Embargos Culturais

O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

7 de fevereiro de 2021, 8h00

O escritor norte-americano Scott Fitzgerald (1896-1940) fixou em seus livros um padrão geral do que foi a vida nos Estados Unidos nos anos 1920. Eram os anos loucos da era do jazz. Ao lado de Sinclair Lewis (Babbit), de John dos Passos (Manhattan Transfer), e de algum modo de Ernest Hemingway (O sol também se levanta, que é ambientado em Paris), Fitzgerald pertence a um grupo de escritores que anunciava as contradições do sonho norte-americano.

Spacca
Lendo-os hoje, com o benefício do retrospecto, percebemos os dramas que relataram com a grande crise do capitalismo, sintetizada na quinta-feira negra, 24 de outubro de 1929. Foi o "crash" da Bolsa de Nova York. As peças se encaixam. A literatura parece anunciar a crise econômica, como também uma crise de valores.

Harold Bloom, talvez o mais importante crítico norte-americano, aproximava a obra de Scott Fitzgerald ao conceito de "capabilidade negativa", enunciado por John Keats, último dos poetas românticos da Inglaterra, que morreu aos 25 anos, e que influenciou os românticos brasileiros que estudaram em São Paulo no século 19.

A "capabilidade negativa" consiste na possibilidade de contemplação do mundo sem que tentemos acomodar as contradições da vida a concepções racionais de existência. Para Bloom, a estética de Scott Fitzgerald é uma retomada da proposta de Keats. Scott Fitzgerald revelava prontidão para com atitudes românticas; o que vale é o caminho, e não a chegada. Sabemos, de antemão, que nunca chegaremos onde queremos, ainda que essa constatação impulsione nossas atitudes.

O Grande Gatsby, publicado em 1925, ilustra certa sensação de engano, que Scott Fitzgerald assumia como inerente ao sonho norte-americano. Jay Gatsby (James Gatz) é o milionário, com 32 anos, cuja fortuna não se explica com clareza. E também não se explica com rodeios e perífrases. Não se explica de jeito algum. É inexplicável. Ao longo da narrativa está em jogo a integridade do personagem central. Gatsby, afinal, é íntegro ou não?

Assassino para alguns, espião para outros, texano para alguns outros, não se sabe de onde vem. Não se sabe se seus pais seriam vivos, ou mortos. Dizia-se educado em Oxford, e tinha mesmo uma fotografia com colegas que se pareciam com esses esquisitos estudantes ingleses da altíssima classe. Dava festas que faziam com que sua mansão mais parecesse um parque de diversão, nas palavras do narrador, Nick Carraway, o vizinho solitário.

Havia indícios de que Gatsby esteve na guerra. Ostentava medalhas e um uniforme militar, que o leitor também não sabe se reais ou falsificados. Há momentos nos quais se pensa que Gatsby era uma fraude. Sabe-se com certeza que Gatsby era um perdulário. Exagerava no número de carros, de roupas, de joias. Possuía uma coleção de camisas de seda. Carregava a chamada lógica do novo rico, no sentido de que se deve perguntar de que vale a riqueza se não se pode ostentá-la.

O leitor descobre que Gatsby era da Dakota do Norte. Seus pais eram pobres agricultores. Pela faculdade, em Minnesota, ficou por apenas duas semanas. Trabalhou para um milionário com quem viajou o mundo. O resto é mistério. Gatsby é obcecado por Daysi, uma mulher vazia, frívola, inconstante, ingênua, mas ao mesmo tempo má, narcisista e oportunista. Tem-se a impressão de que Gatsby passou a vida fantasiando sobre Daisy. Percebe, ao fim, que ela é apenas um fragmento de sua memória. Daisy é o típico exemplo da extravagante boneca que parece não ter sentimentos, que não os do momento. Para o narrador, até a voz de Daisy lembrava dinheiro.

O narrador, Nick, era primo de Daisy. Por interesse, Daisy casou-se com Tom Buchanan, filho de um milionário de Chicago. Tom era rico, ostentava também. Era um racista assumido, para quem arte, ciência e cultura eram atributos de povos nórdicos. Tom era amante de Myrtle Wilson, uma doidivanas que era casada com um homem simples, que cuidava de um posto de gasolina. Seu marido, mr. Wilson, é fundamental na conclusão da narrativa.

Gatsby e Daisy tem um passado comum. Porque garotas ricas somente se casam com rapazes ricos (na voz de Daisy), a antiheroína afastou-se de Gatsby. A partir de então, toda a trajetória desse trágico carácter consiste em encontrar, seduzir e de algum modo comprar o afeto de Daisy. A sociedade norte-americana do momento é objetivamente aferida por relações de dinheiro. Tudo se compra. Tudo se vende. Inclusive afeto. Gatsby e Dasy tornam-se amantes. Seduzida pela fortuna de Gatsby, que parece bem maior do que a de seu marido, essa fútil mulher subitamente se vê apaixonada por Gatsby. Encontram-se furtivamente. Gatsby ingenuamente ainda acredita na seriedade de Daisy. Daisy, no entanto, não avança.

Gatsby e Tom discutem. Tom, hipócrita ao limite, defende valores de casamento e da família, insistindo na percepção racista que tinha de mundo. O desfecho é assombroso, lembrando inclusive um jogo de erros. O Grande Gatsby é livro de constatação da decadência do sonho norte-americano. Scott Fitzgerald constrói um personagem que na infância pobre acreditava nos valores relativos à economia (queria economizar três dólares por semana) e à educação (ainda menino fazia planos para ler e melhor compreender o mundo, como chaves para o triunfo).

O vazio moral de uma civilização atolada no consumo e no desejo incontido de tudo possuir, indicam que o materialismo norte-americano, elevado à condição de religião civil, exagerava nas promessas, que não cumpria. Gatsby reinventou seu passado, criou uma imagem de si que não correspondia à realidade, alterando o sotaque (soando como um aristocrata inglês, chamando amigos de "old sport", como fazem os aristocratas) e fixando a mulher amada em um altar, adorando-a como uma deusa secular. Scott Fitzgerald explorou o conflito entre ideal e real, alertando o leitor de que o sonho americano era quimera que se transformava em pesadelo.

Fitzgerald morreu decadente, alcoolizado e desiludido. Gatsby, seu personagem icônico, por outro lado, já estava morto desde quando começou a acreditar em valores que só existiam no contexto de uma fortíssima propaganda, que afetou sua percepção realista de mundo. Há uma tradução belíssima para o português, assinada por Roberto Muggiati.

Da narrativa tiraram-se duas belíssimas versões do cinema, a primeira com Robert Redford (1974) e a última com Leonardo di Caprio (2013). Tanto no livro quanto nos filmes mencionados resgata-se o glamour dos doidos anos 1920. Uma inquebrantável fé no materialismo era utilizada como instrumento para alcance dos ideais românticos. Quando o capitalismo se desintegrou, provocando a descrença no materialismo, perdeu-se também a inocência dos ideais românticos. Essa perda de inocência é a essência desse livro fundamental. A perda da inocência é um ponto existencial de inflexão no qual percebemos que não podemos tudo, que tudo tem sua hora, que os tempos mudam, e que nós mudamos também.

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