Opinião

Advocacia criminal e confiança

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10 de fevereiro de 2021, 7h11

O artigo 34, IX, da Lei nº 8.906/94 caracteriza como infração ético-disciplinar o fato de o advogado prejudicar, por culpa grave, interesse confiado ao seu patrocínio.

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Já o artigo 10 do Código de Ética e Disciplina da OAB dispõe que as relações entre defensor e cliente são baseadas em confiança recíproca. Se o causídico sentir carência de fidúcia, ele deve informar o cliente a respeito, esclarecendo eventuais dúvidas. Se, mesmo assim, tais dúvidas não forem suprimidas, o advogado deve renunciar ao mandato ou substabelecer em favor de colega.

O cotejo lógico-sistemático dos sobreditos dispositivos revela que a confidência é um pressuposto da criação, consolidação e manutenção da relação advogado-cliente, além de uma das suas principais características distintivas (junto com a confidencialidade).

A doutrina pátria leciona que a confiança depositada pelo cliente não representa cheque em branco, havendo contrapartida: o dever ético de lealdade do defensor. Trata-se de relação jurídica bilateral que gera direitos e obrigações recíprocas, regulada pelo Código Civil, pela Lei nº 8.906/94 e pelo Código de Ética e Disciplina da OAB. Destarte, a fidúcia consignada pelo cliente deve ser ampla, conferindo ao causídico considerável grau de autonomia na condução estratégica e operacional da defesa dos interesses do cliente [1].

Não obstante, o que se deve entender por confiança, no âmbito relacional advogado-cliente? Quais são as condutas ou habilidades do defensor que favorecem a criação, consolidação e manutenção da fidúcia do cliente?

Nossa doutrina não vem se debruçando sobre essas relevantes questões, que são úteis para fornecer parâmetros interpretativos do marco legal e deontológico da advocacia, além da efetividade da defesa do acusado.

A esse propósito, de início cabe esclarecer que confiança é termo conceitualmente impreciso e polissêmico.

Para fins deste estudo exploratório, será adotado o conceito de Paul Bauer, baseado nas características essenciais da confiança: 1) existência de relação intersubjetiva entre um sujeito confiante (truster) e um sujeito confiado (trustee), cujo objeto é comportamento humano; 2) probabilidade (isto é, crença formada a partir de raciocínio probabilístico) de que o confiado se comporte de acordo com as expectativas do confiante; 3) projeção futura do comportamento do confiado; 4) preferência do confiante quanto a determinado comportamento do confiado.

Assim, confiança significa a estimativa subjetiva do sujeito confiante (truster) quanto à probabilidade de que o sujeito confiado (trustee) se comportará de acordo com as suas expectativas [2].

No campo da Sociologia das profissões, há pesquisa sobre os contornos da confiança no contexto da relação profissional-cliente [3].

Nesse âmbito, o cliente se depara com incertezas e riscos, que tornam impossível a tomada de decisão totalmente racional quanto a cooperar com o profissional. Isso porque as principais características da relação entre o profissional (com conhecimento técnico, habilitação e experiência prática) e o cidadão leigo são a lacuna de competência e a assimetria informacional.

Nessa toada, a confiança funciona como mecanismo social regulador de incertezas e riscos, pelo preenchimento da lacuna entre incompetência/necessidade de auxílio do cliente e impossibilidade de ele controlar o trabalho do profissional. Sua função é facilitar a cooperação do cliente com o profissional, mesmo quando aquele não tem condições de avaliar o julgamento deste, nem sua competência, nem se o dever de sigilo profissional será cumprido etc.

Com base nas precitadas ideias de Paul Bauer, é possível apresentar a seguinte aproximação conceitual à confiança na relação advogado-cliente: estimativa subjetiva do cliente quanto à probabilidade de que o advogado se comportará de acordo com as suas expectativas. Tais expectativas são relacionadas ao marco legal e deontológico do causídico: atuação com capacitação técnica e empenho pessoal, com vistas ao melhor interesse do cliente etc.

Stephen Feldman e Kent Wilson realizaram pesquisa empírica, baseada na aplicação de questionários a 93 pessoas que assistiram a gravações audiovisuais de entrevistas advogado-cliente simuladas, com as seguintes variáveis em relação ao defensor: 1) alta habilidade técnica e alta habilidade de relacionamento interpessoal; 2) baixa habilidade técnica e alta habilidade de relacionamento interpessoal; 3) alta habilidade técnica e baixa habilidade de relacionamento interpessoal; 4) baixa habilidade técnica e baixa habilidade de relacionamento interpessoal [4].

O resultado foi que ambas habilidades examinadas afetam a percepção do cliente sobre a confiabilidade do causídico e o grau de satisfação do cliente.

Já Christine Pierce e Stanley Brodsky, com base na submissão de questionários a 163 adolescentes e jovens adultos encarcerados, investigaram a hipótese de que, quanto mais jovens são os infratores, menos confiantes eles são em seus defensores, figuras de autoridade e terceiros, tendo pior compreensão do papel da defesa e do sistema de administração da Justiça Criminal [5].

A conclusão foi que não há correlação entre a idade do apenado e o grau de fidúcia depositada no advogado, figuras de autoridade, nem terceiros. Nada obstante, a menor idade do apenado é correlacionada à pior compreensão acerca do papel do defensor.

Marcus Boccaccini e Stanley Brodsky, por sua vez, tentaram mensurar a confidência do cliente em seu causídico, com base em dois aspectos: cognitivo (se o entrevistado acredita nas habilidades técnicas do defensor) e afetivo (se o entrevistado acredita que o defensor gosta dele e está do seu lado) [6].

Para tanto, eles ministraram questionários a 307 encarcerados no Arkansas, versando sobre as relações com seus defensores (públicos, dativos e constituídos).

Essa pesquisa empírica concluiu que: 1) os respectivos resultados quanto aos aspectos cognitivo e afetivo da confiança não são discrepantes; 2) a satisfação do cliente com sua representação processual é correlacionada ao maior grau de confiança consignada ao defensor; 3) o grau médio de confiança dos apenados é baixo (aquém do ponto médio da escala de confiança criada pelos pesquisadores); 4) os defensores constituídos gozam de maior grau médio de confiança dos apenados, comparados aos defensores públicos e dativos; 5) o grau médio de confiança é reduzido conforme a maior duração da pena corporal imposta, ou o maior tempo de cumprimento dessa pena; 6) a participação mais intensa dos apenados na relação com seus defensores não proporciona maior grau de confiança ou satisfação; 7) a apresentação mais frequente de sugestões sobre o caso pelos apenados é correlacionada ao menor grau de satisfação com seus defensores.

Os sobreditos resultados fornecem insights relevantes: 1) a percepção do cliente sobre a habilidade de relacionamento interpessoal do defensor é tão importante quanto a percepção sobre sua habilidade técnica; 2) a relação entre participação do cliente na causa e confidência no defensor é mediada pela receptividade do defensor à participação do cliente.

É importante ter em mente que o cliente leigo não tem competência para avaliar o conhecimento jurídico do advogado — embora ele possa tentar inferir tal conhecimento a partir de informações acessíveis (reputação da faculdade de Direito de formação, titulação acadêmica, quantidade de livros e artigos científicos publicados etc.).

Assim, eis algumas sugestões que podem facilitar a criação, sedimentação e manutenção de relação fiduciária com o cliente [7]:

1) Explique as questões deontológicas: no início da entrevista reservada, explique ao cliente a natureza sigilosa de quaisquer segredos pessoais revelados (ainda que você não venha a ser contratado), o seu dever ético de lealdade e o critério deontológico de resolução de eventual conflito de interesses. Deixe o cliente o mais à vontade possível para confidenciar todas as informações necessárias para defesa efetiva dos seus interesses;

2) Reduza a distância social: grosso modo, a distância social é a lacuna (real ou imaginária) entre dois interlocutores, em termos de educação, condição socioeconômica etc. Tal distância tende a tornar o cliente inseguro ao interagir com alguém que ele supõe ser figura de autoridade. Assim, postura arrogante, crítica, distante, fria etc., ou o uso de jargão jurídico incompreensível, tendem ensejar dificuldade na criação de vínculo de confiança e compartilhamento de informações sensíveis pelo cliente. Portanto, seja humilde, acrítico, interessado, caloroso etc., usando linguagem clara, direta e acessível;

3) Foque no cliente: o mais importante durante a entrevista reservada é canalizar sua atenção para a escuta do relato do cliente e aconselhá-lo. Assim, receba o cliente em ambiente acolhedor, confortável, silencioso e imune a interrupções. Não force o cliente a expor seu problema, pois é relativamente usual que, durante a primeira entrevista, ele ainda não se sinta confiante e seguro o suficiente para elaborar sobre o ocorrido. Manoel Pedro Pimentel recomenda anotar os pontos principais da narrativa do cliente — postura que denota atenção e permite o desvio do seu olhar para o papel, deixando o cliente mais à vontade;

4) Use técnicas de aconselhamento: 1) escuta ativa: o relato do cliente deve ser objeto de atenção exclusiva, sem quaisquer distrações (v.g. assinaturas de documentos, conversas paralelas, leituras de e-mails ou mensagens de texto, telefonemas etc.); 2) resumo do relato do cliente: após o cliente concluir sua narrativa, consulte seus apontamentos e resuma essa narrativa com suas próprias palavras, confirmando que anotou corretamente os pontos mais importantes. Essa atitude fomenta a confiança, ao denotar atenção e cuidado, além de permitir esclarecimento de eventuais incompreensões; 3) reflexão emotiva: crie vínculo com o cliente, identificando quais sentimentos e valores pessoais estão subjacentes à narrativa dos fatos; 4) empatia: tente se colocar no lugar do cliente, refletindo sobre suas emoções e sentimentos, e como eles se relacionam com os fatos naturalísticos narrados;

5) Explique seus honorários: seja claro quanto à política de cobrar ou não pela primeira entrevista reservada. Ao fixar seus honorários, explique ao cliente quais foram os critérios usados no caso concreto, à luz das diretrizes do artigo 49 do Código de Ética e Disciplina da OAB. Envie proposta de honorários por escrito, detalhando o escopo dos serviços a serem prestados, o valor e a forma de pagamento dos honorários, quais despesas devem ser reembolsadas pelo cliente etc.;

6) Aceite a colaboração do cliente: o cliente, embora leigo em Direito, entende muito mais do que você sobre os fatos naturalísticos relevantes, a empresa dele, o segmento de mercado onde ele atua etc. Assim, seja receptivo às ideias dele, e compartilhe com ele a tomada das principais decisões estratégicas e táticas, durante a condução operacional da causa;

7) Não se gabe: seja autoconfiante, porém jamais faça autoelogios, bravatas, fanfarronices etc., pois essas atitudes denotam imaturidade e insegurança;

8) Não prometa resultado: como é cediço, a advocacia é obrigação de meio, e não de resultado. Além disso, o resultado processual depende de variáveis independentes, alheias ao seu controle (v.g. natureza e quantidade das imputações, robustez das provas incriminadoras etc.). Assim, prometer determinado resultado processual não só é leviano, como pode ensejar quebra da confiança depositada pelo cliente;

9) Não venda relações com servidores: infelizmente, não é raro que profissionais antiéticos (que existem em qualquer ocupação, inclusive na advocacia) tentem vender, a peso de ouro, supostas relações com servidores (desembargadores, juízes, procuradores da República etc.). Trata-se de expediente que pode caracterizar, em tese, crime de exploração de prestígio ou tráfico de influência, e infração ético-disciplinar. Quase sempre essas supostas relações são inverídicas, pois quem nutre relação de amizade com servidor jamais iria expô-lo dessa forma, muito menos perante desconhecido;

10) Não apresente titulação fake: não apresente titulação fake ao cliente. O título de professor universitário não é autoatribuído, pressupondo vínculo empregatício com instituição de ensino superior. Da mesma forma, os títulos de mestre e doutor pressupõem aprovações em disciplinas de programas de pós-graduação stricto sensu, além da defesa e aprovação de dissertação e tese (respectivamente). Sem ter cumprido todas essas etapas, você não pode se intitular mestre ou doutor. Hoje em dia, clientes avisados podem facilmente checar a veracidade dos títulos que você alega possuir em fontes abertas (v.g. Plataforma Lattes do CNPq etc.).

A conquista, consolidação e manutenção da confidência do cliente, malgrado sejam imprescindíveis para a prática da advocacia, infelizmente não são ensinadas pelas faculdades de Direito.

Não se trata de ciência, e, sim, de arte aperfeiçoada ao longo de anos a fio de prática profissional zelosa. Nosso objetivo foi dúplice: louvar essa importante habilidade profissional, e ressaltar a importância da confiança dos clientes para dignificar a advocacia.

 


[1] MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Comentários ao Código de Ética e Disciplina da OAB, p. 55. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

[2] BAUER, Paul. Conceptualizing trust and trustworthiness. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2325989

[3] DI LUZIO, Gaia. A sociological concept of client trust, In: Current Sociology, v. 54, n. 04, pp. 549-564, jul. 2006.

[4] FELDMAN, Stephen; WILSON, Kent. The value of interpersonal skills in lawyering, In: Law and Human Behavior, v. 05, n. 04, pp. 311-324, 1981.

[5] PIERCE, Christine; BRODSKY, Stanley. Trust and understanding in the attorney-juvenile relationship, In: Behavioral Sciences and the Law, n. 20, pp. 89-107, 2002.

[6] BOCCACCINI, Marcus; BRODSKY, Stanley. Attorney-client trust among convicted criminal defendants: Preliminary examination of the attorney-client trust scale, In: Behavioral Sciences and the Law, n. 20, pp. 69-87, 2002.

[7] DEVLAMING, Denis. Engaging the new client, In: Champion, March 2019, p. 34, PIMENTEL, Manoel Pedro. Advocacia criminal, pp. 54 e ss. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975; SALINAS, Oscar. Effective client interviewing and counseling. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2401119.

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