Opinião

Vacinação compulsória e o Direito do Trabalho

Autor

  • DESATUALIZADA Igor de Oliveira Zwicker

    é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia (Unama) especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes (Ucam) e em Gestão de Serviços Públicos pela Universidade da Amazônia (Unama) analista judiciário e assistente de juiz do Trabalho substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (PA/AP) e professor de Direito.

3 de fevereiro de 2021, 6h03

Tenho acompanhado, na revista Consultor Jurídico, diversas, abalizadas e contrapostas opiniões jurídicas acerca da possibilidade ou não de o empregador exigir, de seus empregados, a vacinação que estiver eventualmente disponível à população contra o novo coronavírus e, ainda, suas eventuais repercussões, em caso de recusa.

Há uma corrente que refuta a possibilidade (licitude) da dispensa do empregado por justa causa (resolução do contrato de trabalho por iniciativa do empregador), caso o empregado se recuse à vacinação, inclusive pela proteção constitucional aos direitos da personalidade (artigo 5º, inciso X, da Constituição da República), além do que prevê o artigo 11 do Código Civil.

Para algumas vozes, inclusive, que consideram impossível (ilícita) até a dispensa sem justa causa, identificando um cunho discriminatório na dispensa motivada pela recusa em se vacinar, aplicando a Lei nº 9.209/1999, que proíbe práticas discriminatórias para efeitos de permanência da relação jurídica de trabalho, o que gera, por via de consequência, a reintegração do empregado, com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente e acrescidas de juros legais, ou a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais, tudo sem prejuízo do direito à reparação por danos morais.

Minha compreensão caminha em sentido contrário, e penso até que a solução é mais simples do que vem sendo proposto, aqui, neste espaço.

Rememoremos que o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o artigo 29 da Medida Provisória nº 927/2020 [1], que dizia o seguinte: "Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal".

A decisão foi tomada pelo colegiado no referendo de medida cautelar em sete ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs nº 6342, 6344, 6346, 6352, 6354, 6375 e 6380); tomemos, exemplificadamente, excerto da ementa da ADI nº 6346 MC-Ref, relator: ministro Marco Aurélio, relator para o Acórdão: ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 29/4/2020, DJe 12/11/2020, conforme a seguir:

"[…] ART. 29. EXCLUSÃO DA CONTAMINAÇÃO POR CORONAVÍRUS COMO DOENÇA OCUPACIONAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO EMPREGADOR. […] SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DOS ARTS. 29 E 31 DA MP 927/2020. CONCESSÃO PARCIAL DA MEDIDA LIMINAR. […] 2. O art. 29 da MP 927/2020, ao excluir, como regra, a contaminação pelo coronavírus da lista de doenças ocupacionais, transferindo o ônus da comprovação ao empregado, prevê hipótese que vai de encontro ao entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação à responsabilidade objetiva do empregador em alguns casos. Precedentes […]".

No voto condutor do julgamento, da lavra do ministro Alexandre de Moraes, relator designado para o acórdão, o Supremo Tribunal Federal cita, expressamente, o Recurso Extraordinário nº 828.040 (ata de julgamento publicada no DJe em 19/3/2020), julgado sob o regime de repercussão geral e no qual a corte fixou a seguinte tese jurídica:

"O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade".

Ou seja, além de o Supremo Tribunal Federal reconhecer o novo coronavírus como uma doença ocupacional, sinaliza para a responsabilidade civil objetiva do empregador, bastando a ocorrência do dano (a contaminação pela doença) e o nexo de causalidade do infortúnio com a relação de emprego, sendo dispensável até a comprovação de culpa — em outras palavras, mesmo que o empregador tome todas as precauções, ainda assim será condenado, em caso de contaminação.

E, convenhamos, é quase impossível que não se ate o nó entre o ambiente laboral e a contaminação pela doença.

Isso porque, além de o artigo 20, inciso II, da Lei nº 8.213/1991 reconhecer como doença do trabalho (uma das espécies do gênero doença ocupacional) aquela adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, o artigo 21, inciso I, da mesma lei diz que se equipara a acidente do trabalho — a doença ocupacional é um acidente do trabalho por equiparação — "o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para redução ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica para a sua recuperação".

Em palavras mais simples: basta levar em consideração que o empregado, ao sair de casa e romper com o isolamento social vertical ou horizontal, por força do trabalho, já se está expondo à contaminação pelo novo coronavírus, de modo que sempre haverá nexo de causalidade, ainda que se trate de uma concausa (que é a hipótese do artigo 21, inciso I, da Lei nº 8.213/1991).

Por outro lado, o artigo 3º, inciso III, alínea "d", da Lei nº 13.979/2020 prevê que, para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata a lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras medidas, a determinação de realização compulsória de "vacinação e outras medidas profiláticas".

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade desse dispositivo no julgamento conjunto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1.267.879 e nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e 6.587 [2].

No recurso extraordinário com agravo, foi fixada a seguinte tese jurídica:

"É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no plano nacional de imunizações; ou tenha sua aplicação obrigatória decretada em lei; ou seja objeto de determinação da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar".

Nas ações diretas de inconstitucionalidade, foram fixadas as seguintes teses jurídicas (grifos do autor):

"(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente.
(II) Tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência".

Tendo em vista o que ficou decidido, resta cristalino que não há como se "obrigar" o empregado à vacinação, porque rechaçada a vacinação forçada, sendo-lhe deferida a recusa, justificada ou injustificada; porém, haverá consequências jurídicas, na recusa.

Veja-se que o Supremo Tribunal Federal admite a implementação da vacinação compulsória por medidas indiretas, apresentando um rol meramente exemplificativo e não exaustivo (como se vê da expressão "dentre outras"), onde se inclui a restrição ao exercício de certas atividades se houver previsão em lei ou dela decorrente. E há.

O artigo 7º, inciso XXII, da Constituição da República dispõe ser direito dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

Dessa norma pétrea e de aplicação imediata (artigos 5º, §1º, e 60, § 4º, inciso IV, da Constituição da República), extraem-se dois princípios conhecidos do Direito Ambiental do Trabalho, a saber: o princípio do risco mínimo regressivo, segundo o qual cabe ao empregador manter um ambiente de trabalho 100% seguro ou minimamente inseguro, e o princípio do risco retido na fonte, segundo o qual cabe ao empregador, sempre que possível, agir de maneira preventiva e precaucional, antecipando-se à ocorrência do risco.

Segundo o artigo 157, incisos I e II, da Consolidação das Leis do Trabalho, cabe ao empregador cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho e, ainda, instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais.

Já o artigo 158, incisos I e II e parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho, diz que cabe aos empregados observar as normas de segurança e medicina do trabalho e colaborar com o empregador, nesse sentido, constituindo-se ato faltoso — passível de dispensa por justa causa — a recusa obreira, quando injustificada, à observância das instruções expedidas pelo empregador e/ou ao uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos.

Ou seja, a própria Consolidação das Leis do Trabalho já reconhece a hipótese da justa causa, em caso de inobservância das normas de segurança e medicina do trabalho, o que inclui a disseminação do novo coronavírus, reconhecidamente um agente de contaminação laboral pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que se trate de concausa, em razão do artigo 21, inciso I, da Lei nº 8.213/1991.

A justa causa já é possível, por exemplo, na recusa de o empregado se recusar a usar máscara, reconhecidamente um equipamento de proteção individual (artigo 158, parágrafo único, alínea "b", da Consolidação das Leis do Trabalho), diante do que decidiu o Supremo Tribunal Federal.

Nesse diapasão, entendo ser possível a resolução do contrato de trabalho por iniciativa do empregador (dispensa por justa causa do empregado), caso o trabalhador se recuse a se vacinar, desde que atendidas as balizas fixadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto do Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.267.879 e nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e 6.587.

É claro que haverá casos — pontuais — de recusa justificada, como na hipótese de contraindicação à vacina; há também a relevante questão do teletrabalho (artigo 75-A e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho), que mantém hígido o isolamento social; porém, tais questões não serão objeto de análise, neste momento.

Por fim, a produção intelectual viabilizada pela revista Consultor Jurídico comprova, de forma cristalina, uma premissa inafastável: não há consenso.

Dito isso, penso até que é justa e razoável — dada a latente incerteza jurídica — a conversão da dispensa por justa causa em dispensa sem justa causa (resilição do contrato de trabalho por iniciativa do empregador), na hipótese de se entender impossível a exigência pessoal de vacinação.

Porém, não compreendo como justo nem razoável, nesse ambiente de flagrante incerteza, que haja eventual reconhecimento da dispensa do empregado — seja com ou sem justa causa — como uma "prática discriminatória" ou, ainda, que existam indenizações por dano extrapatrimonial, nesse sentido.

De todo modo, uma das funções do processo é o seu ponto de vista sociológico, na medida em que ele se volta a conscientizar o cidadão do que é interpretado como certo ou errado. Assim, é importante que os órgãos de cúpula — o Tribunal Superior do Trabalho, responsável pela uniformização da jurisprudência trabalhista nacional, e o Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição da República — se manifestem, apropriadamente, sobre o tema, definindo a questão e conferindo segurança e estabilidade às relações laborais.

 


[1] A Medida Provisória teve seu prazo de vigência encerrado no dia 19/7/2020, pelo Ato Declaratório do Presidente da Mesa do Congresso Nacional nº 92/2020.

[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário decide que vacinação compulsória contra Covid-19 é constitucional. Publicado em: 17 dez. 2020. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462>. Acesso em: 29 jan. 2021.

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