Opinião

O recurso contra decisões contrárias às provas dos autos no júri (e uma percepção)

Autor

  • Cássio Rebouças

    é advogado criminalista sócio do escritório Peter Filho Sodré Rebouças & Sardenberg - Advocacia especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) em convênio com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) membro da Comissão de Advocacia Criminal e Política Penitenciária da OAB/ES associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE).

5 de fevereiro de 2021, 19h18

O tema da soberania dos julgamentos do Tribunal do Júri voltou à tona com a proximidade do julgamento, pelo Plenário do STF, do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.225.185, que trata da possibilidade de questionamento de júri que decide de forma contrária ao conjunto probatório. Nesta ConJur, juristas se posicionaram contrários à possibilidade de recurso contra decisões absolutórias, outros a favor desta possibilidade e alguns contra a própria existência de decisão não fundamentada dos jurados.

Nesse embate de posições, há um detalhe que merece maior atenção. Vejamos.

Os jurados podem absolver o(s) acusado(s) de três formas (artigo 483, CPP): 1) negando a materialidade; 2) negando a autoria; ou 3) reconhecendo que houve materialidade e autoria, e absolvendo o acusado na resposta ao quesito genérico (artigo 483, §2º: "O jurado absolve o acusado?").

O artigo 593, CPP, prevê que "caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: […] III – das decisões do Tribunal do Júri, quando: […] d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos".

É possível que um tribunal dê provimento a uma apelação por entender que a decisão é manifestamente contrária à prova dos autos em algumas hipóteses, mas apenas gera controvérsia quando a absolvição se dá com a resposta ao terceiro quesito (genérico). Mas a previsão da apelação acusatória com base no artigo 593, III, "d", não se esgota sem essa possibilidade.

A discussão, assim, se limita às situações em que a absolvição se dá com base no quesito genérico. Mas nas duas primeiras hipóteses (materialidade e autoria) é perfeitamente possível que haja recurso (e provimento) contra uma absolvição "manifestamente contrária à prova dos autos".

Num primeiro exemplo, suponha-se um caso em que haja um corpo de vítima baleado com dois tiros na cabeça (para excluir a possibilidade de suicídio). Se os jurados votarem "não" ao primeiro quesito, da materialidade, negando a existência de um crime, seria esta uma decisão absolutória "manifestamente contrária à prova dos autos", que poderia/deveria ser reformada pelo tribunal (mandando a novo júri, é claro).

Num segundo exemplo, pensemos no caso anterior, com um acréscimo de informação: há um corpo com dois tiros na cabeça e um vídeo no qual se identifica facilmente o acusado efetuando os disparos. Se os jurados votarem "não" ao segundo quesito, reconhecendo a materialidade, mas negando a autoria, trata-se também de absolvição "manifestamente contrária à prova dos autos", também merecendo provimento uma apelação que a questione.

Mas um novo acréscimo de informação altera a conclusão sobre a possibilidade do recurso fundado na alínea "d". Além do corpo, dos tiros e do vídeo, há confissão e a defesa sustenta um pedido de clemência ou até a malfadada "legítima defesa da honra" (ou qualquer outra tese buscando absolver). Nesse caso, se os jurados reconhecem a materialidade e a autoria, mas absolvem o acusado, apenas nessa hipótese não se pode aceitar que haja apelo acusatório com base na alínea "d", pois aí, sim, haveria clara violação da soberania do júri, que, no sistema atual, permite que os jurados decidam com maior liberdade que um juiz togado.

O cônjuge traído ("legítima defesa da honra"), o policial ou comerciante que executa criminoso contumaz de uma localidade, o crime praticado há muito tempo por acusado primário que seguiu a vida e não faz mais jus a um encarceramento, a eutanásia de doente terminal, o pai que mata o estuprador da filha e outros tantos. Em nenhuma dessas situações um juiz togado teria a opção (se trata de realmente de "opção", de simples escolha? Essa é uma outra discussão) de absolver. Mas ao júri é dada essa possibilidade.

Se isso é positivo ou negativo, há inúmeros (ótimos) argumentos para ambos os lados, porém a análise do atual ordenamento só pode levar a uma conclusão: o júri pode decidir dessa forma e da absolvição fundada na resposta positiva ao quesito do inciso III do artigo 483 não cabe recurso da acusação. Mas resta ainda possível esse recurso das decisões que negam materialidade e/ou autoria.

No mais, o júri é cláusula pétrea, nos cabendo aceitá-lo como é ou alterá-lo, não sendo uma possibilidade a sua extinção, por mais fortes que sejam os fundamentos contrários ao julgamento popular.

Por fim, muitos ferrenhos defensores do júri sustentam, com base em suas experiências e vivências, que o tribunal popular julga "melhor" ou de forma mais "justa" e (demasiado, talvez) "humana" que um magistrado togado. Tenho uma percepção semelhante, mas penso que essa característica do júri se deve principalmente ao rito, e não às características dos julgadores. Ao fato de os jurados serem obrigados e prestarem atenção, por horas — sem celulares, telefones tocando, assessores e quaisquer outras distrações —, àquilo que acusação e defesa têm a sustentar. O volume de trabalho do Judiciário hoje é gigantesco, mas me parece que a percepção seria a mesma se pudéssemos fazer o mesmo com um juiz togado.

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    é advogado criminalista, sócio do escritório Peter Filho, Sodré, Rebouças & Sardenberg - Advocacia, especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) em convênio com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), membro da Comissão de Advocacia Criminal e Política Penitenciária da OAB/ES, associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE).

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