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É inconstitucional abrir crédito extraordinário para despesa previsível

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9 de fevereiro de 2021, 8h00

Incautos defendem a tese de que o Chefe do Poder Executivo da União poderia garantir custeio para a continuidade do auxílio emergencial (cuja necessidade era previsível, no mínimo, desde meados de 2020), por meio do manejo de créditos extraordinários. Sustentam que isso seria juridicamente possível caso seja declarada — pela segunda vez — situação de calamidade em decorrência da pandemia da Covid-19.

Spacca
Esquecem-se os incautos que o Executivo federal e o Congresso devem planejar solução equitativa e democrática para todas as demandas previsíveis, por mais relevantes e urgentes que elas possam vir a ser. O espaço adequado para tanto é o projeto de lei de orçamento que, para o presente exercício financeiro, ainda não foi apreciado e aprovado, já que sequer a Comissão Mista de Orçamento (a que se refere ao art. 166 da Constituição) foi instalada.

Se, desde o envio do PLOA-2021, em 31/08/2020, Executivo e Legislativo sabiam da necessidade de planejar o orçamento federal para fazer face ao risco absolutamente previsível de continuidade da pandemia, soa cínica e fraudulenta a alegação de imprevisibilidade de uma despesa que já estava em andamento desde o primeiro semestre do ano anterior. Ora, a manobra abusiva visa notoriamente burlar os limites do teto dado pela EC 95/2016 e fugir ao necessário diálogo prévio com o parlamento.

Os incautos leem o §3º do artigo 167 da CF/1988, apenas a partir dos exemplos dados para densificar os requisitos de urgência e imprevisibilidade. Para eles, basta alegar — de forma vazia e protocolar — situação de calamidade, para que seja supostamente cabível o manejo da hipótese excepcional dos créditos extraordinários.

Esquecem-se os incautos que o §3º do artigo 167 delimita o cabimento dos créditos extraordinários a partir do núcleo fático daqueles requisitos. Não basta alegar calamidade, se a realidade não for efetivamente imprevisível e urgente, porque seria muito fácil o abuso semântico da invocação de calamidade apenas para frustrar os limites constitucionais que a matéria envolve.

A imprudência dos que deviam planejar e cumprir o devido processo legislativo orçamentário é tanta que deram causa ao fim precipitado do Orçamento de Guerra, com a ausência de prorrogação do Decreto Legislativo nº 6/2020, como se a pandemia da Covid-19 fosse desaparecer com os fogos de artifício da virada de 2020 para 2021.

Esse cenário lembra muito a alegação de situação de calamidade por gestores que querem manejar a hipótese de dispensa emergencial a que se refere o artigo 24, IV da Lei 8666/1993, quando foram eles próprios que deram causa à situação de desabastecimento de itens ou serviços essenciais, por não haverem planejado tempestivamente o respectivo certame licitatório. Trata-se de uma emergência fabricada…

Admitir em 2021 o manejo de créditos extraordinários para fazer face a despesas previsíveis, como a continuidade do auxílio-emergencial e o custeio das ações e serviços públicos de saúde no âmbito do SUS, é acatar burla literal ao princípio da separação de poderes, à legalidade orçamentária e, em especial, ao teto dado pela EC 95/2016.

Não há como contemporizar com a afronta direta ao ordenamento constitucional brasileiro nesse caso. Ou a realidade pandêmica, de tão calamitosa e imprevisível, deveria ter ensejado a prorrogação do Orçamento de Guerra para compreender o biênio 2020-2021, ou haverá incontornável desonestidade semântica sobre os requisitos constitucionais de cabimento de créditos extraordinários.

Para que não haja dúvidas da dimensão constitucional da burla que se intenciona cometer, faço questão de resgatar excertos de alguns votos que perfizeram a essência do julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4048 MC/DF.

Como podemos ler a partir do inteiro teor da ADI 4.048-MC/DF e cuja numeração geral de páginas seguiremos na indicação dos excertos a seguir citados), é clara a delimitação faticamente excepcional dos créditos extraordinários. Sem a efetiva detecção de imprevisibilidade, o que se tem é fraude constitucional, afronta ao Legislativo e, sobretudo, manejo autoritário do poder pelo Executivo.

A síntese a seguir de argumentos do próprio STF contra o manejo abusivo de créditos extraordinários na ADI 4.048 é uma necessidade de defesa da essência da nossa Constituição, razão pela qual peço, desde já, desculpas pelas citações longas que encerram este artigo de resistência contra qualquer risco de autoritarismo orçamentário.

Voto do Ministro Gilmar Mender (relator)

"Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, §3º) recebem densificação normativa da Constituição. Em outras palavras, os termos imprevisíveis e urgentes, como signos linguísticos de natureza indeterminada, são delimitados semanticamente, ainda que parcialmente, pelo próprio texto constitucional." (p. 70, grifo nosso)

"A previsão constitucional de abertura de créditos extraordinários (art. 167, §3º) visa dar suporte financeiro à adoção de medidas urgentes à superação desses estados de crise criados por acontecimentos tais como ou semelhantes à guerra, à comoção interna ou à calamidade pública. Por isso, não é difícil constatar a adequação do instrumento legislativo excepcional da medida provisória para esse mister. Por meio da medida provisória o Poder Executivo pode dispor, com a necessária urgência, de créditos para fazer face às despesas imprevisíveis decorrentes dessas situações excepcionais." (p. 72, grifos nossos)

"É bem verdade que, em alguns casos, é possível identificar situações específicas caracterizadas pela relevância dos temas.

São os casos, por exemplo, dos créditos destinados à redução dos riscos de introdução da gripe aviária e de outras doenças exóticas na cadeia avícola brasileira; […] assim como para solver a grave situação dos sistemas penitenciários com superpopulação carcerária; os créditos destinados ao porte imediato de recursos extras para o pagamento de benefícios aos agricultores familiares do semi-árido que tiveram perdas na última safra; e, enfim, os créditos destinados a evitar a ocorrência de crise aérea, para impedir o risco de acidentes com as aeronaves da Força Aérea Brasileira, assim como para evitar a suspensão dos serviços de vigilância territorial.

Não é possível negar que, nesses casos, existem fatos relevantes que necessitam, impreterivelmente, de recursos suficientes para evitar o desencadeamento de uma situação de crise. É preciso bem observar, porém, que são aportes financeiros destinados à adoção de mecanismos de prevenção em relação a situações de risco previsíveis.

[…] Há, aqui, um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários.” (p. 87-88, grifo nosso)

Voto do Ministro Celso de Mello

"[…] Torna-se claro, pois, que o Congresso Nacional, mesmo no exercício do poder de reforma — cuja prática está juridicamente subordinada às limitações impostas pela Lei Fundamental — não dispõe de competência para constitucionalizar, mediante superveniente promulgação de emenda à Constituição, diploma legislativo até então incompatível, formal ou materialmente, com o texto da Carta Política, pois, se assim lhe fosse permitido, comprometer-se-ia, de modo grave, o postulado da supremacia da Constituição.

Com maior razão, uma simples lei de conversão, hierarquicamente inferior a uma emenda à Constituição, não convalida medida provisória inconstitucional, tanto quanto uma emenda constitucional superveniente – insista-se – não legitima leis originariamente inconstitucionais." (p. 141-142, grifos nossos)

"[…] recursos financeiros autorizados pela abertura de créditos supostamente extraordinários, destinados a custear e a superar situações emergenciais ou de crise, não foram, na realidade, motivados por fatores caracterizados pelas notas da imprevisibilidade, da extraordinariedade, da urgência e da excepcionalidade, na medida em que provados […] por “fatos plenamente previsíveis", o que evidencia o antagonismo da medida provisória em questão, analisada na perspectiva da disciplina estrita que resulta do regime constitucional pertinente à abertura de créditos extraordinários, tal como previsto no artigo 167, §3º, da Constituição da República." (p. 156, grifo nosso)

"Torna-se necessário enfatizar que o coeficiente de liberdade dos povos expõe-se a sensível e perigosa redução, quando as instituições do Estado, ao usurparem atribuições que não lhes são próprias, transgridem o postulado da separação de poderes, dando indevida expansão às suas próprias prerrogativas políticas e jurídicas, e, com esse comportamento revestido de ilicitude constitucional, culminam por desrespeitar a Constituição e por lesar, de maneira inaceitável, as liberdades civis, as franquias democráticas e os parâmetros cuja estrita observância deve condicionar o exercício do poder estatal.

[…] É preciso advertir, neste ponto, que o regime de governo e as liberdades das pessoas, muitas vezes, expõem-se a um processo de imperceptível erosão, destruindo-se, lenta e progressivamente, pela ação usurpadora dos poderes estatais, impulsionados pela busca autoritária de maior domínio e controle hegemônico sobre o aparelho do Estado e sobre os direitos e garantias do cidadão." (p. 159-162, grifos nossos)

"[…] o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culminou por introduzir, no processo institucional brasileiro verdadeiro cesarismo governamental em matéria legislativa, provocando graves distorções no modelo político e gerando disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes […]

Esse comportamento dos vários Chefes do Poder Executivo da União, além de concentrar, indevidamente, na Presidência da República, o foco e o eixo das decisões legislativas, tornou instável o ordenamento normativo do Estado brasileiro, que passou, em consequência, a viver sob o signo do efêmero.

[…] o Chefe do Poder Executivo da União transformou-se, definitivamente, hoje, em verdadeiro legislador solitário da República.

Cumpre advertir, por isso mesmo, que a utilização excessiva das medidas provisórias minimiza, perigosamente, a importância político-institucional do Poder Legislativo, pois suprime a possibilidade de prévia discussão parlamentar de matérias que, ordinariamente, estão sujeitas ao poder decisório do Congresso Nacional." (p. 168-170, grifos nossos)

"Cumpre não desconhecer, neste ponto, que é o Parlamento, no regime da separação de poderes, o único órgão estatal investido de legitimidade constitucional para elaborar, democraticamente, as leis do Estado.

Interpretações regalistas da Constituição — que visem a produzir exegeses servilmente ajustadas à visão e à conveniência exclusivas dos governantes e de estamentos dominantes no aparelho social — presentariam clara subversão da vontade inscrita no texto de nossa Lei Fundamental e ensejariam, a partir da temerária aceitação da soberania interpretativa manifestada pelos dirigentes do Estado, a deformação do sistema de discriminação de poderes, fixado, de modo legítimo e incontrastável, pela Assembleia Nacional Constituinte.

[…] uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica subalterna que possa sujeitar-se à vontade discricionária e irresponsável dos governantes, nem representa simples estrutura formal de normatividade, nem pode caracterizar ou ser interpretada como um irrelevante acidente histórico na vida dos povos e da das Nações […]. A Constituição — cujo sentido de permanência, estabilidade e transcendência deve sobrepor-se à irrupção de crises meramente episódicas ou à ocorrência de dificuldades de natureza conjuntural que eventualmente afetem o aparelho de Estado ou, até mesmo, a própria sociedade civil — reflete, ante a magnitude de seu significado político-jurídico, um documento solene revestido de importância essencial, sob cujo império protegem-se as liberdades, impede-se a opressão do poder e repudia-se o abuso governamental.” (p. 171-173, grifos nossos)

Voto do Ministro Ayres Britto

"A primeira categoria — urgência e relevância — está no artigo 62. Ela não se confunde com a outra categoria de pressupostos que está no artigo 167, §3º, urgência e imprevisibilidade. Porque, no fundo, estamos trabalhando com dois tipos de devido processo legal. No artigo 62, temos um devido processo legal em aberto, para toda e qualquer matéria; no artigo 167, §3º, temos um devido processo legal orçamentário, ou seja, especificamente orçamentário. É por isso que os pressupostos não são exatamente os mesmos, porque sabemos que imprevisibilidade é o que foge do controle, o que não pode ser objeto de prognóstico. É como a língua portuguesa diz: o totalmente imprevisível, vale dizer, há um plus de significatividade em relação àqueles outros dois pressupostos do artigo 62. Essa especificidade de pressupostos no §3º do artigo 167, no fundo, cumpre um papel constitucional. A Constituição confere ao orçamento uma proteção especialíssima. O orçamento, depois dela própria, a Constituição, é a lei que mais influencia os destinos da coletividade, o quotidiano de todos nós.

Então, a Constituição confere ao orçamento um devido processo legal não-coincidente com aquele do artigo 62.

[…] essas despesas — objeto do crédito extraordinário, aberto pela medida provisória sob análise —, no fundo, não se enquadram nos pressupostos do §3º do artigo 167, porque elas seriam objeto de [dotações originalmente previstas na LOA], créditos suplementares ou especiais; caberiam bem como créditos suplementares ou especiais. Acontece que, para abrir créditos especiais ou suplementares, o Presidente da República precisaria de prévia autorização do Congresso Nacional e, lançando mão da abertura de créditos extraordinários, não precisa dessa autorização prévia, só precisará dessa autorização a posteriori.

Então, essa transformação de créditos suplementares e especiais em extraordinários, no fundo, significa fugir da obrigação de pedir uma prévia autorização legislativa ao Congresso Nacional, para se situar o Executivo na comodidade de edição de uma medida provisória que tenha força de lei desde a sua edição e que poderá ser convertida, portanto, posteriormente em lei, como de fato ocorreu." (p. 180-182, grifos nossos)

Em suma, admitir que sejam abertos créditos extraordinários para fazer face a despesas previsíveis é acatar que sejam concedidos cheques em branco para o Executivo, enquanto nossa democracia é erodida estruturalmente na essência da pactuação legítima das prioridades orçamentárias.

A insana interdição do debate sobre a necessidade de alterar o teto dado pela Emenda 95/2016 não pode dar causa a uma acomodação tão evidentemente fraudulenta e inconstitucional como essa.

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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