Opinião

Serviços sociais autônomos: dispensa de recolhimento do depósito recursal

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4 de fevereiro de 2021, 12h11

Os serviços sociais autônomos (Sistema S) surgem na década de 1940, em face da ineficiência do Estado na formação de profissionais qualificados e da carência de políticas de lazer, de cultura e de saúde para os trabalhadores e seus familiares. Dessa forma, já na sua gênese, a concreção de aspectos da seguridade social em função da sua concepção constitucional mais atual de promoção de ações destinadas a assegurar os direitos relativos à assistência social do trabalhador (artigo 194, caput, da CF/88) e, assim, de formar e de desenvolver políticas de promoção da integração ao mercado de trabalho (artigo 203, inciso III, da CF/88), por meio de desenvolvimento do ensino profissional e de geração de empregos.

Assim sendo, todas as entidades dos serviços sociais autônomos federais, criadas a partir da década de 40 e existente até os dias atuais, possuem, em sua formação, a necessidade de prestar serviços sociais relativos à educação, à saúde, à assistência social, ao ensino profissionalizante, à alimentação, à habitação, ao lazer, ao bem-estar social, à divulgação de novas técnicas e tecnologias, ao ensino superior, ao vestuário, à cultura, à geração de empregos (Senai, Sesi, Sesc, Senac, Sebrae, ABDI e Apex-Brasil), à promoção do turismo (Embratur), ao ensino rural (Senar), ao ensino cooperativo, ao acesso às cooperativas (Sescoop), à promoção do transporte rodoviário (Sest e Senat), à assistência médica, ao desenvolvimento de pesquisas no campo da saúde (Rede Sarah Kubitschek), à atenção primária à saúde de famílias em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade, à atenção primária no SUS (Adaps).

Por certo, o Sistema S têm na sua história a concretização direta de três dos quatro objetivos constitucionais fundamentais da República Federativa do Brasil, buscando-se construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso I, da CF), o desenvolvimento nacional (artigo 3º, inciso II, da CF) e a erradicação da pobreza e da marginalização com a redução das desigualdades sociais (artigo 3º, inciso III, da CF). Portanto, o serviço social autônomo é uma pessoa jurídica de direito privado sem finalidade lucrativa, destinada à promoção dos direitos sociais inscritos no artigo 6º da Constituição Federal, criada por lei que preveja delimitação de sua atuação e de obtenção de recursos, detentora de participação equitativa dos setores sociais em seus órgãos de direção, com poder de autorregulamentação e autogestão de recursos e submetido para controle finalístico à fiscalização do Tribunal de Contas da União.

Nesse rumo, as entidades do denominado Sistema S, por serem filantrópicas, por força de lei, deve ser dispensadas do recolhimento dos depósitos recursais na Justiça do Trabalho, obrigação imposta aos empregadores em geral pelo artigo 899, §1°, da CLT, mas, que, conforme as últimas alterações legislativas de 2017, admite exceções. Está equivocado, por exemplo, o procedimento adotado por muitas entidades de recolher pela metade o valor dos depósitos recursais.

Nesse sentido, a Lei 13.467/2017 modificou a redação do artigo 899, da CLT, para incluir, dentre outros, os parágrafos 9° e 10 no dispositivo, e têm a seguinte redação respectivamente: "O valor do depósito recursal será reduzido pela metade para entidades sem fins lucrativos, empregadores domésticos, microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte. São isentos do depósito recursal os beneficiários da justiça gratuita, as entidades filantrópicas e as empresas em recuperação judicial".

No ponto é importante esclarecer as diferenças, para os fins deste artigo, entre entidades "sem fins lucrativos" e "filantrópicas", sendo que estas são espécies daquelas, diferenciando-se, sobretudo pela necessidade de obtenção do denominado Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas), nos termos da Lei Federal 12.101/2009. Verifica-se, assim, que a caracterização de uma entidade como "filantrópica" para os fins da lei pode ocorrer de duas formas: 1) pela vontade da entidade, que é livre para se submeter à exigências da Lei 12.101/2009 e assim, por exemplo, obter a contrapartida da imunidade tributária; ou 2) por força de lei, como ocorre com as entidades do Sistema S, cujas leis de criação ou autorização prescrevem as atividades de interesse social vinculados a fins assistenciais e educacionais.

Ainda sobre o ponto, destaque-se que não se aplica aos serviços sociais autônomos o julgamento do Recurso Extraordinário nº 566.622/RS (Tema 32), que determinou que, por lei ordinária, a União institua procedimentos e formalidades administrativas relativas à concessão da imunidade, tal como o Cebas. Primeiro, porque os serviços sociais autônomos têm lei específica e especial de criação. Segundo, pois não existe necessidade de certificar algo que já consta atestado expressamente e taxativamente na lei de criação do serviço social autônomo. Terceiro, porquanto os serviços sociais autônomos têm como finalidade a assistência social e isso é a razão legal da sua existência. Quarto, porque existe necessidade de que se faça prova daquilo que não se sabe, daquilo que lhes é externo, mas não daquilo que é interno e constitui a natureza e a razão de ser do serviço social autônomo.

Por isso, às entidades sem fins lucrativos, em geral, ao contrário dos serviços sociais autônomos, aplica-se o Recurso Extraordinário nº 566.622/RS e a exigência do Cebas, pois inexiste comprovação prévia de que possuem finalidade de assistência social, servindo o documento infralegal procedimental justamente para comprovar tal condição. Ainda sobre o tema, veja-se o Parecer vinculante nº 169 da Advocacia-Geral da União, que tratou do tema do Cebas para os serviços sociais autônomos, assim ementado: "A criação, por lei, de entidade filantrópica supre o certificado ou registro que ateste tal finalidade, e isenta a entidade das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 da Lei n. 8.112, de 24.7.1991. A prática da filantropia pelas demais entidades que a elas se dedicam, ainda que tal objetivo figure nos seus atos institutivos, é algo que se lhes adiciona, é algo que lhes é externo, tanto que pode e, por vezes, acontece de o título servir-lhes apenas de fachada. Diferentemente é o que sucede com a nova Associação das Pioneiras Sociais. Nessa, quer ela queira quer não, a filantropia constitui sua finalidade; a entidade é filantrópica por natureza; por reconhecimento legal; porque foi criada para a prática da filantropia. E, em sendo assim, a declaração legal supre o reconhecimento de um órgão burocrático da administração" (BRASIL. Advocacia Geral da União. Parecer GQ 169, de 06 de outubro de 1998. Dispõe sobre a isenção de serviço social autônomo à contribuição de cota patronal e de terceiros. Publicada no Diário Oficial da União, Seção 1, de 8 de outubro de 1998).

No referido parecer, o douto advogado-Geral descreve que os serviços sociais autônomos preenchem todos os requisitos arrolados pela Lei nº 8.112/91 e que tal certificação a tais entidades é suprido "(…) pelo reconhecimento legal que institui a pessoa jurídica como entidade filantrópica (…)". Nesse rumo, as leis singulares e específicas que criaram os serviços sociais autônomos atestaram a sua natureza de entidade de assistência social ou filantrópicas e, ao assegurarem direitos sociais aos cidadãos brasileiros que deveriam ser assegurados pelo poder público, configuram-se legalmente com previsão expressa de ausência de finalidade lucrativa de suas ações e aplicam integralmente no país os seus recursos relacionados à atividade social que desempenham.

Dito isso, constata-se que a Lei Federal 13.467/2017, que instituiu a denominada reforma trabalhista, modulou, para alguns empregadores, o gravame decorrente do denominado "depósito recursal" previsto no artigo 899, §1°, da CLT. Cuida-se de garantia posta pela lei ao pretenso crédito do trabalhador, de resto de natureza alimentar, frente à apresentação de recurso pela reclamada. É um de requisito de admissibilidade recursal, quando a insurgência parta do empregador que, via de regra, submete-se a um procedimento complexo e oneroso, regulamentado atualmente por algumas instruções normativas da presidência do TST (03; 15; 18; e 26) para que o recolhimento ocorra de forma correta e, assim, se evite a deserção. Ninguém esquece o antigo teor da OJ 140/SDI-I do TST, recentemente reformada, em decorrência da entrada em vigor do CPC/2015, que fulminava com deserção recurso patronal recolhido com diferenças de centavos a menos.

Outrossim, o ATO SEGJUD.GP 287, de 13 de julho de 2020, fixa os valores do depósito recursal: 1) R$ 10.059,15, no caso de interposição de recurso ordinário; 2) R$ 20.118,30, no caso de interposição de recurso de revista e embargos; e 3) R$ 20.118,30, no caso de interposição de recurso em ação rescisória. Em caso de recurso de agravo de instrumento, o valor do depósito é de 50% do recurso a ser destrancado (CLT, artigo 899, §7°).

Decerto, a Lei 13.467/2017 fez uma graduação nas entidades sem fins lucrativos no que diz respeito à exigência em discussão. Para as entidades tão somente "sem fins lucrativos", preferiu a lei reduzir pela metade o valor do depósito recursal. Entretanto, para as entidades sem fins lucrativos, que sejam "filantrópicas", como são as do Sistema S, dúvida não há de que a lei isentou-as do gravame, ou melhor, dispensou-as do recolhimento em questão forte no sentido social das atividades prestadas por estas entidades, reconhecidas pela doutrina administrativista como "paraestatais".

Portanto, em conclusão, verifica-se que o recolhimento do depósito recursal do Sistema S é indevido à luz do ordenamento jurídico vigente, que reconhece a tais entidades um regime jurídico próprio, atribuindo-se a elas a natureza jurídica de entidades filantrópicas, assim reconhecidas por força de lei, não havendo necessidade de certificar algo que já consta atestado expressamente e taxativamente na lei de criação do serviço social autônomo e pela natureza eminentemente social de que se revestem que lhes garante, inclusive, imunidade tributária e o custeio mediante fontes de natureza tributária e vinculada.

Autores

  • é procurador do Distrito Federal, advogado sócio do Nilo & Almeida Advogados Associados, pós-Doutorando em Direito Tributário da UERJ, doutor em Direito Público pela PUC/SP, especialista em Direito Tributário pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

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