Opinião

Atividade de infraestrutura: comentários ao livro de Augusto Neves Dal Pozzo

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4 de fevereiro de 2021, 10h35

O ano de 2021 começou com a continuidade da pandemia da Covid-19. Se ao final de 2020 todos comemoravam a diminuição da contaminação e já acreditavam no controle e superação da pandemia, tudo se frustrou no início deste ano com uma nova cepa. Houve o aumento vertiginoso da contaminação e de óbitos, seguido da trágica morte de dezenas de pessoas em Manaus por falta de oxigênios nos hospitais. O Estado brasileiro vivencia uma acirrada disputa política em torno da aquisição de vacinas. Em que pese tudo isso, mesmo que superado o problema da saúde, vivenciaremos, por certo, uma profunda crise econômica.

Em geral, momentos de crise geram avanços científicos. Na ciência do Direito Administrativo, no segundo semestre de 2020, mais precisamente em 2 de setembro, Augusto Neves Dal Pozzo defendeu, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sua tese de doutoramento. Tive a honra de participar da banca examinadora, que aprovou a tese com a nota máxima. O trabalho deu origem ao livro "Direito Administrativo da Infraestrutura", recentemente publicado pela Editora Contracorrente. Nesses tempos sombrios, o livro me trouxe, confesso, um pouco de felicidade. Tentarei explicar brevemente o porquê.

Antes, porém, uma breve referência ao autor. Augusto é jurista consagrado há tempos. Sócio do Dal Pozzo Advogados, respeitada banca de advocacia do Direito Público, é professor da PUC-SP e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos da Infraestrutura (Ibeji). Tenho a honra de dividir com ele vários projetos acadêmicos: coordenamos a Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura (RDAI), publicada pela RT, a Revista Brasileira de Infraestrutura (RBINF) e a Revista Internacional de Direito Público (RIDP), publicadas pela Fórum. Augusto organizou várias obras, e publicou muitos estudos. Já reconhecido pela comunidade jurídica, aguardava-se com ansiedade a publicação de sua tese de doutoramento. Poderia buscar uma mera formalização com a obtenção do título. Pelo que registrarei aqui, após anos de pesquisa sobre o tema, foi muito além.

Em 2002, Celso Antônio Bandeira de Mello, na 14ª edição de seu "Curso de Direito Administrativo", passou a sustentar que os serviços públicos são atividades necessariamente de fruição singular (uti singuli). Pouco teorizou sobre a restrição e menos ainda sobre as atividades uti universi. Muitos, e me incluo entre eles, adotaram a restrição defendida pelo ínclito professor. Na minha opinião, trata-se, mais do que uma proposta doutrinária, de uma exigência constitucional. Serviços públicos são, de fato, por definição, uti singuli. Surgiu, então, um problema teórico óbvio: o que são as atividades estatais uti universi? Qual é o seu regime jurídico? Durante quase 20 anos essa lacuna subsistiu. Pois bem, Augusto Dal Pozzo preencheu a lacuna com pena de ouro.

Seu livro não é apenas inovador, é conceitualmente sofisticado. O tema é desenvolvido num perfeito encadeamento lógico das ideias. Inicia com o exame do conceito de "infraestrutura". Nos últimos anos, o Direito Administrativo vem sofrendo um denso ataque. Sem meias palavras, vem sendo violentamente destruído. Nega-se um "regime geral", negam-se "princípios estruturantes". Defendem-se regimes setoriais totalmente desvinculados de uma base conceitual geral. Muitas vezes, essa defesa é feita por advogados, em prol de certos interesses. Não havendo uma base conceitual a ser seguida, não havendo um regime geral, tudo é possível: constrói-se a teoria para satisfazer o cliente do momento. Alguns, justiça seja feita, de boa-fé, consideram que isso facilita novos investimentos e o desenvolvimento nacional. Infelizmente, o único resultado é a facilitação da corrupção. É nesse contexto que surgiram muitos trabalhos sobre a infraestrutura, em que cada setor seria submetido a um regime jurídico autônomo. Daí o Direito da Infraestrutura, ou o Direito do respectivo setor, por exemplo, o Direito das Telecomunicações. Augusto Neves Dal Pozzo é sócio de um dos mais prestigiados escritórios de advocacia da área de infraestrutura. Não seria de se espantar se optasse por se filiar a essa doutrina negacionista.

Provou, porém, que é possível separar a advocacia da ciência. Seguiu caminho contrário. Observou que não é possível um estudo dos setores de telecomunicação, rodovias, portos etc. apartado do regime jurídico administrativo. Não existe Direito da Infraestrutura, mas Direito Administrativo da Infraestrutura. Este não possui, na corretíssima visão do autor, autonomia científica, nem ao menos didática. Direito da Infraestrutura é, antes de tudo, Direito Administrativo. Essa conclusão já valeria a leitura do livro, mas é apenas o começo.

Vivenciamos atualmente um profundo conflito ideológico e político. Nos últimos anos, ocorreu algo impensável no Brasil das décadas anteriores: amigos e familiares brigaram por política. Uns dizendo-se de "esquerda", outros de "direita". Com maestria ímpar, o autor demonstra que o tema da infraestrutura está fora desse debate. Tanto para o "Estado mínimo" como para o "Estado social", não há desenvolvimento sem infraestrutura. E esse resumo, por mais spoilers que apresente, fica muito aquém do que consta da obra: uma sofisticada teoria do desenvolvimento, considerando-o um direito fundamental de terceira dimensão ou geração. O autor, professor da Faculdade de Direito da PUC-SP, não contraria o método que a consagrou: sendo um estudo jurídico, volta-se ao Direito positivado, com o intuito de compreender o regime jurídico vigente. Seu enfoque analítico não menoscaba a perspectiva normativista.

O passo seguinte é o exame das atividades administrativas — sempre com rigor conceitual — e a defesa da autonomia da "atividade administrativa de infraestrutura". Assim, como há a atividade de prestação de serviços públicos, do exercício do poder de polícia, de sanção administrativa, de desapropriação, há também a atividade de prover, manter e operar ativos públicos de modo a oferecer benefícios à coletividade, tendo em vista a promoção do desenvolvimento nacional. O conceito é esmiuçado em seus elementos subjetivo, objetivo, teleológico e formal. Quem está envolvido com a ciência do Direito sabe que, no Brasil, nos últimos anos, são cada vez mais comuns teses que em nada inovam. Nesse cenário, a inovação conceitual proposta por Augusto Dal Pozzo chega a ser emocionante: a gestão de infraestrutura só configura atividade administrativa se realizada pela Administração Pública ou por quem lhe faça as vezes no exercício da função administrativa; trata-se do planejamento, provisão e manutenção de "ativos públicos". Nesse ponto, o autor diferencia "ativo público" de "obra pública" e de "bem público". A coerência conceitual é tão manifesta que o leitor chega a receber a proposta como óbvia evidência científica.

Ainda sob a perspectiva objetiva, o autor distingue o "usuário de serviço público" do "beneficiário de infraestrutura". Outra diferenciação conceitual que soa, após enunciada pelo autor, como evidente. Se o usuário do serviço tem direito subjetivo à prestação, após sua admissão ao serviço, de modo que é indiscutível a possibilidade de uma ação individual para obtê-la em juízo, tudo é diferente em relação ao beneficiário da infraestrutura. Não há que se falar em admissão; o planejamento, a manutenção e a operação de ativos não se configuram nos mesmos termos, não podem ser simplesmente defendidos em uma ação individual.

Numa precisa vinculação com o raciocínio até então estabelecido, a atividade administrativa de infraestrutura visa, por definição, ao desenvolvimento nacional, com calço expresso na Constituição de 1988. Por fim, a atividade é juridicamente regida, por princípios e regras, tema retomado no capítulo final. Antes dele, porém, o autor examina o exercício da atividade de infraestrutura pelos particulares. Paralelamente à concessão de serviço público e à concessão de obra pública, defende a possibilidade de "concessão de infraestrutura". O assunto exigia, de fato, uma explicação mais coerente: a manutenção de uma rodovia não é propriamente nem obra pública, nem serviço público. O tema, até então mal resolvido, recebeu solução ótima: trata-se de concessão de infraestrutura. A distinção é pertinente a cada um dos setores de infraestrutura: uma coisa é o serviço de transporte ferroviário, outra coisa é a provisão, operação e manutenção das ferrovias.

O trabalho termina com o exame dos princípios específicos da atividade administrativa de infraestrutura. O autor não incide num erro comum, cometido por muitos dos maiores administrativistas. Ao tratar do tema não invoca os princípios comuns da atividade administrativa. Como exemplo, é bastante comum a invocação do "princípio da motivação" para se referir ao serviço público. O erro é evidente: sendo atividade administrativa, é regida pelos princípios estruturantes do Direito Administrativo e, pois, das atividades administrativas em geral. O autor busca, com maestria, os princípios "específicos", que dão "autonomia" à "atividade de infraestrutura". Uma ressalva seria o primeiro princípio discriminado: a indisponibilidade, sendo atividade administrativa, é, por definição, indisponível. Mas a invocação tem sua razão de ser: enfatizar o dever imposto aos governantes de concretizar a atividade. Diante da realidade brasileira, de mísero investimento governamental, a ênfase é plenamente justificada.

Sempre com rigor conceitual invejável, após apartá-los dos princípios específicos do serviço público, Dal Pozzo examina dez princípios. Vou discriminá-los aqui apenas com o intuito de provocar todos a lerem a obra: princípio da indisponibilidade da atividade de infraestrutura, princípio da indivisibilidade, da inespecificidade, da intergeracionalidade, da prospectividade, da multilateralidade, do planejamento estratégico, da setorialidade, da sustentabilidade e da inovação tecnológica. Após o respectivo exame, tenho absoluta convicção de que é impossível — ressalvados os efeitos da cegueira ideológica — não se convencer da autonomia dessa atividade. Se algum deles já recebeu amplo tratamento doutrinário, como a sustentabilidade, outros foram pouco explorados. Augusto não apenas inova, mas dá origem a todo um capítulo do direito administrativo. Qualquer curso ou manual de Direito administrativo passa a ser incompleto se não dedicar espaço à referida atividade. Fincados os alicerces estruturais do tema, creio que sobrevirão novos estudos: monografias específicas sobre cada um dos aspectos do regime jurídico pioneiramente apresentado.

Algum desavisado poderá creditar alguma dessas afirmações à amizade entre mim e o autor. Tenho certeza de que esse erro será afastado pela isenta leitura da obra. Dediquei boa parte da minha vida ao estudo do Direito Administrativo. Creio que não erro ao reconhecer um marcante avanço conceitual. Muito além do sucesso acadêmico, porém, acredito que a obra é meritosa por outros motivos. O Estado brasileiro ainda é considerado "subdesenvolvido" quando comparado a outras potências. Os objetivos da erradicação da pobreza e da marginalização, conclamados no artigo 3º de nossa Constituição, estão muito longe de serem alcançados. Nossa desigualdade social e regional é perversa. Pode parecer algo visionário, mas confesso, sem qualquer constrangimento, minha crença, valendo-me da expressão de Konrad Hesse, na força normativa do Direito.

Se o momento atual, como lembrei no início, é de desespero, a obra de Augusto gera, sim, uma alegria. Só o desenvolvimento nacional superará a pobreza, a marginalização e a desigualdade. Independentemente da ideologia, não haverá desenvolvimento fora do Direito. Por isso, a elucidação do regime jurídico da atividade administrativa de infraestrutura é um passo decisivo. No ano em que dezenas de pessoas morreram por falta de oxigênio nos hospitais, a importância da infraestrutura torna-se óbvia para todos. Estou certo de que quando iniciou o estudo do tema, o autor nem imaginava os tempos vindouros. Em que pese a imediatidade, não podemos esquecer: se a infraestrutura é hoje fundamental para manutenção do combate à Covid, será depois fundamental para a superação da crise econômica. Daí minha conclusão: a obra é, sim, um sopro de esperança num momento profundamente catastrófico.

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