Opinião

Pacote 'anticrime' não pode servir para abrandar penas por crimes hediondos

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

3 de fevereiro de 2021, 10h37

Em 24 de dezembro de 2019 foi sancionada a Lei nº 13.964, cuja ementa é: "Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal".

Popularmente conhecida como pacote "anticrime", a norma teve sua origem no Projeto de Lei nº 10.372/18, da Câmara dos Deputados, e decorreu dos estudos elaborados pela comissão de juristas presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, com a atribuição de elaborar proposta legislativa tendente ao "combate à criminalidade organizada, em especial relacionada ao combate ao tráfico de drogas e armas".

Da justificação do projeto de lei extraem-se, por pertinentes com os objetivos deste artigo, os seguintes excertos, que bem evidenciam os objetivos buscados pela legislação anticrime:

"As organizações criminosas ligadas aos tráficos de drogas e armas têm ligações interestaduais e transnacionais e são responsáveis direta ou indiretamente pela grande maioria dos crimes graves, praticados com violência e grave ameaça à pessoa, como o homicídio, latrocínio, roubos qualificados, entre outros; com ostensivo aumento da violência urbana. Esse quadro tornou imprescindível uma clara e expressa opção de combate a macro criminalidade, pois seu crescimento é atentatório à vida de dezenas de milhares de brasileiros e ao próprio desenvolvimento socioeconômico do Brasil.
(…)
Observado o absoluto respeito à dignidade humana e a vedação a penas cruéis, estabelecidas pela Constituição (art. 1º, III, e art. 5º, XLVII, “e”), bem como, com base em bem sucedidas experiências de diversos países democráticos, são propostas regras mais rigorosas para o Regime Disciplinar Diferenciado (art. 52 da LEP), e ainda o aumento dos prazos mínimos para progressão de regime no caso dos crimes hediondos ou assemelhados, bem como dos crimes cometidos com violência ou grave ameaça, atentando-se para diferenciar a hipótese de reincidência".

O artigo 19 da novel legislação revogou o disposto no artigo §2º do artigo 2º da Lei 8.072/90, que dispunha que a progressão de regime para os condenados a crimes hediondos e equiparados dar-se-ia com o cumprimento de três quintos da pena (equivalente a 60%), se reincidente. Vale ressaltar que a jurisprudência do STJ pacificou o entendimento de que, na vigência daquele dispositivo, não se exigia reincidência específica para a exigência do percentual de 60% [1].

A lei "anticrime", em consequência da revogação do dispositivo da Lei de Crimes Hediondos, deu nova redação ao artigo 112 da Lei de Execução Penal exigindo os seguintes percentuais para a progressão de regime no caso de crimes hediondos ou equiparados:

"VII – 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado;
VIII – 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional".

Evidente que o objetivo da norma foi, além de manter o tratamento rigoroso de exigência de 60% para a progressão de réus reincidentes em crimes hediondos ou equiparados, aumentar o rigor para os casos de reincidentes em crimes hediondos ou equiparados com resultado morte (exigência de cumprimento de 70% da pena e vedação de livramento condicional).

Vê-se que a legislação anticrime não exigiu a reincidência específica em crime hediondo para as hipóteses dos incisos VII e VIII do artigo 112 da Lei de Execuções Penais.

Ademais, percebe-se que, quando pretendeu se referir à reincidência específica, a lei "anticrime" assim expressamente o fez (artigo 9º, que deu nova redação ao artigo 20, II, da Lei 10.826/2003).

Logo, considerando o induvidoso conceito de reincidência previsto no artigo 63 do Código Penal (verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior), não deveria suscitar qualquer dúvida que o apenado que comete, após qualquer crime, um crime hediondo ou equiparado, deve cumprir 60% da pena. E que o apenado que comete, após qualquer crime, um crime hediondo ou equiparado com resultado morte, tem que cumprir 70% da pena, sendo-lhe vedado o livramento condicional.

A expressão reincidente em crime hediondo, por óbvio, não tem outro significado. Diferente seria se a lei "anticrime" dissesse "reincidente específico em crime hediondo ou equiparado".

Contudo, na contramão dos objetivos almejados pela lei "anticrime" e em afronta à interpretação teleológica e integradora do texto normativo, diversos tribunais de nosso país passaram a decidir no sentido de que o artigo 112 da Lei de Execuções Penais, ao estabelecer novos lapsos para a progressão de regime nos incisos VII e VIII, só se aplica aos condenados reincidentes específicos em crimes hediondos, razão pela qual as cortes julgadoras estão fazendo analogia in bonam partem para aplicar, aos condenados reincidentes não específicos, a exigência de cumprimento do percentual de apenas 40% da pena, que é previsto no inciso V do referido dispositivo se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário.

Parece-nos evidente que a reincidência que não seja específica não pode ser interpretada como primariedade para fins de progressão de regime, sob pena de se realizar interpretação flagrantemente contrária à lei, conduzindo-nos ao absurdo de concluir que a lei "anticrime" adveio para igualar réus primários e reincidentes, o que viola a própria noção de justiça, data maxima venia.

Não se trata de dar interpretação extensiva in malam partem ao novo texto normativo, mas simplesmente de interpretá-lo (sem necessidade de analogia ou extensão) de forma integrada, lógica e coerente a fim de se alcançar o claro objetivo do conjunto normativo e seus valores subjacentes.

Vale ressaltar que o STJ já teve a oportunidade de assentar que o mero reconhecimento da vontade da norma penal não implica criação de regra em desfavor do réu, o que, de fato, acarretaria analogia in malam partem. (6ª Turma; rel. Desig. min. Rogério Schietti Cruz; DJE 4/9/2014).

O STF também já reconheceu que a interpretação compreensiva do texto normativo penal, observada a sua razão e a sua finalidade, não configura interpretação analógica ou extensiva, pois a verdadeira interpretação é aquela que, primeiramente, busca alcançar a ratio do texto interpretando, a fim de que seja realizada a sua finalidade. (Inq 1769, rel. min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 1/12/2004).

Enfim, é chegado o tempo de o Poder Judiciário brasileiro reconhecer, em definitivo, que não pode ser mero expectador da trágica realidade social e que, observada fielmente a nossa Constituição e todos os direitos humanos fundamentais, interprete a legislação advinda com o pacote "anticrime" de forma a atender os seus reais objetivos de combate efetivo à criminalidade, pois não se concebe que o direito da sociedade usufruir de segurança pública e tranquilidade sucumba a leituras açodadas, parciais e preconceituosas do novel texto normativo.

 


[1] Ademais, esta Corte Superior pacificou entendimento no sentido de que a Lei dos Crimes Hediondos não faz distinção entre a reincidência comum ou específica. Assim, havendo reincidência, ao condenado deverá ser aplicada a fração de 3/5 da pena cumprida para fins de progressão do regime. Habeas Corpus não conhecido. (STJ; HC 427.803; Proc. 2017/0317371-7; PR; Quinta Turma; Rel. Min. Joel Ilan Paciornik; Julg. 04/10/2018; DJE 19/10/2018; Pág. 1173).

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