Opinião

O impacto da definição do Tema 1.099 no crédito das operações interestaduais

Autor

  • Felipe Mano Monteiro do Paço

    é advogado no escritório Alves e de Paula Advogados mestrando em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa e pós-graduando em Direito Tributário Lato Sensu pela Fundação Getúlio Vargas.

6 de fevereiro de 2021, 17h25

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pôs fim a uma controvérsia que se arrastava havia anos nos tribunais administrativos e judiciais de todo o país: a (não) incidência do ICMS nas operações interestaduais envolvendo estabelecimentos de um mesmo contribuinte.

Nessa oportunidade, o STF, reafirmando o entendimento do STJ [1], fixou a tese de que não incide ICMS no deslocamento interestadual de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte [2].

Ocorre que os Estados, ignorando totalmente o posicionamento já adotado pelo STJ, e escorados pelo disposto no artigo 12, inciso I, da Lei Complementar n.º 87/1996 [3] — sempre replicado nos regulamentos do ICMS dos Estados —, impingiam o entendimento de que o ICMS era, sim, devido nas operações interestaduais de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Vale dizer que a exigência do ICMS, nesses casos, era endossada ainda pela redação do artigo 13 da mesma lei, que estabelecia, no seu parágrafo 4º, como a base de cálculo do ICMS deveria ser formada, a saber:

"1) no caso de empresas comerciais, o valor da entrada mais recente;
2) na hipótese de empresas industriais, valor do custo da mercadoria; ou 3) para mercadorias não industrializadas, preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente".

Nesse contexto, a respeito da não incidência do ICMS nas operações dentro do mesmo Estado entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, pode-se dizer que, para fins de arrecadação, não haveria grandes problemas por se tratar de um mesmo sujeito ativo, uma vez que o débito e o crédito da operação se davam para um único ente.

Contudo, quando esse mesmo cenário é replicado para as operações interestaduais e, portanto, envolvendo dois ou mais Estados distintos, a regra do débito e crédito passa a gerar impacto na arrecadação de um ou de outro.

Nesse caso, imagine a seguinte situação: o crédito de ICMS de um Estado A, advindo dos insumos adquiridos pela empresa X, em tese, pode ser usado nas operações de saída de mercadorias do centro de distribuição da empresa X, localizado no Estado B. Com isso, o Estado B será prejudicado pelo fato de que será obrigado a garantir um crédito de ICMS nas operações de saída internas que advém do recolhimento feito para outro Estado.

Assim, com a não incidência nas operações em questão, dois são os problemas que podem surgir para o contribuinte:

"O Estado de origem pode exigir, com base no artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, alínea 'b', da Constituição Federal [4], o estorno do crédito da operação anterior na hipótese de não incidência/isenção da operação posterior — justamente a hipótese que acontecerá nessas transferências em que não haverá a incidência do ICMS, de acordo com o entendimento do STF;
O Estado de destino poderá não reconhecer o crédito da operação anterior, com base no mesmo artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, alínea 'b', da Constituição Federal, por entender que a operação imediatamente anterior não é tributada — podendo supor a quebra da cadeia do ICMS —, e exigir o ICMS integral (sem crédito) nas operações de saída internas de mercadorias".

Esses posicionamentos, que muito provavelmente darão azo à lavratura de diversos autos de infração nos próximos anos, podem encontrar uma solução que dependerá de uma interpretação embasada no julgamento do Tema 1.099, pelo STF, e no disposto no artigo 19 e no §1º do artigo 20, ambos da Lei Complementar nº 87/1996.

No artigo 19, há a previsão de que o imposto é não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.

O segundo, por sua vez, veda a tomada de "créditos de operações" não tributadas/isentas — o que corroboraria ao provável entendimento dos Fiscos estaduais, juntamente com o artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, alínea "b".

Mas, para atrair a aplicação desse último dispositivo, surge a seguinte questão: a transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte possui natureza jurídica de operação ou de mera transferência de mercadorias?

Essa pergunta foi respondida, com clareza, no julgamento do ARE 1.255.885 pelo STF.

A jurisprudência do STF, que foi repisada no acórdão que definiu o Tema nº 1.099, é firme no sentido de que o mero deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos de propriedade do mesmo contribuinte não configura circulação de mercadoria, descaracterizando-se o fato gerador de ICMS e sendo irrelevante que a origem e o destino estejam em jurisdições territoriais distintas.

Por óbvio, reunindo o que dispõe a jurisprudência com o que estabelece os dispositivos supracitados, não haveria como interpretar que o "mero deslocamento de mercadoria" terá natureza de "operação" para fins de incidência do ICMS.

Sendo assim, impõe-se aos Estados a regra do artigo 19 da Lei Complementar nº 87/96: o imposto será não cumulativo, devendo ser compensado no que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado, ainda nos casos em que tenha havido transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte.

 


[1] Súmula 166/STJ: "Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte".

[2] Esse entendimento havia sido firmado pelo STJ quando da edição da Súmula 166 e acompanha o entendimento fixado em diversos outros julgamentos do próprio STF, a exemplo do esposado no RE nº 1.039.439/RS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 7/2/18; ARE nº 1.063.312/RS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Edson Fachin, DJe de 19/12/17; ARE nº 676.035/PB-AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Alexandre de Moraes, DJe de 31/8/17; ARE nº 764.196/MGAgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Roberto Barroso, DJe de 7/6/16; ARE nº 756.636/RS-AgR, Primeira Turma, de minha relatoria, DJe de 30/5/14; RE nº 422.051/MG-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Eros Grau, DJe de 25/6/10; RE nº 267.599/MG-AgR, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe de 11/12/09.

[3] "Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular; (…)".

[4] "Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores" (grifo do autor).

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