Opinião

O indevido alargamento do conceito de corrupção passiva

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3 de fevereiro de 2021, 7h11

O Direito Penal contemporâneo é fruto do movimento Iluminista iniciado no século 16, na Europa, e que trouxe, entre suas várias e novas conceituações de sociedade, a figura do Estado moderno, controlador e concentrador de todo o poder de punir dos cidadãos.

Por isso, como forma de limitar o poder punitivo do Estado — muito pela gravidade dos meios que este emprega na repressão aos delitos, da qual decorre o caráter de ultima ratio da persecução penal —, a Constituição Federal consagra o princípio da legalidade como direito fundamental do cidadão.

É da fórmula cunhada por Feuerbach no século XIX — nullum crimen, nulla poena sine lege — que decorre o comando constitucional vigente:

"Artigo 5º  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXIX — não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

É possível dizer, pelo princípio da legalidade, que cabe exclusivamente à lei a tipificação de condutas delituosas e a cominação de suas penas.

Para que tal poder legislativo não se transformasse em mero arbítrio, visualizou-se a necessidade de um conjunto de regras (em sentido lato) que limitasse a atuação do Estado, restringindo-a aos casos em que o bem a ser tutelado fosse de significativa importância ao corpo social. Assim, num Estado social e democrático de Direito moderno, a legalidade se configura em princípio político [1].

Significa dizer que o Estado somente exerce o ius puniendi quando a conduta praticada pelo indivíduo estiver previamente definida em lei (legalidade formal) e direcionada a causação de um dano significativo ao bem tutelado (legalidade material), digno de tal repressão.

Hassemer, em análise ao tema, expõe:

"Em primer lugar, se pone de manifiesto que la teoría y la práxis del Derecho Penal no pueden prescindir de las Ciencias sociales y que, más allá del Derecho Penal, se han de tomar en cuenta las necesidades e intereses del sistema social. En segundo lugar, se esclarece que no toda lesión de un interes humano (bien jurídico) exige una reacción mediante el Derecho Penal, sino tan sólo aquella que, además, presenta el carácter de socialmente danosa, es decir, que en sus efectos lesivos va más allá del conflicto entre autor y víctima y del dano individual que esta última sufre" [2].

Pode-se afirmar, portanto, conforme lição de Juarez Tavares, que:

"Se uma conduta não estiver prevista na lei penal como criminosa, nada poderá transformá-la em criminosa, nem a vontade dos governantes, nem as decisões judiciais, ainda que seus possíveis efeitos possam ser considerados socialmente relevantes" [3].

Enfim, aliamo-nos ao entendimento de Muñoz Conde, para quem a tentativa de definir o delito à margem do Direito Penal vigente situa-se fora do âmbito do Direito (configura filosofia, religião ou moral [4]).

Do crime e sua conceituação analítica
Para a melhor percepção da matéria penal, o conceito de crime deve ser analisado de forma unitária. Internamente, entretanto, existe uma estratificação dos elementos que o compõe [5] em virtude da necessidade de objetivar sua incidência sobre o comportamento humano.

Sob as vistas do Direito positivo, o crime é uma ilicitude qualificada [6], cuja verificação se refere em tal monta a um fato (tipicidade), noutro giro ao agente (culpabilidade) e até mesmo a opções de política criminal (punibilidade).

Trata-se do denominado conceito analítico, que, conforme Zaffaroni, "atende ao cumprimento de um propósito essencialmente prático, consistente em tornar mais fácil a averiguação da presença, ou ausência, do delito em cada caso concreto" [7].

Surge daí a compreensão do crime como conduta humana típica, ilícita (ou antijurídica) e culpável, que em razão dos debates frequentes quanto à composição interna de cada um de seus elementos, passou a ser mundialmente identificada como teoria geral do crime, nos moldes hoje estudados.

Notadamente, para fins deste artigo, interessa o elemento denominado tipicidade.

Da teoria do tipo
É importante distinguir, logo de início, os conceitos de tipo penal e de tipicidade. Enquanto o tipo penal é a estrutura legal que descreve o comportamento proibido, a tipicidade é a adequação do fato a essa estrutura [8]. Dito de outra forma: a tipicidade, primeiro elemento do crime, é onde se encontra sua descrição formal.

A referida descrição compreende, por sua vez, a utilização de elementares e circunstâncias. As primeiras representadas por elementos sem os quais o próprio delito deixa de existir. As segundas, por elementos marginais que podem alterar a gravidade de um determinado delito sem, contudo, desnaturá-lo em relação ao que é.

Além dessa divisão entre elementares e circunstâncias, há de se observar que o tipo é composto por elementos subjetivo, objetivo, normativo e descritivo.

Na hipótese aqui debatida, o problema reside na diferenciação de elementares normativas que compõem os delitos de corrupção passiva e advocacia administrativa. Passa-se, finalmente, ao tema central.

Dos delitos de corrupção passiva e advocacia administrativa
Em virtude de um forte ativismo judicial que marca nosso atual panorama jurídico, os elementos normativos do tipo penal tornaram-se objeto de extensas e heterodoxas interpretações.

Na criminalidade do colarinho branco tal situação se baseia na falsa percepção de que cabe ao Poder Judiciário ser o fiscal maior da ordem social, corrigindo os vícios humanos através de decisões que criminalizam condutas em acordo com o brado popular.

Pois bem: como marcado na introdução ao problema aqui proposto, não é possível ao Poder Judiciário e ao intérprete legal afastar-se dos conceitos expressos no próprio tipo, principalmente quando tal afastamento gerar uma extensão da hipótese criminalizadora.

Não se ignora que os elementos normativos, conforme a própria natureza, carecem de intepretação que extrapola o Direito Penal em si. Entretanto, se os conceitos possuem conteúdo penal próprio, este não pode ser ignorado.

Nessa linha, confira-se que uma diferença fundamental entre o delito de corrupção passiva e o delito de advocacia administrativa reside no fato de que: 1) o primeiro exige do sujeito ativo uma negociação que envolva necessariamente a sua função pública; enquanto 2) o segundo exige apenas que o favorecimento ao particular envolva sua qualidade de funcionário público.

Confira-se:

"Artigo 317 Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
Artigo 321
Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário".

Inequívoca a distinção dos tipos pelo elemento aqui trazido, resta saber, por exemplo, se um parlamentar, na específica função de relator de CPMI, ao impedir ou tentar impedir que seus colegas requeiram ou executem intimações para depoimentos pessoais, se valerá de sua função ou, tão somente, de sua qualidade de funcionário público.

Registre-se, ainda, que o artigo 317 está inserido no Capítulo I do Título XI do Código Penal, a saber, no rol dos "crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral".

Logo, a qualidade de funcionário público é pressuposta. Com isso, temos por óbvia a conclusão de que o vocábulo "função", presente no artigo 317, represente algo além da qualidade de funcionário público.

Como sabemos, a lei não se utiliza de palavras inúteis e o vocábulo "função" seria inútil se significasse apenas qualidade de funcionário público. Como já vimos, a qualidade é pressuposta pelo simples fato de o artigo 317 estar inserido nos crimes cometidos por funcionário público contra a Administração em geral.

A discussão, então, vai além da análise de relação entre a vantagem indevida e o exercício ou não de "ato de ofício", como costumam apontar doutrina e jurisprudência.

Muito mais relevante é apontar se a vantagem indevida está num contexto de exercício de função pública ou apenas qualidade de funcionário público.

A título exemplificativo, temos que um parlamentar que recebe vantagem indevida sob o pretexto de influenciar na nomeação de determinado ministro de Estado não pratica o crime de corrupção, eis que a influência de nomeação de ministro de Estado é função do presidente da República.

Percebam que, não à toa, uma das mais comuns medidas cautelares em processos criminais dessa natureza é a de afastamento da função pública. Ora, o afastamento cautelar da função pública, por certo, não encerra a qualidade de funcionário público.

Não há dúvidas de que o afastamento cautelar de um funcionário público não encerra a influência que aquele porventura apresente sobre as estruturas de poder. Por outro lado, impede o exercício da função que supostamente tenha sido remunerada por meios ilícitos.

Tudo isso reforça a ideia de que o foco é mesmo a função exercida, não bastando a mera qualidade de funcionário público.

Com outras palavras: a função pública é elementar do tipo penal e diverge substancialmente da qualidade de funcionário público. Bem por isso, se a vantagem indevida não se relaciona diretamente ao exercício de uma função pública de competência do sujeito ativo, não se verifica o crime de corrupção passiva, sendo muito mais próximo o tipo de advocacia administrativa.

Corroborando a necessidade de que a distinção entre função e qualidade seja exercida quando da classificação típica do delito de corrupção passiva, segue nossa Suprema Corte:

"EMENTA Inquérito. Deputado federal. Corrupção passiva (art. 312, CP) (…) Inexistência de ato de ofício relacionado à função parlamentar. Fato atípico. Insubsistência, por arrastamento, da imputação de lavagem de capitais (art. 1º, caput, V, da Lei nº 9.613/98, na redação anterior à Lei nº 12.683/12). Denúncia rejeitada.
1. (…)
4. Não se vislumbra nenhuma conduta atribuível ao deputado federal que pudesse concretamente se revestir da qualidade de ato de ofício relacionado à função parlamentar, objetivando a liberação do financiamento e do empréstimo-ponte. 5. A simples apresentação de interessado em obter financiamento e a solicitação de reunião ao presidente do Banco do Nordeste não caracterizam exercício de influência para obtenção de financiamento nem para a liberação dos recursos.
6. Ausente a prática de ato de mercancia da função parlamentar, os fatos imputados ao denunciado, a título de corrupção passiva, são atípicos.
7. Insubsistente a imputação de corrupção passiva, fenece, por arrastamento, a de lavagem de capitais, por não haver crime antecedente contra a administração pública.
8. Denúncia rejeitada.
(Inq 4259, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 18/12/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-043 DIVULG 06-03-2018 PUBLIC 07-03-2018)".

Conclusão
Ante a evidente distinção de elementares típicas existente nos tipos penais aqui mencionados, em que "qualidade" e "função" descrevem distintos elementos que não se confundem para fins de juízo de tipicidade, torna-se evidente o avançar jurisprudencial sobre os limites formais do tipo penal, classificando casos clássicos de utilização da qualidade de funcionário público como mote para condenação pelo delito de corrupção, ainda que o ato praticado não estivesse circunscrito à função efetivamente designada ao agente [9].

Tal avançar viola o princípio da legalidade e o conceito de tipicidade aqui desenvolvido graças a um sentimento cultural contemporâneo que entende ser papel do Poder Judiciário a verdadeira regulação das relações sociais, ponto este com o qual não podemos concordar.

 


[1] EISELE, Andreas. Direito Penal. Teoria do Delito. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 93.

[2] HASSEMER, WINFRIED. Fundamentos del Derecho Penal. Trad. Francisco Muñoz Conde y Luis Arroyo Zapatero. Barcelona, Espanha: BOSCH, 1984, p. 39.

[3] TAVARES, JUAREZ. Fundamentos de Teoria do Delito. 2ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 70.

[4] MUÑOZ CONDE, FRANCISCO. Teoria Geral do Delito. Trad. Juarez Tavares e Luis Regis Prado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988, p. 1-2.

[5] Segundo Luiz Regis Prado, “a ação, como primeiro requisito do delito, só apareceu com Berner (1857), sendo que a idéia de ilicitude, desenvolvida por Jhering (1867) para a área civil, foi introduzida no Direito Penal por obra de Von Liszt e Beling (1881), e a de culpabilidade, com origem em Merkel, desenvolveu-se pelos estudos de Binding (1877). Posteriormente, no início do século XX, graças a Beling (1906), surgiu a idéia de tipicidade”. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1: parte geral. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 254.

Cezar Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde identificam, porém, a elaboração do conceito analítico em Carmignani (1833), encontrando-se, ademais, antecedentes já em Deciano (1551) e Bohemero (1732). BITENCOURT, Cezar Roberto e MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 22.

[6] CALLEGARI, André; PACELLI, Eugênio. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 6ª edição revista, atualizada e reformulada. São Paulo: Atlas, 2020, p. 177.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Vol. 1. Parte Geral. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 331.

[8] DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de Direito Penal. Parte Geral. 4ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, 471.

[9] Neste sentido, Superior Tribunal de Justiça, RESP n. 1.745.410-SP.

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