Opinião

O crime de manipulação de mercado de capitais por meio de short squeeze

Autores

  • Felipe Fernandes de Carvalho

    é sócio do escritório Mudrovitsch Advogados doutorando em Direito Penal pela USP mestre pela mesma instituição e especialista em corrupção e crime organizado pela Universidade de Salamanca.

  • Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves

    é sócio do escritório Almeida Castro Castro e Turbay Advogados Associados mestre em Direito Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pelo IDP e em Compliance e Governança pela UnB. Bacharel em Direito pela UnB.

3 de fevereiro de 2021, 9h12

Os últimos anos foram marcados por uma sensível revolução tecnológica em nossa sociedade, ganhando especial relevância os avanços nos mecanismos de comunicação e na ampliação do seu alcance. Esse contexto, que também está aliado à expansão do uso da internet pelos celulares, viabilizou um novo paradigma para o fluxo de informações e para o armazenamento de dados: smartphones, redes sociais, aplicativos de trocas de mensagens protegidos por criptografia, videoconferências, entre outros exemplos.

Os smartphones, apenas a título ilustrativo, registram as mais diversas informações sobre seus usuários [1], bem como possibilitam acesso facilitado a uma gama de serviços, como aplicativos de delivery, de transporte e de investimentos, e maior celeridade em transações financeiras.

Todas essas inovações implicam novos riscos, pois, como destacado por Silva Sánchez, "boa parte das ameaças a que os cidadãos estão expostos provém precisamente das decisões que outros concidadãos adotam no manejo dos avanços técnicos: riscos mais ou menos diretos para os cidadãos (como consumidores, usuários, beneficiários de serviços públicos etc.) que derivam das aplicações técnicas dos avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações" [2].

Tais modificações sociais viabilizaram uma nova forma de praticar manipulação do mercado de capitais, seja no Brasil como no exterior. A rápida concertação de operações financeiras por grande número de usuários em redes sociais foi palanque, nos últimos dias, para possível prática delitiva. No último dia 21, as ações da empresa GameStop Corp., uma revendedora de produtos vinculados a jogos eletrônicos [3], passaram a ser objeto de comentários em redes sociais destinadas a discutir o mercado financeiro estadunidense [4]. Mais do que almejar o mero lucro, o objetivo dos comentários era definir estratégia coletiva de investimento para prejudicar fundos de investimento que executavam a estratégia de short selling (venda a descoberto) [5] com essa ação.

Esses investidores discutiram e concordaram, então, com plano para execução de short squeeze com as ações da GameStop Corp. A prática consiste, em resumo: 1) na aquisição de ações da empresa; com a 2) subsequente não disponibilização dessas ações para aluguel; e, ainda, com o 3) compromisso de não realização de operações de venda do ativo. Em menos de sete dias, esse short squeeze gerou a surpreendente valorização dessas ações em 800%, sem que houvesse qualquer alteração significativa em seus dados financeiros.

A notoriedade desse acontecimento levou à replicação de short squeezes em ações de bolsa de valores mundo afora. No Reino Unido, as ações das empresas Pearson, Cineworld e Hammerson foram alvo dos investidores individuais nesse movimento. No Brasil, fenômeno similar ocorreu com as ações da IRB Brasil Resseguros S.A., empresa fundada em 1939 que, em 2017, chegou a constituir a oitava maior resseguradora do mundo em valor de mercado [6].

No dia 28 de janeiro, a ação da IRB Brasil Resseguros S.A., de código IRBR3, chegou a ter alta de 18%, saltando de R$ 6,50 para R$ 7,65 [7]. O incremento no valor da ação foi impulsionado por short squeeze concertado por investidores individuais em redes sociais, que se organizaram tanto em grupo do aplicativo Telegram — que, nessa data, contava com mais de 20 mil membros [8] — como em fóruns de discussão de estratégias de investimento. Em determinado momento do dia, investidores reproduziam a seguinte mensagem no fórum de um site especializado:

"COPIA E COLA PRO POVO VER AS ORIENTAÇÕES:..IRB Week – 08/02 a 12/02/211-Cada acionista comprará ações de acordo com suas condições durante cinco dias consecutivos Para não gerar sucessivos leilões iremos solicitar as compras pelas iniciais dos nomes: Ex: Apenas nomes iniciando com as Letras A, B e C comprando até a próxima autorização para novas letras entrarem na compra. 2-Os acionistas não venderão ou alugarão ações até o dia 30/04;3-Os acionistas que tem aluguéis irão solicitar os papéis de volta;4- Todos acionistas colocando Ordem de Venda a R$ 40,00" [9].

O movimento não passou despercebido pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que, no dia seguinte, emitiu alerta sobre possível atuação irregular desses investidores, no qual assentou, dentre outras coisas, que "a manipulação do mercado é passível de punição na esfera penal, conforme crime tipificado no art. 27-C da Lei 6.385/76" [10].

A advertência da CVM não é desarrazoada. Uma das finalidades do Direito Penal é de assegurar que as expectativas sociais sejam de fato verificadas. Ainda que diversos novos investidores individuais tenham começado a investir em ações nos últimos meses e, por isso, não possuam pleno conhecimento das melhores práticas, é certo que as regras para assegurar o bom funcionamento do mercado de capitais devem ser observadas por todos, sob pena de se ver tergiversada a sua finalidade.

A esse respeito, imperioso pontuar que, no Brasil, a quantidade de pessoas físicas investindo na bolsa de valores teve um aumento extraordinário nos últimos anos. Esse número era de 557.109 em 2015 e passou para 1.681.033 em 2019. Por sua vez, no ano de 2020, esse montante cresceu para 3.229.318 pessoas físicas, ou seja, quase o dobro de 2019 e aproximadamente seis vezes o número de 2015 [11].

Como segmento do sistema financeiro nacional, o mercado de capitais deve ser desenvolvido "de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade", tal como previsto no artigo 192 da Constituição da República, de modo que sua tutela deve almejar, sempre, essa finalidade. Sob o prisma regulatório, portanto, a tutela do mercado de capitais é premente, grosso modo, para proteção dos investidores (artigo 4˚, IV, da Lei nº 6.385/1976), contenção de risco sistêmico e padronização de divulgação de informações, assim como para assegurar a confiabilidade e a transparência destas, com vistas à "viabilização do mercado como mecanismo de financiamento da atividade produtiva, através da captação e alocação de recursos superavitários para os projetos mais eficientes de investimento" [12].

Do ponto de vista criminal, o tipo de manipulação do mercado de capitais, previsto no artigo 27-C da Lei n˚ 6.385/76, foi incluído nesse diploma pela Lei n˚ 10.303/01 e permaneceu com a mesma redação por considerável período de tempo. Marcelo Cavalli defendeu, em premiada tese de doutorado a respeito dos delitos contra o mercado de capitais, que o crime previsto no artigo 27-C "mostra-se, em linhas gerais, normativamente adequado para a proteção da capacidade funcional alocativa do mercado de capitais".

Porém, em 2017, a Lei n˚ 13.506 alterou sensivelmente a redação do delito em questão [13], promovendo uma ampliação de sua incidência, como destacam Maíra Salomi e Roberta de Lima e Silva em artigo sobre o tema [14].

De todo modo, manteve-se a constatação de que esse delito é comum — ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa. A interpretação desse tipo penal também permite concluir que "a definição acerca do caráter fraudulento de uma conduta está intrinsecamente vinculada à criação de um risco proibido" [15]. É dizer, a execução de práticas aceitas no âmbito do mercado de capitais afasta a tipicidade da operação.

Com efeito, a concertação de short squeeze por grande número de pessoas detém, em tese, aptidão para configurar uma conduta fraudulenta, na medida em que o preço do ativo é artificialmente fixado em razão de grande volume de operações arquitetadas, e não sob basilares premissas de oferta e da demanda.

A contundente atuação dos órgãos regulatórios e investigativos afigura-se, portanto, necessária para apuração de irregularidades dessa natureza e, por conseguinte, para o adequado funcionamento desse segmento do sistema financeiro nacional.

 


[1] Como destacado pelo Ministro Gilmar Mendes: “Nos dias atuais, esses aparelhos são capazes de registrar as mais variadas informações sobre seus usuários, como a sua precisa localização por sistema GPS ou estacoes de rádio base, as chamadas realizadas e recebidas, os registros das agenda telefônica, os dados bancários dos usuários, informações armazenadas em nuvem, os sites e endereços eletrônicos acessados, lista de e-mail, mensagens por aplicativos de telefone, fotos e vídeos pessoais, entre outros.”(HC 168052, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 20/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-284 DIVULG 01-12-2020 PUBLIC 02-12-2020)

[2] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 29.

[3] Disponível em: <https://www.reuters.com/companies/GME>. Acesso em 30 de jan. 2021.

[4] Na plataforma Reddit, o grupo “wallstreebets” definiu os movimentos destinados à promoção do “short squeeze” com as ações da empresa GameStop Corp.

[5] A operação de venda a descoberto é utilizada quando se acredita na perda de valor de um ativo e consiste, em suma, no aluguel de ações de terceiro com a subsequente venda do ativo. Esse tipo de operação é amplamente aceita no mercado (como se discutiu no precedente estadunidense Sullivan & Long, Inc. v. Scattered Corp., 47 F.3d 857 7th Cir. 1995).

[6] Disponível em: <https://www.infomoney.com.br/cotacoes/irb-brasil-irbr3/>. Acesso em 30 de jan. 2021.

[7] Disponível em: <https://br.investing.com/equities/irb-brasil-resseguros-chart>. Acesso em 30 de jan. 2021.

[9] Disponível em: <https://br.investing.com/equities/irb-brasil-resseguros>. Acesso em 30 de jan. 2021.

[12] CAVALI, Marcelo Costenaro. Fundamento e limites da repressão penal da manipulação do mercado de capitais: uma análise a partir do bem jurídico da capacidade funcional alocativa do mercado. 2017. 352 f. Tese (Doutorado em Direito, na área de concentração Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 99.

[13] "Art. 27-C  Realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas destinadas a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros: Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime".

[15] CAVALI, Marcelo Costenaro. Fundamento e limites da repressão penal da manipulação do mercado de capitais: uma análise a partir do bem jurídico da capacidade funcional alocativa do mercado. 2017. 352 f. Tese (Doutorado em Direito, na área de concentração Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 244.

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