, 6389, 6.393 e 6.390).

O direito à proteção de dados apresenta-se essencialmente como um direito de garantias de um conjunto de valores fundamentais individuais de que se destacam a privacidade e a liberdade, em poucas palavras, a autodeterminação individual [3].

Baseou-se o voto do relator na prevalência apriorística das liberdades de expressão e de informação sobre a dignidade da pessoa humana, bem como na analogia com o precedente das biografias não autorizadas (ADIN 4.815), havendo ainda referência ao argumento econômico, no sentido da preservação das empresas que operam no setor, à liberdade de circulação de informações, bem como à ausência de norma específica no Direito brasileiro, ao contrário do que teria ocorrido no artigo 17 do RGPD europeu.

José Joaquim Gomes Canotilho, Jónatas E.M.Machado e Antônio Pereira Gaio Júnior assim definem as biografias não autorizadas: "A obra que, como o nome indica, abrange textos onde se pretende narrar, total ou parcialmente, com um grau razoável de sistematicidade e completude, a vida de uma pessoa, ou aspectos específicos da mesma, do ponto de vista espacial ou temporal. Diz-se não autorizada a biografia que não conta com a autorização expressa ou tácita do visado, prescindindo da sua colaboração e pretendendo subtrair-se aos pedidos ou ditames. De um modo geral, estas biografias incidem sobre figuras públicas, tendo por isso interesse público e suscitando o interesse do público. No entanto (…) não está excluída a possibilidade de versarem mesmo sobre figuras privadas" [4].

O direito ao esquecimento possui abrangência diversa, pois envolve fatos que, pelo decurso do tempo, perderam relevância histórica, de modo que sua divulgação se torna abusiva, por causar mais prejuízos aos particulares do que benefícios à sociedade. O direito ao esquecimento, é verdade, é um direito excepcional, não podendo ser banalizado, mas sua exclusão, em sede de repercussão geral, pode implicar um grave retrocesso em face do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CR) , consideradas ainda a privacidade e a identidade pessoal, que o compõem em sua estrutura. A exigência de norma específica, a depender da vontade legislativa, é um incentivo à inação, semelhantemente ao entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal, que no passado sepultou a garantia fundamental do mandado de injunção.

O direito ao esquecimento visa a apagar traços ou dados deixados pelo seu titular, não tendo o traço uniforme de uma escrita, como nas biografias não autorizadas; ademais, a prevalência apriorística da liberdade de expressão e de informação, ao ensejo de evitar eventual censura, iria de encontro a outros valores igualmente caros à Constituição da República, ligados ao livre desenvolvimento da pessoa humana.

Para Menezes Cordeiro, a natureza jurídica do direito ao esquecimento suscita dúvidas. Seguindo a letra do preceito, o direito ao esquecimento não consiste num direito a exigir, do público em geral, o apagamento de determinados dados pessoais, mas somente no direito a exigir ao responsável pelo tratamento que informe os demais responsáveis de que o titular dos dados lhes solicitou o apagamento das ligações para esses dados pessoais, bem como o apagamento de eventuais cópias ou reproduções [5].

O direito de ser esquecido permite que um indivíduo controle seus dados pessoais se não for mais necessário para seu propósito original, ou se, por algum outro motivo, desejar retirar o consentimento quanto ao seu processamento, entre outras razões [6].

Se o conteúdo da página original do site não for excluído ou editado, mas apenas desindexado dos resultados da pesquisa, haverá, por um lado, a manutenção do conteúdo original, embora com menos visibilidade, sacrificando em menor medida, as liberdades comunicativas e reconhecendo o valor histórico da informação, e, por outro lado, a criação de dificuldades para acessar as páginas indiscriminadamente, ou seja, páginas que não estão relacionadas com o contexto original de um conteúdo potencialmente prejudicial para o indivíduo a que se refere [7].

Para Alexandre Sousa Pinheiro, em anotação alude à publicitação dos dados pelo responsável, que, quando for obrigado ao respetivo apagamento, face exercício deste direito, terá de adotar as medidas que forem razoáveis para informar os responsáveis pelo tratamento efetivo dos dados pessoais de que o titular dos dados lhe solicitou o apagamento das ligações para esses dados pessoais, bem como das cópias, réplicas, ou reprodução dos mesmos. Esse preceito trata do direito a ser esquecido em linha, que se consubstancia na adoção de medidas técnicas, por parte do responsável pelo tratamento para, informar outros sites de que determinado titular requereu a pagamento de seus dados pessoais [8].

Mas a principal consequência do exercício do direito ao esquecimento, tendo em vista o princípio da precaução, deve ser a imposição de obrigações de fazer e não fazer, consagrando o "direito de não ser vítima de danos", tendo em vista, após a ponderação dos interesses envolvidos, a retirada do material ofensivo. O contrário contraria a principiologia de toda a responsabilidade civil contemporânea, de modo que a deturpação da projeção do ser humano sobre a esfera pública é frequentemente irremediável e a "marca" que lhe é atribuível publicamente não se apaga com o recebimento de qualquer soma em dinheiro. Segundo Anderson Schreiber, indenizações pecuniárias são ineficazes na reparação de um dano que se liga à própria identificação social de um indivíduo e que pode acompanhá-lo de modo permanente por toda a vida [9].

É verdade que o direito de esquecimento não se confunde com a remoção de dados, que pode ser apenas sua eventual consequência, no plano das obrigações de fazer, ao contrário do que defende parte da doutrina.

A recente decisão da Corte Infraconstitucional Alemã, Bundesgerichtshof (BGH), de 27 de julho de 2020, que colocou que o direito ao apagamento e, por conseguinte, o direito à desindexação não é absoluto. Para a corte, o artigo 17, parágrafo 1, do RGPD não se aplica como um todo se o processamento de dados for necessário para o exercício do direito à liberdade de expressão. Essa circunstância é a expressão de que o direito à proteção de dados pessoais não é um direito irrestrito. Como afirma o quarto considerando do RGPD, no que diz respeito à sua função social e mantendo o princípio da proporcionalidade contra outros direitos fundamentais, devem ser ponderados e, esta ponderação dos direitos fundamentais, é baseada em todas as circunstâncias relevantes do caso individual. Deve-se também, levar em consideração, a gravidade da interferência com os direitos fundamentais da pessoa em causa [10].

No contexto da avaliação, deve-se levar em consideração que a internet não seria utilizável por indivíduos sem a ajuda de um mecanismo de busca, devido à inundação de dados não mais gerenciáveis. Em última análise, a utilização da internet como um todo está dependente da existência e disponibilidade de motores de pesquisa, cujo modelo de negócio foi, portanto, aprovado pelo ordenamento jurídico e socialmente desejável. Isso pode levar ao fato de os usuários do mecanismo de pesquisa com a lista de resultados receberem uma visão geral estruturada das informações sobre a pessoa em questão na internet, com base na qual eles podem criar um perfil mais ou menos detalhado da pessoa [11].

Nesse contexto, o peso dos interesses econômicos do gerente do mecanismo de pesquisa por si só geralmente não é suficientemente pesado para limitar os direitos das pessoas afetadas. Em contrapartida, tem maior peso o interesse do público pela informação e, sobretudo, os direitos fundamentais de terceiros a aqui incluídos. Portanto, não há presunção de prioridade da proteção dos direitos pessoais, mas os direitos fundamentais opostos devem ser avaliados em pé de igualdade. Assim como os indivíduos não podem determinar unilateralmente, em relação aos meios de comunicação, quais informações são divulgadas sobre eles no contexto da comunicação pública, eles não têm esse poder de determinação em relação aos operadores de mecanismo de pesquisa [12].

Ou seja, o Bundesgerichtshof, mesmo que no processo tenha negado o direito à desindexação ao autor, colocando como princípio o interesse geral e a não possibilidade de desvincular os acontecimentos ao autor, a corte foi bem clara em colocar a existência do direito ao esquecimento como um direito fundamental e que deve ser julgado em cada caso particular, ao confronto de dois ou mais direitos fundamentais.

Muito se espera do Supremo Tribunal Federal, em virtude dos efeitos da repercussão geral, e, mais do que uma pretensa censura ou "direito dos juízes", o que está em questão é a efetividade das normas constitucionais relativas ao livre desenvolvimento da pessoa humana, à possibilidade de evoluir, de mudar, e mesmo de manter-se vivo, sobretudo em face de uma internet que não esquece. Desconstruir as bases sólidas de um edifício, na contramão do Direito europeu, terá graves consequências, em nada contribuindo para a democracia e para a promoção dos direitos fundamentais. Sem dignidade não pode haver liberdade.

 


[1] MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press; Edição: Revised ed.for Kindle, p. 6, 25 de julho de 2011.

[2] CALVÃO, Filipa Urbano. O Direito Fundamental à Proteção dos Dados Pessoais e a Privacidade 40 Anos Depois. Jornadas nos quarenta anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e Evolução, Manuel Afonso Vaz, Catarina Santos Botelho,Luís Heleno Terrinha, Pedro Coutinho (Coord.), Universidade Católica Editora, p. 87, 2017.

[3] CALVÃO, Filipa Urbano. Página 89.

[4] CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MACHADO, Jónatas E.M. ; GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Biografia não autorizada versus liberdade de expressão. 3.ed. Curitiba: Juruá, 2017. p.35-36.

[5] CORDEIRO, A. Barreto Menezes. Direito da Proteção de Dados: À Luz do RGPD e da Lei N.º 58/2019. Coimbra: Almedina, novembro de 2016. Página 275.

[6] SAFARI, Beata A. Intangible Privacy Rights: How Europe's GDPR Will Set a New Global Standard for Personal Data Protection. Seton Hall Law Review, Volume 47, 809-848, 2017. Página 835.

[7] SILVESTRE, Gilberto Fachetti; BORGES, Carolina Biazatti; BENEVIDES, Nauani Schades. The Procedural Protection of Data De-Indexing in Internet Search Engines: The Effectiveness in Brazil of the So-Called “Right To Be Forgotten” Against Media Companies. Revista Jurídica, [S.l.], v. 1, n. 54,  25 – 50, mar. 2019. Página 41.

[8] PINHEIRO, Alexandre Sousa (Coord.); COELHO, Cristina Pimenta; DUARTE, Tatiana; GONÇALVES, Carlos Jorge; GONÇALVES, Catarina Pina. Comentários ao Regulamento Geral de Proteção de Dados. Almedina, Coimbra, dezembro de 2018. Página 368.

[9] SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento, In SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flavio. Direito Civil, Diálogos entre a doutrina e a a jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2018 p.78

[10] Bundesgerichtshof. VI ZR 405/18, Verkündet am: 27. Juli 2020, OLG Frankfurt am Main.

[11] Bundesgerichtshof. VI ZR 405/18, Verkündet am: 27. Juli 2020, OLG Frankfurt am Main.

[12] Bundesgerichtshof. VI ZR 405/18, Verkündet am: 27. Juli 2020, OLG Frankfurt am Main.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – Rio de Janeiro, professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor permanente do Programa de Doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense, doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ, segundo Vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do IBERC.

  • Brave

    é doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal, mestre em Direito da União Europeia pela Universidade do Minho, Portugal, associado do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e membro do Comitê Executivo do Laboratório de Direitos Humanos (LabDH) da Universidade Federal de Uberlândia.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!