Sistema em Descompasso

"Lei anticrime contraria evidências empíricas", diz presidente do IBCCrim

Autor

7 de fevereiro de 2021, 9h17

Embora em matéria processual a lei "anticrime" tenha introduzido mudanças positivas, como a criação do juiz de garantias, na esfera penal ela apenas aprofunda desigualdades sociais. A análise é da advogada Marina Pinhão Coelho Araújo, recém-eleita presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). 

Spacca

"Já aprendemos que, na prática, não adianta aumentar o tempo de pena em regime fechado. Mas é isso que a lei 'anticrime' trouxe. Ela vai na contramão das evidências empíricas. É uma legislação que continua prendendo por muito tempo pessoas que estão em uma condição social vulnerável", afirmou em entrevista concedida à ConJur, por telefone. 

A advogada também comentou as medidas que visam a mitigar o avanço do novo coronavírus nos presídios. Para ela, as iniciativas foram ineficazes, uma vez que teria faltado ao Judiciário consciência no momento de reavaliar prisões preventivas.

Esse fenômeno, diz, não é observado apenas durante a epidemia. Há, segundo Araújo, um descompasso entre o que dizem as leis e como elas são aplicadas. 

"Os requisitos da prisão preventiva no Brasil são muito claros e considero o sistema penal constitucional muito transparente no sentido de que a prisão preventiva cautelar é uma exceção. Em teoria, a regra é responder ao processo em liberdade. A aplicação disso, no entanto, vem sendo feita de outra maneira. O Judiciário aplica a preventiva, na grande maioria dos casos, como regra. Principalmente em casos de tráfico de drogas e roubo", diz.

Marina Pinhão Coelho Araújo é formada em Direito pela Universidade de São Paulo. Inscreveu-se no IBCCrim em 1996 e faz parte do instituto desde então. É doutora em Direito Penal e atua como advogada desde 2000. Foi eleita diretora-presidente do IBCCrim em dezembro do ano passado para o biênio 2021-2022. 

Leia a entrevista:

ConJur — Quais os principais objetivos de sua gestão à frente do IBCCrim?
Marina Pinhão Coelho Araújo —
Nossa ideia, já na formação da chapa, era a de ter um grupo que pudesse retomar a posição de protagonismo do instituto. Pensamos o IBCCrim como uma entidade da sociedade civil que pode contribuir com questões técnicas, seja na via da política legislativa, da política de execução das penas ou nas próprias decisões judiciais. O IBCCrim já foi uma grande referência e isso se perdeu em parte. A nossa ideia é recuperar o protagonismo aqui no Brasil para que possamos ter voz sobre esses vários assuntos. Temos entre os associados as principais pessoas que trabalham com Direito Penal, Processual Penal e Criminologia. Assim, podemos contribuir muito. Nas eleições também trouxemos a proposta de alterar o estatuto do instituto para incluir 20% de pessoas negras na diretoria e vamos fazer isso. Já houve uma primeira reunião colocando o assunto em pauta. 

ConJur — A retomada desse protagonismo passa por uma maior atuação junto às cortes superiores? 
Marina Pinhão Coelho Araújo —
Sim. O instituto já tem um departamento estruturado de amicus curiae. O objetivo é continuar esse trabalho e ampliá-lo na medida do que for necessário, em especial nas pautas que entendemos como relevantes. Há, por exemplo, uma convocação feita pelo ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, para uma audiência pública relacionada à atuação das polícias nas periferias do Rio de Janeiro. O IBCCrim quer estar presente nessa discussão, contribuindo com argumentos relevantes. Nossa ideia é, sim, a de trabalhar muito intensamente nos tribunais superiores. 

Para além disso, queremos fortalecer a atuação do instituto em todos os estados brasileiros. Nós temos coordenações estaduais e queremos fortalecer isso, porque entendemos que o Direito Penal tem nuances muito diferentes quando comparamos, por exemplo, São Paulo, Amazonas e Rio Grande do Sul. Com uma maior capilaridade, nós conseguimos captar melhor a essência dos problemas de cada estado. 

ConJur — Algumas medidas, como a Recomendação 62, do CNJ, foram tomadas em 2020 para mitigar os efeitos de epidemia de Covid-19 dentro dos presídios e para reduzir o encarceramento — pauta cara ao IBCCrim. Foi possível sentir os efeitos dessas iniciativas?
Marina Pinhão Coelho Araújo —
Entrei com inúmeros pedidos de Habeas Corpus para tentar fazer com que preventivas fossem reavaliadas, considerando a situação de excepcionalidade que estamos vivendo — em São Paulo e nos tribunais superiores. Tive muitas dificuldades.

Os requisitos da prisão preventiva no Brasil são muito claros e considero o sistema penal constitucional muito transparente no sentido de que a prisão preventiva cautelar é uma exceção. Em teoria, a regra é responder ao processo em liberdade. A aplicação disso, no entanto, vem sendo feita de outra maneira. O Judiciário aplica a preventiva, na grande maioria dos casos, como regra. Principalmente em casos de tráfico de drogas e roubo. E aí temos um problema. Durante todo o ano de 2020, essa prática foi questionada. Acabamos entrando com pedidos para tentar fazer com que o Judiciário olhasse novamente para as decisões, uma por uma. 

Dentro da minha experiência, as iniciativas para reduzir o encarceramento foram pouco efetivas. Nós não tivemos uma ampla conscientização do Judiciário nesse sentido. Lógico que tivemos casos isolados, mas não uma conscientização ampla. No Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), nós fizemos um mutirão e a efetividade das solturas ou domiciliares não foi grande. Foi tudo muito pontual. Há um descompasso entre o sistema penal, entre as previsões legais, e a forma como o Judiciário aplica essas previsões. Muitos ministros do Superior Tribunal de Justiça estão empenhados em fazer com que esse descompasso seja menor. Vemos isso com bastante ênfase. Mas a eficácia é muito baixa. 

ConJur — Esse descompasso é maior em São Paulo?
Marina Pinhão Coelho Araújo —
Não conheço profundamente todos os tribunais estaduais. O que posso dizer em relação a São Paulo é que pesquisas feitas pela FGV do Rio de Janeiro mostram que há, sim, uma tendência mais conservadora em São Paulo. O Tribunal de Justiça de SP, pelo tamanho que tem, poderia trabalhar para reduzir esse descompasso. Se fizesse isso, nós teríamos uma melhora bem importante em todo o sistema nacional, porque São Paulo tem um volume grande de ações e de presos preventivos. 

ConJur — O IBCCrim soltou em 2020 uma nota técnica criticando alguns pontos da lei "anticrime". Também vê aspectos negativos na norma? 
Marina Pinhão Coelho Araújo —
Os aspectos processuais são positivos, em sua maioria. Isso porque eles instituíram o juiz de garantias, que está suspenso, mas que temos esperança de que será implementado no Brasil. Por outro lado, temos no aspecto penal uma lei muito encarceradora, o que faz pouco sentido, se considerarmos a história penal recente no Brasil. Tivemos o endurecimento das penas a partir da lei de crimes hediondos e não houve nenhuma redução no índice de crimes. Já aprendemos que, na prática, não adianta aumentar o tempo de pena em regime fechado. Mas é isso que a lei "anticrime" trouxe. Ela vai na contramão das evidências empíricas. É uma legislação que continua prendendo por muito tempo pessoas que estão em uma condição social vulnerável. 

Assim, o Direito Penal, por meio dessa lei, vai continuar aprofundado as desigualdades sociais. Não ajudou em nada a melhorar o cenário brasileiro. Também não irá diminuir a violência, que só cai quando você reduz a vulnerabilidade social. O Direito Penal no Brasil tem viés ideológico, a depender do poder que está construindo esse Direito Penal. A lei "anticrime", na esfera penal, vem para aprofundar todos esses problemas que mencionei. 

ConJur — A senhora mencionou o juiz das garantias. Por que acredita que é uma iniciativa bem-vinda?
Marina Pinhão Coelho Araújo —
O processo penal tem dois momentos muito relevantes. O primeiro é o da investigação, quando eu estou apurando um caso: vai ter busca e apreensão, quebra de sigilo bancário, telefônico etc. Quando o magistrado avalia tudo isso, ele já faz um juízo valorativo em relação aos fatos. Ele lida com as hipóteses criadas pela polícia e pelo Ministério Público e vai investigando e autorizando medidas em cima dessas hipóteses. Com o juiz de garantias, outro magistrado vai atuar, em um segundo momento, a partir da denúncia. Não acho que o juiz não tenha a capacidade de fazer essa divisão. Ele tem. Mas vai ajudar muito se o próprio sistema trouxer essa diferenciação. 

Se eu tiver uma regra já colocada no sistema, tenho a melhoria do processo, uma melhoria da legitimidade das decisões. E é isso que vejo na norma. Há essa proposta faz tempo. Não é uma novidade. Ainda assim estão gerando uma situação política em cima da implementação dessa melhoria técnica, o que vejo como um grande desserviço para a Justiça Penal brasileira. O juiz de garantias pode melhorar muito a prestação jurisdicional no Brasil. E eu não estou dizendo que o Judiciário não faça um bom trabalho, mas que pode melhorar. 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!