Opinião

Pelo fortalecimento da Lei Maria da Penha

Autores

  • Eliseu Antônio da Silva Belo

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes-RJ e professor de Direito Constitucional na pós-graduação em Direito Público do Instituto Goiano de Direito (IGD).

  • Alice de Almeida Freire

    é promotora de Justiça do Ministério Público de Goiás e membro auxiliar da Comissão do Sistema Prisional Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública do Conselho Nacional do Ministério Público.

9 de fevereiro de 2021, 9h12

Lamentavelmente, nos últimos anos temos observado um verdadeiro movimento jurisprudencial de esvaziamento da Lei Maria da Penha, aqui mesmo no Estado de Goiás, a despeito do crescente aumento na prática de crimes cujas vítimas são exatamente as mulheres.

Para se ter uma ideia, especialmente durante a presente época de pandemia da Covid-19, em junho do ano passado noticiou-se que os "casos de feminicídio crescem 22% em 12 Estados durante pandemia: números da violência contra a mulher caíram em apenas três estados", quais sejam, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, conforme matéria publicada no site da Agência Brasil. Ou ainda, mais recente, a seguinte manchete no site da Globo: "Com restrições da pandemia, aumento da violência contra a mulher é fenômeno mundial".

Assim, decisões que por algum motivo deixam de aplicar a Lei Maria da Penha em favor de mulheres, cuja relação com o agressor esteja amparada no artigo 5º dessa lei, devem ser questionadas e reformadas nas instâncias superiores, como tem sido feito pelo Ministério Público de Goiás, com grande êxito no STJ.

Referido dispositivo legal tem o seguinte teor: "Artigo 5º — Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação".

Como se vê, se a mulher vítima de algum tipo de violência ou ameaça estiver com o seu agressor em um dos âmbitos legais acima destacados (unidade doméstica, esfera familiar ou qualquer relação íntima de afeto), é de rigor a aplicação da Lei Maria da Penha, sem qualquer outro tipo de consideração ou exigência, sob pena de ficar ao desamparo dessa importante lei, bem como da atuação da vara judicial especializada, a maioria das mulheres que são vitimadas diariamente.

Dentro desse contexto, reputamos lamentável a decisão judicial segundo a qual "para a incidência da Lei Maria da Penha, não basta que a conduta seja praticada contra pessoa do sexo feminino, ainda que dentro de relação familiar ou íntima de afeto. Assim, inexistindo hipótese de submissão, situação de vulnerabilidade ou caso de opressão à mulher numa perspectiva de gênero, não há que se falar em aplicabilidade da Lei 11.340/06" (trecho da ementa de precedente do TJ-GO: Recurso em sentido estrito 137267-21.2018.8.09.0175, Rel. des. Itaney Francisco Campos, 1ª Camara Criminal, julgado em 5/9/2019, DJe 2835 de 23/09/2019).

Note-se que o entendimento acima exige a comprovação do estado de submissão, opressão ou vulnerabilidade da mulher, mesmo que ela se encontre em uma das situações previstas no artigo 5º, acima transcrito, em claro descompasso com a finalidade da aludida lei (cujo artigo 4º preceitua que: "Na interpretação desta lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar"), e com a posição dos tribunais superiores, entre os quais o próprio STJ, segundo o qual: "Com efeito, é presumida, pela Lei Maria da Penha, a hipossuficiência e a vulnerabilidade da mulher em contexto de violência doméstica e familiar" (Passagem contida na ementa do AgRg no AREsp 1649406/SP, Rel. ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 19/05/2020, DJe 28/5/2020).

Não é por outro motivo que o jurista Renato Brasileiro de Lima, em obra especializada na matéria, afirma o seguinte: "Pode-se dizer que a incidência da Lei Maria da Penha está condicionada à presença de 3 (três) pressupostos cumulativos: 1) sujeito passivo mulher; 2) prática de violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral; (…); 3) violência dolosa praticada no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família, ou em qualquer relação íntima de afeto: estas situações em que se presume a maior vulnerabilidade da mulher também são alternativas".

Em reforço, o ministro Rogério Schietti Cruz, da 6ª Turma do STJ, já teve o ensejo de ressaltar que: "A lei não reclama considerações sobre a motivação da conduta do agressor, mas tão somente que a vítima seja mulher (pouco importando sua idade) e que a violência seja cometida no ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida" (trecho de seu voto condutor no REsp 1652968/MT, Rel. ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020). Em seguida, no mesmo voto, ele realça, com absoluta razão, que não se pode adotar uma interpretação da lei "que acabe por desproteger justamente quem a Lei Maria da Penha foi editada para proteger, as mulheres, crianças, jovens, adultas ou idosas".

Dessa forma, ainda nas palavras judiciosas do ministro Rogério Schietti Cruz, em outro brilhante voto proferido, desta vez no REsp 1643051/MS, 3ª Seção do STJ, julgado em 28/02/2018, DJe 8/3/2018: "É preciso compreender que defender a liberdade humana, sobretudo em um Estado Democrático de Direito, também consiste em refutar, com veemência, a violência contra as mulheres, defender sua liberdade (para amar, pensar, trabalhar, se expressar), criar mecanismos para seu fortalecimento, ampliar o raio de sua proteção jurídica e otimizar todos os instrumentos normativos que de algum modo compensem ou minimizem o sofrimento e os malefícios causados pela violência sofrida na condição de mulher".

Portanto, esperamos que as autoridades públicas encarregadas da aplicação da Lei Maria da Penha, entre as quais destacamos as que integram o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública, tenham a consciência de que esse relevante instrumento normativo deve ser sempre otimizado e fortalecido, de modo a alcançar todas as mulheres que sejam vítimas de violência, no contexto doméstico e familiar.

Que possamos todos iniciar esse ano de 2021 também com essa importante reflexão!

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    é promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás; assessor jurídico do procurador-geral de Justiça até março de 2019, com atuação na área de controle de constitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

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    é promotora de Justiça do Ministério Público de Goiás e membro auxiliar da Comissão do Sistema Prisional, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública do Conselho Nacional do Ministério Público.

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