Opinião

A ultraconexão se coíbe com mudança de comportamento, e não das leis

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8 de fevereiro de 2021, 16h24

As tecnologias provocaram a hiperconexão, ou seja, trabalhadores realizando as atividades por meio de celulares, tablets, computador etc. fora da jornada de trabalho regular.

É inegável que a questão do direito à desconexão está ganhando corpo.

Alguns defendem a necessidade de se implementar, no âmbito das relações do trabalho, mediante o Poder Legislativo, mandamento legal específico para garantir ao trabalhador o direito de se desconectar de suas atividades laborativas. Entendemos que não.

É inegável que as tecnologias trouxeram a hiperconexão do trabalho, na qual os trabalhadores se mantêm conectados à atividade laborativa por meio de meios telemáticos, aplicativos e computadores.

As mensagens chegam a qualquer tempo pelos meios telemáticos, e esse fato tem relevância sobre as relações de trabalho.

As tecnologias rompem com a limitação da jornada de trabalho, esticam os dias, eliminam os períodos de interrupção e descanso e sobrecarregam os empregados com um volume de trabalho como nunca houve antes, afetando de modo contundente os períodos de repouso que os trabalhadores teriam, justamente para se recuperarem das jornadas extenuantes. As tecnológicas estão, principalmente depois da Covid-19, provocando profundas mudanças no modo de se trabalhar.

Foram esses os motivos que levaram a França a aprovar, em 2016, a Lei da Desconexão, permitindo que os empregados não respondam a mensagens eletrônicas, e-mails ou outros tipos de mensagens que são veiculadas por meios telemáticos. A Loi Travail, lei da reforma trabalhista francesa, inseriu o parágrafo 7 do artigo L.2242-8 no Código do Trabalho Francês, regulando, pela primeira vez, o direito à desconexão de forma ampla. Essa lei estabelece os limites para a conexão ao trabalho, em que a empresa deve ter em seu estabelecimento "sistemas para regular o uso de ferramentas digitais, com o objetivo de garantir o respeito ao descanso e a vida pessoal e familiar do empregado" (Mariana Ferruci Bega, 30/1/2020 — "O direito à desconexão do trabalho na era tecnológica").

Na verdade, trata-se de uma lei de contenção, limitação do poder diretivo do empregador, que não imporá ao empregado a obrigatoriedade de estar constantemente conectado respondendo a mensagens indiscriminadamente, por exemplo.

A lei não serve para toda e qualquer empresa, somente para aquelas com mais de 50 empregados. Outro aspecto relevante da lei é de que determina a negociação coletiva como instrumento de ajustes de como será feito o uso de e-mails e aplicativos de mensagens fora do expediente.

Resumidamente, o direito à desconexão consiste no direito de o empregado poder usufruir do tempo do não trabalho, da não conexão, e se dedicar, por conseguinte, a atividades pessoais e à sua família, ter tempo livre para se dedicar a si, mantendo a higidez sociológica e física.

Não há no ordenamento jurídico brasileiro lei específica tratando do tema, mas já tínhamos o artigo 6º da CLT que sofreu alteração pela Lei 12.511/2011, prevendo a conexão do empregado por meios telemáticos, e-mails, WhatsApp, entre outros meios de comunicação remota, configurando o trabalho a distância não se distinguindo do trabalho realizado no estabelecimento do empregador.

A jurisprudência já tratou do tema no Processo AIRR-2058-43.2012.5.02.0464, em que a 7ª Turma do TST, por unanimidade, desproveu o agravo, permitindo que uma trabalhadora obtivesse o direito de ser indenizada por ofensa ao "direito à desconexão".

Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro, ainda que não trate objetivamente do direito à desconexão, já dispõe dos mecanismos que funcionam como normas de contenção da jornada de trabalho, por exemplo, contida na Constituição Federal de 1988, ao limitar em 44 horas semanais e oito horas diárias. Possui também o instituto da hora extraordinária, limitada a duas horas por dia. Estabelece o descanso semanal remunerado, que deve ser de 24 horas consecutivas e usualmente ocorre aos domingos e feriados civis e religiosos. Dispõe sobre os intervalos para descanso do trabalhador (CLT), no artigo 71 (intervalo intrajornada) e no artigo 66 (intervalo interjornada). 

O direito a férias é assegurado, na Constituição Federal, pelo artigo 7º, inciso XVII. Na lei ordinária (CLT), nos artigos 129 a 153, e o direito é aplicado a todos os empregados (rurais e urbanos), servidores públicos (artigo 39, parágrafo 3º, da CF). Segundo a CLT, todo empregado tem direito anualmente ao gozo de um período de férias, sem prejuízo da remuneração (artigo 129).

Como se pode notar, as normas de contenção, que permitem ao trabalhador descansar — portanto, literalmente se desconectar do trabalho —, já estão previstas em nosso ordenamento jurídico. Acreditamos não ser necessária uma nova lei para regular o que já está previsto em nosso ordenamento jurídico. As normas de limitação de jornada de trabalho, concessão de descansos semanais e anuais, entre outras, constituem instrumentos eficazes para coibir a ultraconexão do trabalhador.

O que não se pode admitir, e a jurisprudência já se encaminha nesse sentido, é o uso indiscriminado dos meios telemáticos pelo empregador, impondo ao empregado a necessidade de se conectar também indiscriminadamente. 

O direito à desconexão está profundamente relacionado ao comportamento tecnológico do empregador, que deve implementar medidas efetivas para não se vulnerabilizar em possíveis ações trabalhistas, com condenações vultosas por causa da não desconexão dos empregados. 

No entanto, não podemos nos esquecer da responsabilidade também do empregado quanto ao seu direito à desconexão. São os regramentos internos nas empresas, firmados também por meio de convenções coletivas de trabalho, os meios mais eficazes de se estabelecerem regras de uso da tecnologia, tanto por parte do empregado quanto dos empregadores.

O direito à desconexão exigirá uma mudança comportamental, tanto de trabalhadores quanto de empregadores. O ordenamento jurídico trabalhista brasileiro tem mecanismos eficazes para combater abusos, tanto dos empregadores que não se atentam para a importância de regras claras quanto ao uso de meios telemáticos quanto dos trabalhadores que, por sua vez, devem obedecer as mesmas regras limitadoras à conexão ao trabalho.

A ultraconexão se coíbe com mudança de comportamento, e não das leis, que estão aí para restringir a conexão dos trabalhadores.

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