Opinião

Barbra Streisand e o direito de não ser importunado

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10 de fevereiro de 2021, 20h38

Na pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal neste início de 2021 está um importante caso de repercussão geral que trata de aplicar o que se convencionou chamar de direito ao esquecimento [1] na esfera civil.

Entretanto, este artigo não pretende analisar os profundos e polêmicos contornos jurídicos que envolvem o tema, nem tem a finalidade de estudar o processo na Suprema Corte à luz da literatura e da jurisprudência nacional e internacional. Ao contrário, a ideia é abordar um possível efeito colateral que pode resultar a partir das tentativas de proteger a privacidade e a intimidade, e analisar, consequentemente, se há ou não um direito de não ser incomodado.

Entre teóricos e curiosos das TICs (tecnologias de informação e comunicação), é bastante difundida uma situação da vida real, que carrega ares de anedota, na qual se envolveu a cantora e atriz Barbra Streisand no ano de 2003. Naquela época, a cantora, talvez sem intenção, lançou as bases para que a história da defesa da privacidade e do direito de não ser incomodado (the right to be let alone[2] fossem reescritas.

Tudo começou com uma ação movida por ela contra o fotógrafo Kenneth Adelman e um veículo de notícias dos EUA, em que foi invocada a defesa de sua intimidade e privacidade na tentativa de impedir que fotos da costa da Califórnia na qual aparecia sua casa, tiradas de um helicóptero com o objetivo de documentar a erosão das encostas, fossem divulgadas pela mídia. Antes desse episódio, pouquíssimas pessoas sabiam, ou se importavam, com o fato de que aquela era sua casa. Mas, na esteira do noticiado processo, centenas de milhares de pessoas passaram a buscar pelas tais fotos.

Diante do pujante sistema judicial dos Estados Unidos, Barbra Streisand pleiteou uma indenização milionária em caso de divulgação não autorizada das imagens e a obrigação de o site retirar as fotos acaso publicadas (notice and takedown).

E assim, tornando curta uma longa história, o resultado da demanda foi o seguinte: as fotos de sua residência de veraneio foram divulgadas, a indenização milionária foi considerada improcedente e a autora acabou condenada ao pagamento de milhares de dólares em custas legais, dentro das particularidades do Direito norte-americano.

A partir desse evento, pôde-se constatar que a consequência da ação judicial foi inesperada e, de certa forma, mais danosa: aumentou exponencialmente a disseminação das fotos na internet. Curioso paradoxo: postula-se o esquecimento, colhe-se a publicidade.

O fenômeno acabou sendo batizado por Mike Masnick, editor do blog TechDirt, de "efeito Streisand" (The Streisand effect[3], em referência à sucessão de acontecimentos aqui narrados. O próprio editor do site admitiu, dez anos depois, que tal terminologia acabou por se consolidar nos meios de comunicação, e já naquela época ele se perguntava, em tom de ironia: quanto tempo demoraria para que os advogados percebessem que o simples fato de tentar reprimir a circulação de alguma notícia que não agrada a seus clientes teria o efeito contrário [4]?

Daí a anedota que remete ao efeito colateral: a busca pelo direito legítimo de não ser incomodada levou a uma situação indesejada e inversamente proporcional à discrição desejada. Ao exercer um direito legítimo — o direito de proteger sua privacidade e de não ser perturbada em sua intimidade, ainda que se tratasse de uma pessoa com grande exposição pública —, a medida aumentou exponencialmente a disseminação da notícia que outrora se pretendia abafar.

Em vez de se retirar o foco da notícia ou do dado pessoal cuja intenção era manter reservado, oculto ou excluído, o efeito gerado foi justamente o de potencializar a sua publicização, o seu conhecimento e a sua divulgação por terceiros. Se o objetivo imediato foi o de suprimir a notícia, o resultado também imediato passou a ser a superexposição, dada a intensidade informacional das redes.

De modo que a tentativa de proteger o núcleo da intimidade revelou uma externalidade improvável e adversa, já que potencializou na internet — e, em seguida, até em veículos impressos — as fotos da residência.

O episódio ilustra que, em vez de retirar o foco da publicidade e de proteger a privacidade, o efeito foi contrário: jogou mais luzes sobre o litígio. O que antes poderia passar despercebido agora potencializou a esfera privada, que deveria estar protegida pela privacidade, e ajudou a tornar conhecido um fato antes limitado a um site de entretenimento. O conteúdo repercutiu e viralizou.

Afinal, de que forma esse acontecimento do início do século 21, envolvendo uma pessoa famosa, algumas fotografias e a sua divulgação em um site de notícias pode nos dizer sobre privacidade e liberdade de expressão nos dias de hoje?

Talvez a mais valiosa revelação seja a de que a multiplicidade de variáveis parece impedir uma definição antecipada sobre qual direito deve prevalecer em um provável embate entre a informação e a intimidade. O que seria o certo e o errado? Difícil definir de antemão.

Por ser tema muito complexo, é desejável que o confronto natural entre liberdade de informar versus privacidade não seja delimitado apenas por uma lei ou uma decisão judicial, ainda que da mais alta corte do país. A análise de cada caso concreto, de suas nuances e de todas as particularidades que os envolvem parecem impedir que seja formulada uma regra geral e abstrata. Logo, o debate é permanente, vivo e aberto.

O ponto é que grande parte dos ordenamentos jurídicos democráticos tutelam o exercício da plena liberdade de informação jornalística, respeitados os direitos à imagem e à privacidade, conforme expresso no texto constitucional. Essa condicionalidade, legitima e razoável, à liberdade de expressão, dá suporte à velha máxima de que o direito de um termina quando começa o do outro. A censura sequer é considerada na mesa de discussões, porquanto é vedada sob qualquer forma.

Passados 131 anos do seminal artigo de Samuel D. Warren e Louis D. Brandies publicado na Harvard Law Review, sob o título "The Right to Privacy" [5], o tema continua despertando ideias e desafiando a academia e as cortes em todo o mundo. A vanguarda desse artigo está na percepção por parte dos autores, nos idos de 1840, ao levantarem a preocupação de que deveria existir um capítulo específico de direito à privacidade, vez que, até então, a sua defesa vinha se dando, desde a antiguidade, no guarda-chuva dos direitos da personalidade ligados à proteção da propriedade sobre o corpo.

Os autores de Harvard já alertavam que mudanças politicas, sociais e econômicas demandavam o reconhecimento de novos direitos, e que invenções então recentes e modelos de negócio crescentes à época, tipo "fotografias instantâneas e o jornalismo impresso", ameaçavam invadir o espaço sagrado da vida privada e doméstica, e reclamavam atenção para assegurar ao indivíduo o que o juiz Colley chamava de "direito de ser deixado em paz". Daí nasciam os contornos modernos do que hoje se reconhece como um direito autônomo não só à privacidade, mas sobretudo à intimidade.

Trazendo o debate para os dias atuais, é de se rememorar que, de certo modo, os cantores e artistas, assim como os agentes públicos, têm a vida sob escrutínio amplo, dos fãs e dos contribuintes, já que se manter em evidência faz parte de seus afazeres. Ossos do ofício e é bom que seja assim.

Entretanto, não se pode desconsiderar que, na era da informação, é igualmente razoável e defensável admitir que a pessoa por trás da figura pública preserva direitos elementares de intimidade e privacidade, que em um grau mais profundo parece sustentar um direito de não ser importunado. Essa assertiva leva à hipótese de que há uma de tensão permanente entre a liberdade de comunicação e os direitos de personalidade.

Essa narrativa do "caso Streisand" sugere fortemente que a curiosidade humana seja inafastável. E, ao lado dos desejos pessoais, é no denso caldeirão institucional que se misturam normas constitucionais explícitas e implícitas, tais como a plena liberdade de informação, de expressão e autonomia comunicativa, e os direitos personalíssimos de intimidade, privacidade e resguardo.

Voltando ao julgamento no STF, é possível afirmar que o momento atual dá o tom da beleza, do vigor e também das dificuldades da vida no Estado de Direito. O regime exige esforços de interpretação e dialética, por vezes desconfortáveis, que podem e devem ser fomentados nos ambientes oficiais (cortes e parlamento) e nos meios de comunicação social, tais como a imprensa livre e a internet.

Uma sociedade que se almeja aberta e plural deve ser formada por pessoas capazes de fazer suas próprias escolhas e críticas, de modo que o acesso livre à informação (preferencialmente de qualidade) e a proteção aos direitos fundamentais coexistam de maneira harmônica e civilizada.

A liberdade de expressar, da qual decorre a de informar, deve ser garantida sem amarras, ao mesmo tempo que pode encontrar suas balizas civilizatórias na boa educação. É bom relembrar que a própria Constituição limita essa liberdade quando em choque com a intimidade do indivíduo, bem jurídico que interessa fundamentalmente a ele enquanto indivíduo. Para muitos, o sossego é considerado sagrado e, idealmente, pode ser uma fronteira da sua individualidade. Mas a sua defesa parece ter um custo alto de exposição. Barbra Streisand que o diga.

 


[1] O direito ao esquecimento pode ter muitos e diferentes significados, e diz respeito a um conjunto de garantias inerentes à personalidade que engloba a proteção da honra, da privacidade, da imagem e da intimidade, corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, seja no ambiente virtual ou fora dele. A impropriedade semântica da locução “direito ao esquecimento” pode decorrer da sua amplitude e da ausência de balizas normativas objetivas no ordenamento jurídico brasileiro que ajudem a concretizá-lo. Pode-se dizer que o termo representa muito mais um jargão do que um nomem iuris, no sentido estrito do termo.

[2] Parece claro que o termo direito ao esquecimento deriva da expressão em inglês the right to be forgotten ou the right to be let alone, encontrando paralelo também nos termos em castelhano derecho al olvido, droit à l’oubli, em francês, e diritto all’obli, em italiano. Na Colômbia, o derecho al olvido foi introduzido a partir de uma decisão da Corte Constitucional, ao passo que no México, o acrônimo ˜derechos ARCO” indica os quatro principais direitos reconhecidos pela legislação daquele país no que tange aos dados pessoais: retificação, cancelamento e oposição, correlacionados à proteção dos dados pessoais. Para aprofundamento, consultar: Mendes, Laura Schertel Ferreira (Org.); et all XIX Congresso Internacional de Direito do IDP – Grupo de Trabalho – GT: Direito e Internet. / Organizadores Laura Schertel Ferreira Mendes; Sergio Alves Júnior; Alexandre Sankievicz; et all. – Brasília: IDP, 2016, p. 95-120, https://www.idp.edu.br/wp-content/uploads/2019/07/Ebook-GT-DIREITO-E-INTERNET-GT-2016.pdf, <acessado em 15 de janeiro de 2021>.

[4] O efeito Streisand tornou-se objeto, inclusive, de pesquisas relacionadas ao tema: XUE, Minhui; MAGNO, Gabriel; CUNHA, Evandro; ALMEIDA, Virgílio; ROSS, Keith W., The Right to be Forgotten in The Media: A Data–Driven Study. De Gruyter Open, Proceedings on Privacy Enhancing Technologies 2016; 2016 (4):1-14.

[5] WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis. “The Right to Privacy”. Harvard Law Review, Vol. IV, n. 5, p.193, 1890. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1321160?seq=1#metadata_info_tab_contents <acessado em 15 de janeiro de 2021>.

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